quarta-feira, 13 de novembro de 2024

 STJ – Sexta Turma – 2024 - Mandado de busca e apreensão domiciliar em período noturno. Impossibilidade. Nulidade. Art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019. Abuso de autoridade.

Não configuração. Ausência de regulamentação dos conceitos de dia e de noite.

DESTAQUE Embora não configure o crime de abuso de autoridade, mesmo que realizada a diligência depois das 5h e antes das 21h, continua sendo ilegal e sujeito à sanção de nulidade cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar se for noite. INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR A controvérsia gira em torno de saber se, depois do advento do art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade), passou a ser válido o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar no período compreendido entre 5h e 21h.

De acordo com o disposto no art. 5º, XI, da Constituição, "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". O art. 245, caput, do CPP, no mesmo sentido, estabelece que "As buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta". A interpretação desses dispositivos sempre gerou intensa celeuma no que concerne à definição dos conceitos de "dia" e de "noite" para fins de cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar (critérios cronológico, físico-astronômico e misto). O advento do art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019 deu origem a uma nova corrente, no sentido de que, ao tipificar como crime de abuso de autoridade o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar entre 21h e 5h, o legislador haveria implicitamente regulamentado o art. 5º, XI, da Constituição e o art. 245 do CPP, para definir como "dia" o período entre 5h e 21h. Todavia, o art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019 não definiu os conceitos de "dia" e de "noite" para fins de cumprimento do mandado de busca e apreensão domiciliar. O que ocorreu foi apenas a criminalização de uma conduta que representa violação tão significativa da proteção constitucional do domicílio a ponto de justificar a incidência excepcional do direito penal contra aqueles que a praticarem. É dizer, o fato de que o cumprimento de mandado de busca domiciliar entre 21h e 5h foi criminalizado não significa que a realização da diligência em qualquer outro horário seja plenamente lícita e válida para todos os fins. Assim, mesmo que realizada a diligência depois das 5h e antes das 21h, continua sendo ilegal e sujeito à sanção de nulidade cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar se for noite, embora não configure o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019. Vale mencionar, ainda, a reforçar essa interpretação, recente e importante decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Valencia Campos y otros v. Bolívia, julgado em 18 de outubro de 2022, em que o tema da temeridade do ingresso domiciliar em período noturno foi abordado com especial destaque. Em voto concorrente para a condenação do Estado boliviano por violação da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Juiz Rodrigo Mudrovitsch e a Juíza Nancy Hernández López pontuaram que, "as invasões policiais noturnas se afiguram incompatíveis com a Convenção e com 2 os standards desta Corte, sendo admissíveis tão somente em situações absolutamente excepcionais e, acima de tudo, previstas de forma clara e taxativa na Constituição ou na Lei, e requerendo motivação reforçada que justifique as razões pelas quais não se pode realizar a diligência no horário diurno. Em outras palavras, não podem ser encaradas pelos Estados como procedimentos corriqueiros da atividade de persecução penal, à livre disposição dos operadores da justiça, e sim como instrumentos que configuram uma das mais graves intervenções na esfera de direitos dos indivíduos. Por essa razão, as invasões noturnas só são justificáveis mediante a mais rigorosa observância cumulativa dos ditames da legalidade e da proporcionalidade em todas as suas dimensões".

INFORMAÇÕES ADICIONAIS LEGISLAÇÃO

Lei n. 13.869/2019, art. 22, III

Constituição Federal (CF), 5º, XI

Código de Processo Civil (CPP), art. 245

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

 

As decisões do STF e a prática no Tribunal do Júri (parte 1)

·   Rodrigo Faucz

2 de novembro de 2024, 8h00

·       Criminal

O Supremo Tribunal Federal fixou duas teses em repercussão geral relacionadas ao Tribunal do Júri em um curto espaço de tempo (Tema 1.068 e 1.087). Ambas as decisões desconsideram os fundamentos jurídicos e históricos do julgamento por juízo por jurados. Ademais, algumas manifestações dos ministros no decorrer da sessão do STF demonstraram um profundo desconhecimento do funcionamento, do procedimento e da própria realidade do júri no Brasil.

Esse afastamento entre as discussões, a decisão e a prática do Tribunal do Júri, exige dos operadores do Direito (magistrados, promotores de justiça, defensores públicos, advogados) que lidam diariamente com a realidade posta, um filtro a partir dos pontos definitivamente assentados. Explica-se, grande parte das manifestações orais dos ministros durante o julgamento dos Temas não foram contemplados na ementa publicada pelo STF. Aliás, os votos de cada ministro sequer foram publicizados, o que exige cautela na aplicação dos precedentes.

Assim, escrevo esse artigo em duas partes, com foco em cada um dos temas, analisando tão somente os contornos da decisão divulgada.

Tema 1.068: A execução imediata independentemente da quantidade da pena

No Tema 1.068, derivado do julgamento do RE 1.253.340, o STF reconheceu, por maioria, a inconstitucionalidade do limite de 15 anos do artigo 492, I, “e”, do CPP, excluindo neste dispositivo e nos §4º e §5º, suas respectivas referências.

.  Em seguida, o presidente proferirá sentença que: 

I – no caso de condenação: 

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;

§3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea e do inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação.

§4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo.

§5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso:

I – não tem propósito meramente protelatório; e

II – levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.”

De agora em diante, deve-se ler:

“Art. 492.  Em seguida, o presidente proferirá sentença que: 

I – no caso de condenação: 

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;

§3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea edo inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação.

§4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri não terá efeito suspensivo.5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso:

I – não tem propósito meramente protelatório; e

II – levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.”

Como se vê, no caso de condenação, o juiz presidente determinará a execução provisória da pena independentemente de sua quantidade, desde que, claro, o regime de cumprimento inicial seja o fechado. Em se tratando de regime aberto ou semiaberto, a intimação e os trâmites devem ser realizados no processo de execução da pena, restando proibido o cumprimento provisório em regime mais gravoso.

Também estão fora do escopo da execução imediata da pena as eventuais condenações de competência do juiz presidente após decisão desclassificatória pelo Conselho de Sentença. Isso porque, na visão do STF, o que sustenta a execução automática é justamente a soberania dos vereditos, o que não encontra guarida em decisões monocráticas do magistrado.

parágrafo terceiro: a impossibilidade de determinar a execução automática da pena

Por outro lado, não ocorreu qualquer alteração no parágrafo 3º do artigo 492 do CPP, o qual ganha especial relevância para proibição do encarceramento provisório em processos que tenham sido alegadas nulidades ou que a decisão condenatória esteja em desconformidade com as provas do processo.

Frise-se: de acordo com o §3º, se a defesa sustentar tempestivamente alguma nulidade, fazendo constar na ata de julgamento e esta nulidade tiver o condão de anular a sessão de julgamento, o juiz presidente não poderá determinar a execução provisória da pena!

É a única interpretação possível em respeito aos princípios da presunção de inocência e do devido processo legal. Por mais que a decisão do STF permita a execução antecipada da pena, ao não modificar as hipóteses em que o acusado pode recorrer em liberdade, a corte reconhece que existem situações em que o julgamento não possui o grau necessário de definitividade para que aquilo aconteça. Destarte, se houver qualquer possibilidade de que o júri seja anulado e o acusado submetido a novo julgamento, não se pode admitir que ele seja encarcerado.

Certamente que não são todas as nulidades sustentadas que permitem ao acusado recorrer em liberdade, devendo haver uma somatória de fatores: (a) nulidades arguidas tempestivamente (artigo 571, V e VIII do CPP); (b) nulidades descritas na ata dos trabalhos como exigência do artigo 495 do CPP ou comprovadas por outro meio (gravação em sistema audiovisual, por exemplo); (c) circunstâncias que não sejam manifestamente infundadas (não valendo para aquelas sem qualquer respaldo legal, jurisprudencial ou doutrinário); (d) nulidades que, caso sejam reconhecidas em sede recursal, possuam o condão de anular a sessão de julgamento, o processo ou mesmo absolver o acusado.

Perceba-se que o parágrafo 3º do artigo 492 do CPP ao prever a não execução provisória da pena “se houver questão substancial” que “plausivelmente” leve “à revisão da condenação”, não está exigindo do juiz presidente uma mera reanálise da nulidade que já fora realizada no decorrer da sessão de julgamento. Isso porque, parte-se do pressuposto que, ao final do júri, certamente o juiz presidente, ao ser confrontado com a nulidade, não a acolheu e fundamentou sua negativa na ata de julgamento. Sendo assim, nesta fase, o magistrado apenas deve fazer uma ponderação se a nulidade rejeitada por ele, caso reconhecida pelo tribunal, possui a capacidade de anular o julgamento. Se a resposta for positiva, a execução imediata não pode ser determinada.

Parágrafos 4º e 5º: o efeito suspensivo da apelação

Hipoteticamente, caso o magistrado, em violação ao §3º, determinar a execução imediata da pena mesmo após a sustentação tempestiva de

nulidade por parte da defesa, esta poderá requerer a concessão de efeito suspensivo ao recurso de apelação.

A compreensão dos parágrafos §3º, §4º e §5º deve ser coerente. Assim, se a defesa tiver arguida alguma questão que possa resultar em absolvição, anulação da sentença ou novo julgamento, o tribunal deverá atribuir efeito suspensivo para apelação interposta. Certamente que, havendo qualquer destas possibilidades, não se trata de recurso meramente protelatório, eis que a legitimidade do próprio julgamento está atrelado ao respeito absoluto às regras procedimentais.

Perceba-se que a última parte do parágrafo §5º, que previa a redução da condenação para parâmetro menor a 15 anos foi afastada pelo STF, tendo que ser interpretada como a diminuição da pena que tenha como consequência a alteração do regime de cumprimento. Por exemplo, se o juiz presidente fixar a pena de 9 anos em regime inicial fechado, mas a defesa interpõe apelação buscando a correção da dosimetria que, se aceita, aproximará a pena do mínimo legal, com consequente alteração para o regime de cumprimento no semiaberto, seria uma temeridade exigir que o acusado aguarde o resultado da apelação em regime mais gravoso.

Considerando o prazo para interposição e apresentação das razões para o tribunal (artigo 593 e artigo 600 do CPP), o trâmite burocrático com a distribuição ao relator e, ainda, a inexigência de que o acusado fique preso indevidamente até a concessão de efeito suspensivo, a defesa poderá fazer o pedido em petição apartada ou impetrar um Habeas Corpus imediatamente após a sessão, conforme já se manifestou aqui na ConJur Aury Lopes Jr.

A soberania dos vereditos: uma garantia constitucional contra o cidadão?

Pelo aspecto jurídico, evidentemente que a decisão foi equivocada, para não dizer lamentável. Além de ser contrária à própria jurisprudência do STF no sentido de que não se pode admitir o início da execução da pena antes do trânsito em julgado – e, portanto, violando frontalmente o princípio da presunção da inocência –, a corte utilizou uma garantia fundamental do cidadão (a soberania dos vereditos, prevista no artigo 5º, XXXVIII, “c” da CF), contra o próprio cidadão. Uma verdadeira esquizofrenia constitucional.

A tese restou fixada com o seguinte texto: “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”. A interpretação deve ser estrita: não há uma exigência da execução imediata da pena, mas sim uma autorização, desde que não tenham ocorrido circunstâncias, no decorrer do julgamento ou do processo, que possam levar à submissão do acusado a novo julgamento.

Na segunda parte do artigo, que será publicada semana que vem, escreverei sobre o Tema 1.087, em que o Supremo Tribunal Federal fixou tese permitindo o recurso por parte do Ministério Público de decisão absolutória amparada no quesito genérico, bem como manteve a possibilidade de sustentação da clemência pela defesa.

é advogado criminalista habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

 


 Fiança em caso de racismo no futebol escancara inconstitucionalidade do § 7º do artigo 201 da Lei Geral do Esporte

3 de novembro de 2024, 9h21

·       Constitucional

Para amantes de futebol, ver seu time competindo em campeonatos continentais é sempre um momento de alegria, mas, por outro lado, de muita tensão, sobretudo quando envolve os clubes de futebol da América do Sul. Para quem é torcedor, há uma certeza: a paixão irá aflorar, as energias da competição em campo irão emanar para as arquibancadas e, a partir daí, não raras vezes se iniciará um processo de provocações, xingamentos e, em muitos casos, desrespeitos ao próprio espetáculo futebolístico.

Nesse contexto, o jogo ocorrido entre o Cruzeiro e Lanús, time argentino, pela Copa Sul-Americana de 2024, no estádio Mineirão, no dia 23 de outubro, foi marcado por um episódio de racismo, em que um jovem argentino de 18 anos (torcedor do Lanús) foi flagrado imitando um macaco para a torcida cruzeirense [1].

Para melhor ilustrar os fatos, no dia 22 de outubro, um dia antes do caso acima citado, no jogo ocorrido entre Atlético Mineiro e River Plate (da Argentina), um homem de 48 anos foi preso em flagrante por gestos racistas durante a partida [2]. No dia 23 de outubro, no jogo do Botafogo contra o Peñarol, no estádio Nilton Santos, um torcedor uruguaio fez gestos racistas contra a torcido botafoguense [3] sem ser, contudo, identificado e preso. Esses dois últimos jogos ocorreram pela Copa Libertadores da América.

Os três fatos narrados acima têm em comum a sensação de impunidade em favor do torcedor estrangeiro que chega ao Brasil e comete crimes relacionados ao racismo, mas não apenas isso. Segundo o 10º Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol [4], apenas em 2023 foram identificados 250 casos de discriminação em esportes praticados no Brasil, dentre eles o futebol, sendo 222 em território nacional e 28 no exterior, todos eles contra atletas brasileiros.

Crime inafiançável e imprescritível

A Constituição, ao determinar a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível [5], de modo muito acertado não delimita “o que é racismo”, transferindo, de modo contido, sua definição e o delineamento das sanções aplicáveis às leis infraconstitucionais. Assim, para se compreender o racismo em termos legais, se faz necessário buscar o conceito na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância [6], baseando-se em um conjunto de teorias, doutrina, ideologia ou ideias, cuja subjetividade do racismo não permite uma definição estática por meio da lei, tampouco sua delimitação no tempo.

O que isso tem a ver com futebol? Rememorando os dados do Observatório da Discriminação Racial do Futebol, todos os anos os casos de discriminação nos estádios continuam sem que ações de combate surtam os efeitos esperados.

Além disso, e com este anunciado objetivo, a referida lei traz alguns dispositivos que definem os crimes contra a integridade e a paz no esporte, dentre eles o artigo 201, que estabelece que “promover tumulto, praticar ou incitar a violência ou invadir local restrito aos competidores ou aos árbitros e seus auxiliares em eventos esportivos”, com pena de reclusão de um a dois anos e multa, com possibilidade de aplicação da pena em dobro em caso de racismo ou violência contra mulheres [7].

A definição decorre do já citado comando constitucional de criminalização da prática do racismo. Outro ponto necessário a se compreender é que o racismo, como ideia de um sistema político de segregação de pessoas, depende do abuso, em certa medida, do poder político, social ou econômico. Quanto à injúria racial, o Supremo Tribunal Federal consignou que a injúria racial configura uma forma de racismo, sendo, dessarte, imprescritível [8].

Da inconstitucionalidade do parágrafo 7º do artigo 201 da Lei Geral do Esporte

A rigor, o raciocínio jurídico feito pelo agente público encarregado de fazer norma [9] jurídica no caso concreto, isto é, de emoldurar o caso concreto (torcedor do Lanús detido por atos racistas em direção à torcida do Cruzeiro) ao que dispõe o enunciado normativo prescrito no § 7º do artigo 201 da Lei Geral do Esporte (provocar tumulto agravado por questões raciais) escancara uma questão central e maior: a evidente violação a Constituição.

Em primeiro lugar, deve incidir no caso o princípio jurídico da supremacia da Constituição, que, como o nome sugere, significa dizer que a Constituição prevalece sobre o processo político majoritário — isto é, sobre a vontade do poder constituído e sobre as leis em geral —, porque fruto de uma manifestação especial da vontade popular, em uma conjuntura própria, em um momento constitucional.

A consequência da necessária incidência deste princípio, diz Luís Roberto Barroso, é que “nenhum ato jurídico poderá subsistir validamente se for incompatível com a Constituição. A Constituição é um dos pilares do modelo constitucional contemporâneo por meio do princípio da supremacia da Constituição, que impõe primazia a qualquer regramento normativo, qualquer que seja” [10].

Para além disso, e até por conseguinte, legislação ordinária que vise a retirar valor jurídico de dispositivo normativo contido no rol de direitos e garantias fundamentais acaba por esbarrar frontalmente ao mandamento constitucional de que “não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir ‘os direitos e as garantias individuais'” [11] [12] . Aqui se está evidentemente a tratar de cláusulas pétreas.

Arrefecimento de crimes raciais

Ao se analisar a jurisprudência de tribunais superiores, se consegue perceber que esta não é a primeira incursão em que se tenta arrefecer de crimes raciais a importância dada pela própria Constituição, que declara ser objetivo estruturante “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV do artigo 3º).

Assim é que o Supremo Tribunal Federal foi instado a julgar, em Recurso Ordinário em Habeas Corpus (222.599/SC), a possibilidade de acordo de não persecução penal (ANPP) em casos de racismo. O julgamento, sob relatoria do ministro Edson Fachin, reforçou a supremacia da Constituição e igualmente dos valores eleitos pelo poder constituinte como os mais importantes a serem alcançados para uma sociedade que se pretende livre, justa e solidária (ainda o artigo 3.º da Constituição, agora na hipótese do inciso I). Eis trecho da “imexível” ementa:

1. A construção e o efetivo alcance de uma sociedade fraternal, pluralista e sem preconceitos, tal como previsto no preâmbulo da Constituição Federal, perpassa, inequivocamente, pela ruptura com a praxis de uma sociedade calcada no constante exercício da dominação e desrespeito à dignidade da pessoa humana. 2. A promoção do bem de todos, aliás, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, elencados no art. 3º da Constituição Federal de 1988. 3. Assim, a delimitação do alcance material para a aplicação do acordo “despenalizador” e a inibição da persecutio criminis exige conformidade com o texto Constitucional e com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro internacionalmente, como limite necessário para a preservação do direito fundamental à não discriminação e à não submissão à tortura – seja ela psicológica ou física, ao tratamento desumano ou degradante, operada pelo conjunto de sentidos estereotipados que circula e que atribui tanto às mulheres quanto às pessoas negras posição inferior, numa perversa hierarquia de humanidades. 4. Considerada, pois, a teleologia da excepcionalidade imposta na norma e a natureza do bem jurídico a que se busca tutelar, tal como os casos previstos no inciso IV do art. 28 do CPP, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) não abarca os crimes raciais, assim também compreendidos aqueles previstos no art. 140, § 3º, do Código Penal (HC 154248). 4. Considerada, pois, a teleologia da excepcionalidade imposta na norma e a natureza do bem jurídico a que se busca tutelar, tal como os casos previstos no inciso IV do art. 28 do CPP, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) não abarca os crimes raciais, assim também compreendidos aqueles previstos no art. 140, § 3º, do Código Penal (HC 154248). 5. Recurso ordinário em habeas corpus não provido. A C Ó R D Ã O 5. Recurso ordinário em habeas corpus não provido.[13]

Nessa esteira também o Superior Tribunal de Justiça foi convocado a decidir se caberia, em caso de crime de homofobia (equiparado a racismo [14]), oferecimento de ANPP. Acertadamente, uma vez mais, entendeu que, se a homofobia é equiparada a crime de racismo, a consequência lógica é a de não caber, igualmente, qualquer forma de não persecução penal. Neste sentido:

(…) 7. O Supremo Tribunal Federal, na apreciação da ADO n. 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello, reconhecendo o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da CF, deu interpretação conforme à Constituição, para enquadrar a homofobia e a transfobia, expressões de racismo em sua dimensão social, nos diversos tipos penais definidos na Lei n. 7.716/1989, atribuindo a essas condutas, até que sobrevenha legislação autônoma, o tratamento legal conferido ao crime de racismo. 8. Na espécie, o Tribunal de origem, na apreciação do recurso ministerial, manteve afastada a pretensão de homologação do ANPP celebrado entre o Parquet e a ora recorrida, envolvendo a suposta prática de atos homofóbicos, conduta que se enquadra, em tese, na Lei n. 7.716/1989 ou no art. 140, § 3º, do CP, com fundamento na insuficiência do ajuste proposto à reprovação e prevenção do crime, objeto de investigação, à luz do direito fundamental à não discriminação, entendimento que se coaduna com a jurisprudência do STF e deste Tribunal Superior. [15]

Em arremate: a possibilidade de se arbitrar fiança em casos de cometimento de crime de racismo aberto, deliberado, filmado, como foi o aqui discutido, escancara, além da inconstitucionalidade flagrante, a face mais desumana da sociedade brasileira, isto é, a da possibilidade de exercer o amor pela humanidade, que é longe, abstrata; e a indiferença pelo ser humano (aqui, o próximo, o igual).

Esperamos que avancemos a ponto de concordar na vida vivida com o pensamento expressado pela ministra Cármem Lúcia em seu mais recente livro, Direto de/para todos: “direitos humanos se impõem pela sua natureza, não pela sua forma ou pela formalidade dos documentos nos quais se acham declarados e assegurados”[16].

[1] Portal CNN Esporte. Lanús paga fiança de argentino preso por gestos racistas no MineirãoDisponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/cruzeiro/lanus-paga-fianca-de-argentino-preso-por-gestos-racistas-no-mineirao/>. Acesso 25 outubro 2024.

[2] Portal Band.com. Torcedor do River Plate é preso após fazer gestos racistas na partida. Disponível em <https://www.band.uol.com.br/minas-gerais/noticias/torcedor-do-river-plate-e-preso-apos-fazer-gestos-racistas-na-partida-202410231717>. Acesso 25 outubro 2024.

[3] Globo Esporte. Botafogo. Torcedor do Peñarol faz gesto racista em jogo contra o Botafogo no Nilton Santos.

Disponível em <https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2024/10/23/torcedor-do-penarol-faz-gesto-racista-em-jogo-contra-o-botafogo.ghtml>.  Acesso 25 outubro 2024.

[4] Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Relatório da Discriminação Racial no Futebol 2023 – 10º Relatório da Discriminação Racial no Futebol. Disponível em <https://observatorioracialfutebol.com.br/wp-content/uploads/2024/09/ODRF_relatorio2023_completo.pdf>. Acesso 26 outubro 2024.

[5] Constituição Federal. Art. 5º, “XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;”. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art5xlii>. Acesso 26 outubro 2024.

[6] Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013. Disponível em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D10932.htm>. Acesso 26 outubro 2024.

[7] Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023. Institui a Lei Geral do Esporte. Art. 201 (…) § 7º As penalidades previstas neste artigo serão aplicadas em dobro quando se tratar de casos de racismo no esporte brasileiro ou de infrações cometidas contra as mulheres. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14597.htm#art201>. Acesso 26 outubro 2024.

[8] Injúria racial é crime imprescritível, decide STF. Disponível em < https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=475646&tip=UN>. Acesso 26 outubro 2024.

[9] GRAU, Eros Roberto. Por   que   tenho   medo   dos   juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6. ed., São Paulo: Malheiros Editores. 2013.

[10] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 323.

[11] Constituição Federal de 1988. Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (…) § 4º não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…) IV – os direitos e as garantias individuais.

[12] Discussão sobre a abrangência do artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, permita-se remeter a: BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 2011, pp. 200-202. Assim: “a posição por nós defendida vem expressa a seguir e se socorre de um dos principais fundamentos do Estado constitucional brasileiro: a dignidade da pessoa humana. Esse princípio integra a identidade política, ética e jurídica da Constituição e, por consequência, não pode ser objeto de emenda tendente a sua abolição por estar protegido por uma limitação material implícita ao poder de reforma. ” (Idem, p. 201).

[13] STF. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 222.599 SANTA CATARINA. Julgado em 7.2.2023.

[14] O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que atos ofensivos praticados contra pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ podem ser enquadrados como injúria racial. Mandado de Injunção 4733. In: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512663&ori=1#:~:text=O%20Plen%C3%A1rio%20do%20Supremo%20Tribunal,ser%20enquadrados%20como%20inj%C3%BAria%20racial.

[15] STJ. AREsp nº 2607962 / GO (2024/0125989-4), relatoria ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Julgado em 15.9.2024.

[16] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Direitos de/para todos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024, p. 11.

 Acesso aos autos de inquérito policial não é direito líquido e certo, diz TJ-SP

O acesso de uma parte interessada aos autos de inquérito policial não é direito líquido e certo. Ainda que ela esteja devidamente habilitada e representada por advogado, eventual consulta não é irrestrita. Há de se preservar o sigilo das investigações em andamento.

Antonio Carreta/TJ-SP
Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo aprovou resolução sobre juiz de garantias

TJ-SP negou acesso de viúva de homem assassinado ao inquérito policial

Essa fundamentação foi adotada pela 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo ao negar mandado de segurança à viúva de um homem morto em suposto tiroteio com policiais militares, em fevereiro deste ano, em Santos (SP).

Segundo a mulher, a advogada que atua na defesa de seus interesses não possui acesso ao teor das provas já documentadas no inquérito em virtude do segredo de Justiça decretado pelo juízo da Vara do Júri de Santos.

“Não se vislumbra evidente direito líquido e certo da advogada ao acesso irrestrito aos autos que estejam sendo conduzidos sob sigilo, se o segredo dos autos é imprescindível para as investigações e há diligências em curso, tal como na hipótese em tela, de acordo com as informações prestadas”, anotou o desembargador Euvaldo Chaib

Relator do remédio constitucional, Chaib observou que o delegado responsável pelo inquérito pediu a decretação do sigilo com a alegação de que “o acesso indiscriminado e sem controle pode tumultuar os feitos, a celeridade e a eficácia da apuração”.

A morte do companheiro da autora da ação é investigada em um contexto maior, no qual outros homicídios são apurados. O Ministério Público se disse favorável ao pedido de habilitação da mulher nos autos, mas com a ressalva de que a determinação do sigilo deve permanecer até o fim das investigações. Desse modo, o relator não vislumbrou arbitrariedade ou absurdo na decisão que restringiu o acesso aos dados, que se baseou na legislação.

Chaib citou o artigo 20 do Código de Processo Penal, conforme o qual “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Os desembargadores Camilo Léllis e Edison Brandão seguiram o relator.

MS 2185729-31.2024.8.26.0000

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Execução antecipada da pena no Júri e as possibilidades de recorrer em liberdade

 Execução antecipada da pena no Júri e as possibilidades de recorrer em liberdade

25 de outubro de 2024, 8h00

·       Criminal

Muito já se escreveu [1] sobre a inconstitucionalidade da execução antecipada da pena prevista no artigo 492, I, ‘e’ do CPP, com bastante autoridade nos argumentos, sublinhe-se. Mas, infelizmente, prevaleceu o argumento de autoridade do Supremo Tribunal Federal, proferido no julgamento do RE 1.253.340 (Tema 1.068), em que se decidiu que é constitucional a execução antecipada e sequer a pena necessita ser superior a 15 anos.

Mas e agora? Condenado no plenário é sempre preso? Pensamos que não, pois diferentes situações podem acontecer no plenário e há espaço – no artigo 492 – para atribuição de efeito suspensivo, sendo que nada disso foi afastado pelo STF. Vejamos algumas situações.

Sabemos que o Tribunal do Júri exerce vis atractiva, artigo 78, I do CPP, cabendo a ele julgar o crime doloso contra a vida (tentado ou consumado) e todos os conexos. Imaginemos a hipótese de o réu ser acusado por homicídio doloso e tráfico de drogas (ou ocultação de cadáver, porte ilegal de arma de fogo, ou qualquer outro crime conexo). Levado a júri, é absolvido do crime de homicídio e condenado pelo conexo? Aplica-se a execução antecipada da pena? Entendemos que não. Afastados eventuais mecanismos de consenso cabíveis em relação ao crime residual (transação penal, suspensão condicional ou mesmo ANPP), também não é caso de prisão.

É preciso atentar para a ratio decidendi (do julgamento do STF) que vem no sentido de uma tutela especial dos crimes dolosos contra a vida, quando o agente é condenado pelo Tribunal do Júri. Não faz nenhum sentido o réu cumprir antecipadamente uma pena por crime diverso, pelo qual jamais haveria execução antecipada se tivesse tramitado em outro procedimento (ou seja, sem a reunião pela conexão). Nessa linha, é inconstitucional e insustentável determinar o imediato recolhimento de alguém condenado por tráfico de drogas, porte ilegal de arma de fogo, ocultação de cadáver, enfim, por qualquer outro crime que não é doloso contra a vida e que, se não houvesse a conexão, jamais seria julgado no Tribunal do Júri e, portanto, jamais haveria execução antecipada da pena (não estamos falando de prisão preventiva, sempre cabível, se presente sua cautelaridade, por elementar).

Desclassificação e expectativa de êxito de futuro recurso defensivo

Na mesma linha pensamos ser inconstitucional, e não abarcada pela decisão do STF, a execução antecipada da pena se houver uma desclassificação, ou seja, se os jurados – por exemplo – negarem o dolo e se operar a desclassificação para crime culposo. Uma vez condenado por homicídio culposo, poderá recorrer em liberdade (lembrando que sequer cabe prisão preventiva em caso de crime culposo), não se aplicando o entendimento do STF.

Portanto, de plano já temos duas situações em que o imputado, ainda que condenado no plenário do Júri, não pode ser submetido a execução antecipada da pena.

Mas e se condenado, por crime doloso contra a vida, sempre deverá ser preso e iniciar a execução antecipada? Não.

Existe a possibilidade de o juiz presidente do Tribunal do Júri deixar de determinar a execução antecipada da pena nas hipóteses do artigo 492, § 3º ou de se buscar a atribuição de efeito suspensivo para a apelação, nos casos dos parágrafos 5º e 6º:

“Art. 492. (…)

§3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea e do inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação.

§5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o §4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso.

I – não tem propósito meramente protelatório; e

II – levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.

§6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente na apelação ou por meio de petição em separado dirigida diretamente ao relator, instruída com cópias da sentença condenatória, das razões da apelação e de prova da tempestividade, das contrarrazões e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia.”

Portanto, no caso do § 3º, o próprio juiz presidente do Júri poderá deixar de determinar a imediata prisão do réu, desde que vislumbre a possibilidade – diante de determinada questão do julgamento – de uma revisão do julgamento por parte do Tribunal de Justiça ou Regional Federal (conforme o caso). Trata-se, no fundo, de uma situação em que o juiz que presidiu o julgamento tem consciência de que aquele júri poderá ser anulado (hipótese do artigo 593, III, ‘a’ do CPP) ou que os jurados proferiram uma decisão manifestamente contrária a prova dos autos (artigo 593, III, ‘d’ do CPP). De antemão ele vislumbra a probabilidade de êxito do futuro recurso defensivo (inclusive se sugere que seja interposto em plenário mesmo, indicando a alínea ‘a’ ou ‘d’ (ou ambas)) que demonstra o risco de uma execução antecipada daquela pena.

Nesta situação, de forma fundamentada, poderá o juiz presidente do júri deixar de determinar a execução antecipada da pena e manter o réu em liberdade.

Pedido ao relator

A segunda hipótese de atribuição de efeito suspensivo ao recurso defensivo e, portanto, de suspensão da execução antecipada já iniciada (quando do término do julgamento), é através de um pedido ao relator da apelação. Esse pedido poderá ser feito no corpo das razões da apelação (preliminar) ou em petição separada, autônoma. Deverá o relator avaliar, de forma cumulativa:

– que o recurso não seja meramente protelatório;

– traga como fundamento questões que possam resultar em “absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão”.

Portanto, caberá ao apelante demonstrar a plausibilidade, a viabilidade dos fundamentos do recurso de apelação, nos termos do artigo 593, III, se:

a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia;

b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados;

c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança;

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

Lembrando que no caso da alínea “a”, a consequência do provimento da apelação é a remessa a novo júri; nos casos das alíneas “b” e “c”, a consequência é que o próprio tribunal pode corrigir a sentença, sem a necessidade de novo júri; por fim, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, o tribunal, dando provimento ao recurso, encaminhará o réu a novo júri. Portanto, quando o relator vislumbrar a possibilidade (juízo de verossimilhança, não de certeza) de acolhimento da apelação para enviar réu a novo júri (letras “a” e “d”) ou que a correção da sentença acarretará uma absolvição ou desclassificação para um crime que não é doloso contra a vida (porque entendemos que segundo a ‘ratio decidendi’ da decisão do STF, a execução antecipada só pode ocorrer em caso de condenação por crime doloso contra a vida), permitirá que o réu aguarde o julgamento em liberdade, suspendendo a execução antecipada.

Redução da pena

Com relação à última situação apontada no inciso II do parágrafo 5º do artigo 492 – redução da pena para patamar inferior a 15 anos de reclusão – pensamos que foi afastada pelo julgamento do STF, que não mais exige que a pena seja superior a 15 anos para que ocorra a execução antecipada.

O grande inconveniente desse caminho (do pedido de atribuição de efeito suspensivo) é que o réu ficará preso no período que vai do término da sessão do júri até a apreciação do pedido pelo tribunal, em grau de apelação, o que poderá gerar uma prisão desnecessária e infundada por semanas. Portanto, não se afasta, em casos pontuais, o uso do habeas corpus em conjunto com a apelação, para obtenção da liberdade (pela via de atribuição de efeito suspensivo ao apelo defensivo).

Enfim, ainda que o legislador preveja hipóteses de concessão de efeito suspensivo que evite a execução antecipada da pena, infelizmente isso é um mero paliativo, que enfrentará resistência diante do furor punitivista e a postura burocrática de muitos julgadores, resultando na desnecessária e inconstitucional execução antecipada da pena aplicada em primeiro grau de jurisdição. Sempre recordando, que se o réu representar algum perigo, a justificar a necessidade cautelar, poderá ser decretada a prisão preventiva. Então, estamos tratando de uma prisão sem qualquer fundamento cautelar, de periculum libertatis, que a justifique. Tudo isso com o aval do STF, lamentavelmente.

E neste momento, ao cair da cortina, não há como não lembrar do grande Lenio Streck  e o “fator Julia Roberts”, na cena épica do Dossiê Pelicanothe supreme court is wrong.