Após descriminalização da maconha, especialistas querem regulamentação
18 de fevereiro de 2025, 20h58
· Criminal
A descriminalização do porte de maconha para
consumo próprio pelo Supremo Tribunal Federal foi só o primeiro passo para a
superação da política de guerra às drogas, segundo os especialistas que
participaram do seminário “A Política Nacional Sobre Drogas: Um Novo
Paradigma”, promovido pela revista eletrônica Consultor Jurídico e
pelo site Brasil 247. Eles valorizaram a
reação da corte ao analisar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei
de Drogas, mas citaram uma série de problemas relacionados ao
tema que permanecem intocados pelo Estado. Entre eles, o racismo do sistema de
segurança pública, o encarceramento em massa e a falta de regulação do uso
medicinal da cannabis.
O evento, promovido nesta terça-feira (18/2) no
Hotel Royal Tulip, em Brasília, contou com a participação de 30 debatedores. A
lista inclui advogados, médicos, autoridades do Judiciário, integrantes do
governo federal e representantes de ONGs que atuam no Brasil. Especialistas de
Portugal, Colômbia e Equador também colaboraram com as discussões.
Os convidados foram distribuídos em seis painéis
temáticos: “O significado da decisão do STF sobre porte da cannabis para uso
pessoal”; “A cannabis medicinal no Brasil, suas aplicações e potenciais
benefícios para o sistema de saúde”; “As experiências internacionais”; “A
implementação da decisão do STF pelo sistema de Justiça”; “O combate ao racismo
e ao encarceramento em massa”; e “Os impactos econômicos e sociais da decisão
do STF”.
O diretor da ConJur, Márcio Chaer, e
Leonardo Attuch, Tereza Cruvinel e Dhayane Santos, jornalistas do Brasil
247, revezaram-se na mediação dos debates.
STF reagiu,…
Ao abrir
o primeiro painel, o ministro decano do STF, Gilmar
Mendes, defendeu a atuação da corte ao criar critérios para a distinção
entre traficantes e usuários de maconha. “O Supremo não reconheceu um direito
subjetivo à entorpecência, não impediu a apreensão de drogas pela polícia, não
tornou o uso de drogas lícito. Ele segue antijurídico. Apenas trocou a esfera
penal pela esfera da saúde pública”, afirmou o magistrado.
No julgamento, concluído em junho de 2024, o
STF estabeleceu
a quantidade de 40 gramas, ou seis pés da planta, para
diferenciar usuários de traficantes. A quantidade foi um meio termo entre os 60
gramas propostos pelo ministro Alexandre de Moraes e os 25 gramas defendidos
pelo ministro Cristiano Zanin.
O tema chegou ao tribunal por meio do Recurso
Extraordinário (RE) 635.659 (Tema
de Repercussão Geral 506), que questionava o dispositivo da Lei
de Drogas que estabelece penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito,
transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”.
Teoricamente, as penas previstas na norma não
deveriam levar o usuário à prisão. Porém, a falta de critérios objetivos
permitia que usuários fossem classificados como traficantes. A quantidade
estabelecida vale até que o Congresso legisle sobre o assunto.
…mas o Estado precisa fazer mais
A falta de uma regulamentação da maconha para fins
medicinais foi um dos problemas mais citados ao longo do seminário.
O assessor especial do Ministério da Saúde
responsável pela cannabis medicinal, Rodrigo Cariri, afirmou que a
pasta já reconhece os benefícios dos derivados de maconha em condições clínicas
como dores crônicas, doenças desmielinizantes (que afetam a transmissão de
sinais nervosos) e epilepsia.
“Do ponto de vista científico, são inegáveis os
benefícios. A questão é como isso pode ser construído no território nacional”,
afirmou. Segundo Cariri, o ministério mapeou 29 projetos no Congresso que
tratam de aquisição, cultivo ou distribuição de derivados da maconha.
Enquanto os representantes do governo focam no que
tem sido feito para a incorporação dos derivados, quem atua pela causa da
liberação do uso aponta inconsistências no processo.
O advogado André Barros, que é um dos
autores da representação que garante a Marcha da Maconha, criticou a Resolução
327/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A norma em
questão estabelece que a produção de medicamentos derivados deve ser feita a
partir de cannabis importada.
“É uma vergonha, do ponto de vista do capitalismo,
do direito da concorrência, haver uma resolução da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária que impede nós, brasileiros, de plantarmos maconha para
fabricarmos insumos para concorrer, no nosso país, com as empresas
estrangeiras.”
Em sua fala, o ministro do Desenvolvimento Agrário
e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, demonstrou otimismo. Ele
acredita que a tramitação de um projeto de lei de sua autoria (PL 399/15) sobre
o tema pode avançar durante a gestão de Hugo Motta (Republicanos-PB) como
presidente da Câmara. Segundo Teixeira, Motta “acha ruim” que o uso medicinal
não esteja regulamentado no país.
Maconha, racismo e
encarceramento
O viés étnico-racial das apreensões e condenações
por suposto tráfico de drogas foi outro ponto recorrente no seminário,
extrapolando o painel dedicado ao assunto.
“A gente sabia que o critério de encarceramento
sempre foi preto pobre (considerado) traficante e branco
rico (considerado) usuário”, afirmou o presidente da
Associação Brasileira de Cannabis e Cânhamo Industrial (ABCCI), Luís
Maurício, ao elogiar o “pontapé inicial” do STF.
Para Nathalia Oliveira, da Plataforma
Brasileira de Política de Drogas (PBPD), falta a corte “avançar em decisões
capazes de corrigir o efeito dessa política (de guerra às drogas) sobre
a população negra”.
O advogado da ONG Conectas Direitos Humanos, Gabriel
Sampaio, afirmou que não é possível entender o impacto da política contra
as drogas no sistema de Justiça Criminal e no encarceramento em massa sem
entender o papel do racismo na sociedade brasileira. “Só houve decisão no STF
porque a discussão foi racializada. Muita gente apoia, mas muita gente não
suporta e denuncia o quanto isso é desigual (a Justiça Criminal) e
reproduz o racismo.”
- Mateus
Mello é
correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.