STF e STJ divergem sobre reconhecimento e geram insegurança em aplicação do CPP
31 de
julho de 2023, 18h48
Uma recente decisão da 1ª Turma do
Supremo Tribunal Federal jogou luz sobre a rusga jurisprudencial que acomete as
duas cortes superiores do país — gerando insegurança e imprevisibilidade sobre
aplicação do Código de Processo Penal. A divergência paira sobre o artigo 226,
em especial seu inciso segundo, que versa sobre o reconhecimento pessoal, ou
seja, quando a vítima designa o possível infrator com base em identificação na
delegacia (ou por meio de fotografia):
Artigo 226 - Quando houver
necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte
forma:
II - a pessoa, cujo
reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que
com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o
reconhecimento a apontá-la.
STJ e STF se posicionam de forma distinta sobre reconhecimento em
delegacia
Desde 2015 a 1ª Turma do Supremo entende que o inciso não tem aplicação
obrigatória (Habeas Corpus 125.026, relatoria da ministra Rosa Weber), ou seja,
a semântica fria do termo "se possível" prevalece. A orientação tem embasado
as decisões dessa turma que, mesmo quando há fragilidade no conjunto
probatório, mantém as prisões por considerar idônea a prova testemunhal colhida
a partir de reconhecimento pessoal.
Em 2020, todavia, houve uma mudança
de paradigmas em torno do tema. No
HC 598.886, o ministro Rogerio Schietti tentou estabelecer novos parâmetros e
assentou entendimento no sentido de que os incisos do artigo 226 são
obrigatórios. Em uma decisão multidisciplinar, em que aborda questões da
"Psicologia moderna" para argumentar sobre as possibilidades do erro
humano a partir da memória, ele afirmou:
"O reconhecimento de pessoas
deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de
Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê
na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem
compreendido, de 'mera recomendação' do legislador. Em verdade, a inobservância
de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de
lastro para sua condenação."
A decisão teve importante reflexo
jurisprudencial. De outubro de 2020, quando foi proferida sentença, até
dezembro de 2022, o STJ registrou 28 acórdãos das duas turmas criminais e 61
decisões monocráticas que absolveram réus ou revogaram prisões preventivas por
conta dos vícios provocados pelo reconhecimento pessoal feito em desacordo com
o que diz o CPP e, claro, com o entendimento proferido por Schietti. Os
números foram levantados pelo próprio gabinete do ministro.
A cizânia escalou ao Supremo. A 2ª
Turma divergiu da outra parte do colegiado e, a
partir de um voto de Gilmar Mendes (HC 206.846), absolveu um réu
alegando inobservância das exigências do reconhecimento pessoal pelo CPP. Para
Gilmar, o inciso 6 do CPP "não é mera recomendação, mas regime necessário
à confiabilidade da informação dependente da memória, como o
reconhecimento".
Criminalistas entrevistados pela
revista eletrônica Consultor Jurídico são unânimes em apontar
que essa rusga jurisprudencial afeta de forma desproporcional as pessoas
pretas e pobres, que constituem maioria da massa carcerária e encontram mais
uma vulnerabilidade no processo penal, que deveria protegê-las dos impropérios
acusatórios.
Segundo os especialistas, a
divergência também evidencia o excesso de crédito dado à prova
testemunhal, invariavelmente sujeita ao erro humano, e a inobservância às
jurisprudências consolidadas.
"O Judiciário não obedece seus
próprios precedentes, não tem uma tese clara, uma teoria clara, sobre o que é
precedente, e isso faz com que as decisões se alterem de um caso para o outro.
Além disso, o outro problema, nesse caso específico, é que o Judiciário faz
leis, está legislando. Esse é um problema central: o que é um precedente e por
que que o Judiciário pode criar leis ou modificar as leis fora do controle de
constitucionalidade.", diz o professor e criminalista Lenio Streck,
colunista da ConJur.
Em recente artigo
sobre o tema, Streck questionou: "Se o nosso sistema está ancorado (ainda) no
civil law, não se pode admitir que o judiciário aplique o direito
desaplicando-o, porque a observância da legalidade pelo Poder Judiciário
traduz-se em segurança jurídica, já que está no ordenamento jurídico (na
legalidade) a previsão de todos os direitos e deveres inerentes ao Estado e aos
cidadãos."
Problema estrutural
A zona cinzenta em que se encontra o
artigo 226, ao menos do ponto de vista jurisprudencial, acaba trazendo à
superfície outros problemas atrelados ao Direito Penal no país, a começar pelo
próprio trabalho da polícia que, em muitos casos, não consegue ou não quer
reunir conjunto probatório fidedigno para imputar crime a determinado
indivíduo.
O debate também respinga nas
instâncias inferiores, que não observam os julgados das cortes superiores e
alimentam certa pretensão punitivista.
"[Essa discussão] passa por uma
parcela do Judiciário, por uma readequação da valoração daquilo que é prova. As
decisões do STJ foram essenciais para retomar o rumo do que se tem como
adequado diante do que a Constituição preconiza. A divergência nesse caso
contribui para que as antinormatividades ocorram. É permitir que pessoas sejam
reconhecidas de maneira indevida e sejam condenadas de maneria indevida",
diz Glauco Mazzetto, defensor público e assessor criminal da
Defensoria Pública de São Paulo.
O artigo do CPP, de fato, tem gerado
distorções que ganharam ampla repercussão e minaram a credibilidade de parte do
Judiciário. Em um caso proeminente (HC 686.317), um homem foi preso por furto
porque estava com uma camisa do Barcelona do jogador Lionel Messi. Isso porque,
segundo os autos, o comerciante roubado viu na câmera que o suposto ladrão
estava vestido da mesma forma.
O homem afirmou que encontrou a
camisa na rua e a vestiu. Por isso — e pelo seu "porte físico" —
acabou condenado. Depois, foi absolvido e solto pelo STJ.
No Rio de Janeiro, a Defensoria
Pública do estado teve de entrar com um pedido na Vara Criminal de Petrópolis
para que a 57ª Delegacia de Polícia retirasse a foto de um homem negro do
"cadastro de suspeitos". Ele foi apontado nove vezes distintas
como autor de crime — e em todas absolvido. O homem sequer havia dado
autorização para que sua imagem constasse no álbum.
Em outro caso (REsp 1.914.998) a
vítima de assalto afirmou, diante de uma fotografia, que o homem apresentado
era "70% semelhante" ao suposto ladrão. O homem, absolvido em
primeiro grau e condenado no Tribunal de Justiça de São Paulo, acabou absolvido
novamente neste caso, que teve ampla repercussão não só pela questão do
reconhecimento, mas pelo fato de que consolidou a jurisprudência estipulada por
Schietti nas turmas criminais do STJ.
"Foram diversos os estudos
feitos, inclusive pela organização norte-americana Innocence Project,
divulgando os erros judiciais baseados em reconhecimentos falhos, que certamente
contribuíram para a mudança de entendimento que hoje se consolidou no
STJ", afirma a defensora pública Isabela Veloso Monreal, que
atuou no caso.
Para ela, a jurisprudência do STJ
trouxe esperança de que "cessem as inúmeras injustiças que se perpetuaram
durante tantos anos".
"Embora não se veja ainda essa
consolidação no STF, o que, por certo, causa insegurança jurídica, acredito que
a uniformização das decisões do STJ, muito firmes no sentido de não mais
aceitarem qualquer irregularidade no procedimento de identificação do
verdadeiro autor do crime, já estão contribuindo e a expectativa é a de que
haja uma pacificação sobre esse tema de extrema relevância para que cessem
tantas injustiças e falhas que acarretam condenações de inocentes."
Zanin como peça-chave
Com a formação de entendimento
uníssono das turmas (5ª e 6ª) do STJ sobre o tema, seguindo argumentação do
ministro Schietti, a discussão sobre interpretação do artigo 226 ganha mais
força nas turmas do Supremo — e a indicação do ministro Cristiano Zanin, que
toma posse nesta semana e vai substituir Ricardo Lewandowski, pode influenciar
o rumo do debate.
"Quando se pega o voto do
ministro Gilmar Mendes [que defende a obrigatoriedade dos dispositivos do
artigo 226], tendo como um dos votos vencidos o ministro Lewandowski, é
importante destacar que teremos o ingresso de um novo ministro na sua vaga, o
ministro Zanin, e ficaremos na expectativa de como ele vai apreciar essa
questão do reconhecimento, seja ele pessoal ou fotográfico", avalia o advogado
criminal e professor Yuri Félix.
Para o criminalista, a pacificação do
tema é importante para arrefecer a vulnerabilidade da "clientela
preferencial" do Judiciário. Os
dados mais recentes do Anuário Brasileiro se Segurança Pública mostram que, das mais de 830
mil pessoas privadas de liberdade no Brasil, 68,2% são negras e 95% homens.
"Com essa divergência, aumenta a
vulnerabilidade de determinada classe, de determinada cor, determinado CEP, que
há é algo que ocorre no dia a dia do sistema de Justiça criminal. É preciso
debater de forma muito séria uma reforma do CPP, pois o Brasil é o único país
da América Latina que, após a Constituição, não fez uma reforma vigorosa no seu
código. E as distorções ocorrem por conta dessa ausência de reforma à luz da
Constituição."
HC 227.629
HC 206.846
RESP 1.914.998
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