Fiança em caso de racismo no
futebol escancara inconstitucionalidade do § 7º do artigo 201 da Lei Geral do
Esporte
3 de novembro de 2024, 9h21
· Constitucional
Para amantes de futebol, ver seu time competindo em
campeonatos continentais é sempre um momento de alegria, mas, por outro lado,
de muita tensão, sobretudo quando envolve os clubes de futebol da América do
Sul. Para quem é torcedor, há uma certeza: a paixão irá aflorar, as energias da
competição em campo irão emanar para as arquibancadas e, a partir daí, não
raras vezes se iniciará um processo de provocações, xingamentos e, em muitos
casos, desrespeitos ao próprio espetáculo futebolístico.
Nesse contexto, o jogo ocorrido entre o Cruzeiro e
Lanús, time argentino, pela Copa Sul-Americana de 2024, no estádio Mineirão, no
dia 23 de outubro, foi marcado por um episódio de racismo, em que um jovem
argentino de 18 anos (torcedor do Lanús) foi flagrado imitando um macaco para a
torcida cruzeirense [1].
Para melhor ilustrar os fatos, no dia 22 de
outubro, um dia antes do caso acima citado, no jogo ocorrido entre Atlético
Mineiro e River Plate (da Argentina), um homem de 48 anos foi preso em
flagrante por gestos racistas durante a partida [2]. No dia 23 de
outubro, no jogo do Botafogo contra o Peñarol, no estádio Nilton Santos, um
torcedor uruguaio fez gestos racistas contra a torcido botafoguense [3] sem ser,
contudo, identificado e preso. Esses dois últimos jogos ocorreram pela Copa
Libertadores da América.
Os três fatos narrados acima têm em comum a
sensação de impunidade em favor do torcedor estrangeiro que chega ao Brasil e
comete crimes relacionados ao racismo, mas não apenas isso. Segundo o 10º
Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol [4], apenas em
2023 foram identificados 250 casos de discriminação em esportes praticados no
Brasil, dentre eles o futebol, sendo 222 em território nacional e 28 no
exterior, todos eles contra atletas brasileiros.
Crime inafiançável e
imprescritível
A Constituição, ao determinar a prática do racismo
como crime inafiançável e imprescritível [5], de modo muito
acertado não delimita “o que é racismo”, transferindo, de modo contido, sua
definição e o delineamento das sanções aplicáveis às leis infraconstitucionais.
Assim, para se compreender o racismo em termos legais, se faz necessário buscar
o conceito na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial
e Formas Correlatas de Intolerância [6], baseando-se
em um conjunto de teorias, doutrina, ideologia ou ideias, cuja subjetividade do
racismo não permite uma definição estática por meio da lei, tampouco sua
delimitação no tempo.
O que isso tem a ver com futebol? Rememorando os
dados do Observatório da Discriminação Racial do Futebol, todos os anos os
casos de discriminação nos estádios continuam sem que ações de combate surtam
os efeitos esperados.
Além disso, e com este anunciado objetivo, a
referida lei traz alguns dispositivos que definem os crimes contra a
integridade e a paz no esporte, dentre eles o artigo 201, que estabelece que “promover
tumulto, praticar ou incitar a violência ou invadir local restrito aos
competidores ou aos árbitros e seus auxiliares em eventos esportivos”, com
pena de reclusão de um a dois anos e multa, com possibilidade de aplicação da
pena em dobro em caso de racismo ou violência contra mulheres [7].
A definição decorre do já citado comando
constitucional de criminalização da prática do racismo. Outro ponto necessário
a se compreender é que o racismo, como ideia de um sistema político de
segregação de pessoas, depende do abuso, em certa medida, do poder político,
social ou econômico. Quanto à injúria racial, o Supremo Tribunal Federal
consignou que a injúria racial configura uma forma de racismo, sendo, dessarte,
imprescritível [8].
Da inconstitucionalidade do
parágrafo 7º do artigo 201 da Lei Geral do Esporte
A rigor, o raciocínio jurídico feito pelo agente
público encarregado de fazer norma [9] jurídica
no caso concreto, isto é, de emoldurar o caso concreto (torcedor do Lanús
detido por atos racistas em direção à torcida do Cruzeiro) ao que dispõe o
enunciado normativo prescrito no § 7º do artigo 201 da Lei Geral do Esporte
(provocar tumulto agravado por questões raciais) escancara uma questão central
e maior: a evidente violação a Constituição.
Em primeiro lugar, deve incidir no caso o princípio
jurídico da supremacia da Constituição, que, como o nome sugere, significa
dizer que a Constituição prevalece sobre o processo político majoritário — isto
é, sobre a vontade do poder constituído e sobre as leis em geral —, porque
fruto de uma manifestação especial da vontade popular, em uma conjuntura
própria, em um momento constitucional.
A consequência da necessária incidência deste
princípio, diz Luís Roberto Barroso, é que “nenhum ato jurídico poderá
subsistir validamente se for incompatível com a Constituição. A Constituição é
um dos pilares do modelo constitucional contemporâneo por meio do princípio da
supremacia da Constituição, que impõe primazia a qualquer regramento normativo,
qualquer que seja” [10].
Para além disso, e até por conseguinte, legislação
ordinária que vise a retirar valor jurídico de dispositivo normativo contido no
rol de direitos e garantias fundamentais acaba por esbarrar frontalmente ao
mandamento constitucional de que “não será objeto de deliberação a proposta
tendente a abolir ‘os direitos e as garantias individuais'” [11] [12] . Aqui
se está evidentemente a tratar de cláusulas pétreas.
Arrefecimento de crimes raciais
Ao se analisar a jurisprudência de tribunais
superiores, se consegue perceber que esta não é a primeira incursão em que se
tenta arrefecer de crimes raciais a importância dada pela própria Constituição,
que declara ser objetivo estruturante “promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação” (inciso IV do artigo 3º).
Assim é que o Supremo Tribunal Federal foi instado
a julgar, em Recurso Ordinário em Habeas Corpus (222.599/SC), a possibilidade
de acordo de não persecução penal (ANPP) em casos de racismo. O julgamento, sob
relatoria do ministro Edson Fachin, reforçou a supremacia da Constituição e
igualmente dos valores eleitos pelo poder constituinte como os mais importantes
a serem alcançados para uma sociedade que se pretende livre, justa e solidária
(ainda o artigo 3.º da Constituição, agora na hipótese do inciso I). Eis trecho
da “imexível” ementa:
1. A construção e o efetivo alcance de uma
sociedade fraternal, pluralista e sem preconceitos, tal como previsto no
preâmbulo da Constituição Federal, perpassa, inequivocamente, pela ruptura com
a praxis de uma sociedade calcada no constante exercício da dominação e
desrespeito à dignidade da pessoa humana. 2. A promoção do bem de todos, aliás,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil, elencados no art. 3º da Constituição Federal de 1988. 3. Assim,
a delimitação do alcance material para a aplicação do acordo “despenalizador” e
a inibição da persecutio criminis exige conformidade com o texto Constitucional
e com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro internacionalmente, como
limite necessário para a preservação do direito fundamental à não discriminação
e à não submissão à tortura – seja ela psicológica ou física, ao tratamento
desumano ou degradante, operada pelo conjunto de sentidos estereotipados que
circula e que atribui tanto às mulheres quanto às pessoas negras posição
inferior, numa perversa hierarquia de humanidades. 4. Considerada, pois, a
teleologia da excepcionalidade imposta na norma e a natureza do bem jurídico a
que se busca tutelar, tal como os casos previstos no inciso IV do art. 28 do
CPP, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) não abarca os crimes raciais,
assim também compreendidos aqueles previstos no art. 140, § 3º, do Código Penal
(HC 154248). 4. Considerada, pois, a teleologia da excepcionalidade
imposta na norma e a natureza do bem jurídico a que se busca tutelar, tal como
os casos previstos no inciso IV do art. 28 do CPP, o Acordo de Não Persecução
Penal (ANPP) não abarca os crimes raciais, assim também compreendidos aqueles
previstos no art. 140, § 3º, do Código Penal (HC 154248). 5. Recurso ordinário
em habeas corpus não provido. A C Ó R D Ã O 5. Recurso ordinário em habeas
corpus não provido.[13]
Nessa esteira também o Superior Tribunal de Justiça
foi convocado a decidir se caberia, em caso de crime de homofobia (equiparado a
racismo [14]),
oferecimento de ANPP. Acertadamente, uma vez mais, entendeu que, se a homofobia
é equiparada a crime de racismo, a consequência lógica é a de não caber,
igualmente, qualquer forma de não persecução penal. Neste sentido:
(…) 7. O Supremo Tribunal Federal, na apreciação da
ADO n. 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello, reconhecendo o estado de
mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação
legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os
incisos XLI e XLII do art. 5º da CF, deu interpretação conforme à Constituição,
para enquadrar a homofobia e a transfobia, expressões de racismo em sua
dimensão social, nos diversos tipos penais definidos na Lei n. 7.716/1989, atribuindo
a essas condutas, até que sobrevenha legislação autônoma, o tratamento legal
conferido ao crime de racismo. 8. Na espécie, o Tribunal de origem, na
apreciação do recurso ministerial, manteve afastada a pretensão de homologação
do ANPP celebrado entre o Parquet e a ora recorrida, envolvendo a suposta
prática de atos homofóbicos, conduta que se enquadra, em tese, na Lei n.
7.716/1989 ou no art. 140, § 3º, do CP, com fundamento na insuficiência do
ajuste proposto à reprovação e prevenção do crime, objeto de investigação, à
luz do direito fundamental à não discriminação, entendimento que se coaduna com
a jurisprudência do STF e deste Tribunal Superior. [15]
Em arremate: a possibilidade de se arbitrar fiança
em casos de cometimento de crime de racismo aberto, deliberado, filmado, como
foi o aqui discutido, escancara, além da inconstitucionalidade flagrante, a
face mais desumana da sociedade brasileira, isto é, a da possibilidade de
exercer o amor pela humanidade, que é longe, abstrata; e a indiferença pelo ser
humano (aqui, o próximo, o igual).
Esperamos que avancemos a ponto de concordar na
vida vivida com o pensamento expressado pela ministra Cármem Lúcia em seu mais
recente livro, Direto de/para todos: “direitos humanos se impõem pela sua
natureza, não pela sua forma ou pela formalidade dos documentos nos quais se
acham declarados e assegurados”[16].
[1] Portal CNN Esporte. Lanús paga fiança de argentino preso por gestos
racistas no Mineirão. Disponível
em:
<https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/cruzeiro/lanus-paga-fianca-de-argentino-preso-por-gestos-racistas-no-mineirao/>.
Acesso 25 outubro 2024.
[2] Portal Band.com. Torcedor do River Plate é preso após fazer
gestos racistas na partida. Disponível em
<https://www.band.uol.com.br/minas-gerais/noticias/torcedor-do-river-plate-e-preso-apos-fazer-gestos-racistas-na-partida-202410231717>.
Acesso 25 outubro 2024.
[3] Globo Esporte. Botafogo. Torcedor
do Peñarol faz gesto racista em jogo contra o Botafogo no Nilton Santos.
Disponível
em
<https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2024/10/23/torcedor-do-penarol-faz-gesto-racista-em-jogo-contra-o-botafogo.ghtml>.
Acesso 25 outubro 2024.
[4] Observatório da Discriminação
Racial no Futebol. Relatório da Discriminação Racial no Futebol 2023 – 10º
Relatório da Discriminação Racial no Futebol. Disponível em
<https://observatorioracialfutebol.com.br/wp-content/uploads/2024/09/ODRF_relatorio2023_completo.pdf>.
Acesso 26 outubro 2024.
[5] Constituição Federal. Art. 5º,
“XLII – a prática do racismo constitui
crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da
lei;”. Disponível em
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art5xlii>.
Acesso 26 outubro 2024.
[6] Decreto nº 10.932, de 10 de
janeiro de 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela
República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013. Disponível
em <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D10932.htm>.
Acesso 26 outubro 2024.
[7] Lei nº 14.597, de 14 de junho de
2023. Institui a Lei Geral do Esporte. Art. 201 (…) §
7º As penalidades previstas neste artigo serão aplicadas em dobro quando se
tratar de casos de racismo no esporte brasileiro ou de infrações cometidas
contra as mulheres. Disponível em
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14597.htm#art201>.
Acesso 26 outubro 2024.
[8] Injúria racial é crime
imprescritível, decide STF. Disponível em <
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=475646&tip=UN>.
Acesso 26 outubro 2024.
[9] GRAU, Eros Roberto. Por que
tenho medo dos juízes (a
interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6. ed., São Paulo:
Malheiros Editores. 2013.
[10] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo.
3ª ed. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 323.
[11] Constituição Federal de 1988. Art.
60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (…) § 4º não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…) IV – os
direitos e as garantias individuais.
[12] Discussão sobre a abrangência do
artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, permita-se remeter a: BARROSO,
Luís Roberto. Curso de direito
constitucional contemporâneo. 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 2011, pp.
200-202. Assim: “a posição por nós defendida vem expressa a seguir e se socorre
de um dos principais fundamentos do Estado constitucional brasileiro: a
dignidade da pessoa humana. Esse princípio integra a identidade política, ética
e jurídica da Constituição e, por consequência, não pode ser objeto de emenda
tendente a sua abolição por estar protegido por uma limitação material
implícita ao poder de reforma. ” (Idem, p. 201).
[13] STF. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS
CORPUS 222.599 SANTA CATARINA. Julgado em 7.2.2023.
[14] O Plenário do Supremo Tribunal
Federal (STF) reconheceu que atos ofensivos praticados contra pessoas da
comunidade LGBTQIAPN+ podem ser enquadrados como injúria racial. Mandado de
Injunção 4733. In:
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512663&ori=1#:~:text=O%20Plen%C3%A1rio%20do%20Supremo%20Tribunal,ser%20enquadrados%20como%20inj%C3%BAria%20racial.
[15] STJ. AREsp nº 2607962 /
GO (2024/0125989-4), relatoria ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
Julgado em 15.9.2024.
[16] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Direitos de/para todos. 1ª ed. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2024, p. 11.