Sexta Turma estendeu proteção da Lei Maria da Penha para mulheres trans
No primeiro semestre de 2022, uma decisão da
Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria
da Penha (Lei 11.340/2006) também deve ser aplicada aos casos de
violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero. O relator do
recurso, ministro Rogerio Schietti Cruz, considerou que, por se tratar de
vítima mulher, independentemente do seu sexo biológico, e tendo ocorrido a
violência em ambiente familiar – no caso dos autos, o pai agrediu a própria
filha trans –, deveria ser aplicada a legislação especial.
Com base na doutrina jurídica, Schietti
afirmou que o elemento diferenciador da abrangência da Lei Maria da Penha é o
gênero feminino, o qual nem sempre coincide com o sexo biológico. O objetivo da
lei, segundo ele, é prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e
familiar que se pratica contra a mulher por causa do gênero, e não em virtude
do sexo.
Veja, no vídeo abaixo, o depoimento da
estudante Luana Fernandes sobre a situação de violência doméstica vivenciada
por ela:
A decisão da Sexta Turma é especialmente
importante em um país que lidera o ranking mundial de
violência contra travestis e transexuais. Segundo dossiê divulgado na semana
passada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram 131
vítimas fatais em 2022, o que mantém o Brasil nessa triste liderança pelo 14º
ano consecutivo.
Embora recente, o precedente do STJ já
produziu efeitos que podem ser percebidos em órgãos diretamente incumbidos das
questões relacionadas à violência contra a mulher, como as delegacias, o
Ministério Público e a Defensoria Pública.
Delegacias de polícia passaram a
adotar atendimento especializado às vítimas trans
A delegacia de polícia é, muitas vezes, o
primeiro lugar procurado pela mulher após sofrer agressão em casa. Por isso, as
unidades da Polícia Civil costumam ter atendimento especial para essas vítimas,
inclusive para as mulheres trans – procedimento que já acontece em algumas
unidades da Federação.
Em agosto de 2022, após o precedente fixado
pelo STJ, a Polícia Civil de Minas Gerais publicou a Resolução 8.225 para, alterando resolução anterior,
estabelecer que mulheres transexuais e travestis, vítimas de violência
doméstica ou familiar baseada no gênero, fossem atendidas em delegacia
especializada, independentemente de mudança do nome no registro civil ou da
realização de cirurgia de redesignação sexual.
Entre os anos de 2020 e 2022, a Polícia Civil
de Minas contabilizou o atendimento de 224 mulheres transexuais vítimas de
violência doméstica.
No caso da Polícia Civil de São Paulo, a
delegada Jamila Jorge Ferrari explica que, atualmente, as Delegacias de Defesa
da Mulher têm a atribuição de investigar infrações penais relativas à violência
doméstica ou familiar e crimes contra a dignidade sexual que tenham como
vítimas pessoas com identidade de gênero feminina, sejam elas mulheres
cisgênero, trans ou travestis. Segundo a delegada, em 2022, 140 mulheres trans
e travestis foram atendidas pela Polícia Civil de São Paulo em casos de
violência doméstica ou familiar.
Jamila Ferrari acrescenta que, também em 2022,
a instituição policial editou a Portaria DGP 08/2022, que dispõe sobre o tratamento
específico a travestis e transexuais nas delegacias do estado, garantindo,
entre outros direitos, o respeito ao nome social, o qual deve ser observado por
todos os servidores.
A participação do MP no combate
à violência doméstica contra pessoas trans
A necessidade de atenção especial às violações
de direitos das mulheres trans também é observada pela representante da
Promotoria de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério
Público de São Paulo (MPSP), Silvia Chakian. Segundo a promotora de justiça,
"a violência de gênero decorre das relações de poder construídas e
reforçadas historicamente na nossa sociedade, reservando maior vulnerabilidade
ao gênero feminino e não ao sexo biológico".
No caso da Lei Maria da Penha, a promotora
aponta que o MPSP, no intuito de ampliar a compreensão sobre a essência e o
alcance da lei especial, promoveu vários seminários, cursos e debates
abrangendo questões de gênero.
"Ao longo dos anos, foram muitos os
episódios de resistência, inclusive por parte do Judiciário de primeiro grau, o
que levou o MPSP a interpor diversos recursos a fim de garantir a aplicação da
lei para as mulheres trans no tribunal de justiça", enfatiza.
Silvia Chakian destaca que o precedente do STJ
teve ampla divulgação interna no MP, inclusive com a publicação de uma tese pelo órgão ministerial.
A prestação de assistência jurídica pela Defensoria
Pública
No âmbito da Defensoria Pública do Distrito
Federal, a defensora e representante do Núcleo de Promoção e Defesa dos
Direitos Humanos, Juliana Braga, destaca que, apesar de alguns juízes do DF já
aplicarem a Lei Maria da Penha antes mesmo da decisão do STJ, o precedente do
Tribunal da Cidadania fortaleceu a rede de assistência social e a
conscientização deste público quanto à questão da violência de gênero.
"A decisão evidencia o direito assegurado
à liberdade da identidade de gênero de qualquer ser humano, constitucionalmente
e internacionalmente garantido", enfatiza.
Segundo a defensora pública, as mulheres trans
vítimas de violência doméstica recebem, na Defensoria, atendimento jurídico
integral e, quando necessário, são apresentados à Justiça requerimentos das
medidas protetivas de urgências previstas na Lei Maria da Penha.
Projetos para inclusão da mulher trans não foram
votados
A interpretação dada pela Sexta Turma do STJ
no julgamento do ano passado está na mesma direção de pelo menos duas propostas
de alteração legislativa que já haviam sido apresentadas no Congresso Nacional,
mas não foram votadas.
Na Câmara dos Deputados, desde 2014, tramita
o PL 8.032, para incluir a proteção de transexuais e
transgêneros na Lei 11.340/2006. O projeto está atualmente na Comissão de
Direitos Humanos e Minorias, onde aguarda o parecer do relator.
Em 2017, começou a tramitar no Senado o PLS 191, também com o objetivo de assegurar a proteção
legal a todas as mulheres, independentemente do sexo biológico, mas a
proposição foi arquivada.
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