quinta-feira, 24 de agosto de 2023

 DEBATE ENCERRADO

Juiz das garantias é constitucional e deve ser implantado em até 2 anos, decide STF

23 de agosto de 2023, 18h56

Por Tiago Angelo

O juiz das garantias assegura o respeito aos direitos fundamentais dos investigados, em concordância com o que foi consagrado pela Constituição Federal, e reduz o risco de parcialidade nos julgamentos. Sua criação é uma legítima opção feita pelo Congresso e deve ser implementada em todo o território brasileiro de forma obrigatória.

Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade do juiz das garantias
Fellipe Sampaio/STF

Com base nesse entendimento, o Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quarta-feira (23/8) pela implantação obrigatória do juiz das garantias em até 12 meses, com a possibilidade de uma única prorrogação por igual período. Na prática, portanto, a novidade deve funcionar em todo o país em no máximo dois anos.

Após dez sessões de discussão sobre o tema, venceu a divergência aberta pelo ministro Dias Toffoli. O relator do caso, ministro Luiz Fux, entendeu que cada tribunal pode optar por criar ou não a figura do juiz das garantias, mas não foi acompanhado por nenhum colega quanto a esse ponto, embora tenha vencido em outros. O resultado será proclamado na sessão desta quinta (24/8), já que falta a definição de alguns pontos. 

"A instituição do juiz das garantias veio a reforçar o modelo de processo penal preconizado pela Constituição de 1988. A nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido prioritariamente como veículo de aplicação da sanção penal, mas que se transformasse em instrumento de garantias do indivíduo em face do Estado", disse Toffoli em seu voto. 

"Mostra-se formalmente legítima, sob a ótica constitucional, a opção do legislador por instituir no sistema processual penal brasileiro a figura do juiz das garantias. Trata-se de uma legítima opção feita pelo Congresso Nacional no exercício de sua liberdade de conformação, que, sancionada pelo presidente da República, de modo algum afeta o necessário combate à criminalidade", prosseguiu o magistrado.

O tribunal também analisou outros pontos da lei "anticrime" (Lei 13.964/2019). Os ministros entenderam, por exemplo, que a competência do juiz das garantias acaba no oferecimento da denúncia, e não em sua recepção, ao contrário do que foi estabelecido na norma analisada.

O Plenário estabeleceu ainda a necessidade de o Ministério Público informar ao juiz competente sobre a existência de todo tipo de investigação criminal, e também o entendimento de que o juiz das garantias deve atuar junto em casos criminais de competência da Justiça Eleitoral.

Os magistrados também decidiram pela inconstitucionalidade da previsão segundo a qual, em comarcas com apenas um juiz, os tribunais deveriam criar um sistema de rodízio entre magistrados, para que juízes que atuam na fase pré-processual não atuem no julgamento, e vice-versa. Para os ministros, o trecho violou o poder de auto-organização dos tribunais.

Ao propor o prazo de 12 meses para a implantação da novidade, a contar da data de publicação da ata do julgamento, e conforme diretrizes do Conselho Nacional de Justiça, Toffoli afirmou que a possibilidade de prorrogação depende de haver justificativa por parte dos tribunais, e que ela seja aceita pelo CNJ. 

As decisões foram construídas em intensos diálogos entre os ministros. Fux e Toffoli, por exemplo, ajustaram ou alteraram diversos pontos de seus votos durante o julgamento, a partir de posicionamentos levantados por outros colegas no decorrer de suas manifestações.

A atuação do juiz das garantias em processos criminais de competência da Justiça Eleitoral, por exemplo, foi um ponto levantado pelo ministro Alexandre de Moraes e posteriormente incluído nos votos dos demais magistrados.

O mesmo ocorreu com o prazo de 12 meses, proposto por Toffoli. De início, Alexandre, por exemplo, propôs o prazo de 18 meses. Posteriormente, acabou acompanhando Toffoli. 

Ao criar o juiz das garantias, a lei "anticrime" buscou reduzir o risco de parcialidade nos julgamentos. Com a medida, esse magistrado fica responsável pela fase investigatória.

Entre as suas atribuições está decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar e sobre a homologação de acordo de colaboração premiada.

Voto do relator

O caso começou a ser analisado pelo Plenário do Supremo em 22 de junho, antes do recesso, portanto. A conclusão do voto do relator, no entanto, só ocorreu no dia 28 daquele mês. Na ocasião, Fux se manifestou pela inconstitucionalidade do juiz das garantias.

Para ele, o modelo presume, sem base empírica, a parcialidade do magistrado que atuou durante a investigação para julgar a ação penal. Dessa maneira, viola o princípio da proporcionalidade. Além disso, o mecanismo interfere na estrutura do Judiciário e sua criação só poderia ter sido proposta por tal poder.

Sob o prisma formal, o ministro afirmou que a criação do mecanismo violou o pacto federativo. Segundo ele, o inquérito tem natureza jurídica de procedimento, não de processo penal. Assim, é matéria de competência concorrente da União e dos estados, conforme o artigo 24, XI, da Constituição Federal.

Ao regular extensivamente a aplicação do instituto, diz o ministro, a lei "anticrime" invadiu a competência dos estados para dispor sobre suas Justiças, sem atenção às diferenças regionais e de tecnologia. 

O magistrado também entendeu que a norma desrespeitou a reserva de iniciativa do Judiciário para dispor sobre a competência e o funcionamento dos órgãos jurisdicionais e a criação de novas varas (artigo 96, I, "a" e "d", da Constituição). 

Tal regra busca proteger o princípio da separação dos poderes, ressaltou Fux. Com esse fundamento, mencionou ele, o STF barrou a Emenda Constitucional 73/2013, que criava quatro Tribunais Regionais Federais.

Imparcialidade
Na sessão desta quarta-feira, votaram os ministros Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber, presidente da corte. Para Barroso, apesar de o juiz das garantias não ser, em sua opinião, a solução para os problemas do sistema penal brasileiro, é uma alternativa legítima do Legislativo.

"Gostando ou não, foi uma decisão legítima do Poder Legislativo, de modo que, não havendo incompatibilidade com a Constituição Federal, o nosso papel é acatar a vontade do legislador", afirmou ele.

Cármen Lúcia disse que o instituto é benéfico, no sentido de que "busca o aperfeiçoamento de um processo que precisa ser aperfeiçoado e tem de se colocar ao aperfeiçoamento permanente". 

Gilmar Mendes citou o conluio entre procuradores da "lava jato" de Curitiba e o ex-juiz Sergio Moro ao defender o juiz das garantias. Também falou da "operação ouvidos moucos", que levou ao suicídio do ex-reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier. 

"Quem acha que tudo isso é normal e que não são necessárias reformas estruturantes para evitar a repetição desses escândalos, certamente não está lendo a Constituição e nem conhece o nosso Código de Processo Penal", afirmou o decano do STF.

Ainda segundo o ministro, a criação do juiz das garantias assegura "mecanismos indutores da imparcialidade do magistrado, favorecendo a paridade de armas, a presunção da inocência, o controle da ilegalidade dos atos investigativos invasivos, contribuindo para uma maior integridade do sistema de Justiça". 

ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305

 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

SEQUÊNCIA ILEGÍTIMA

TJ-SP tranca ação penal de tráfico por série de ilegalidades em abordagem

20 de agosto de 2023, 17h59

Por Renan Xavier

O ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto.

Réu apresentou versão diferente da que foi contada pelos policiais militares

Esse entendimento foi utilizado pela 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para trancar a ação penal contra um homem preso por tráfico de drogas.

De acordo com os autos, os policiais militares que abordaram e prenderam o acusado agiram motivados, a princípio, por denúncia anônima de que ele estava vendendo drogas. Na chegada dos agentes ao local, o réu teria tentado fugir, sendo alcançado quando tentava entrar em casa. 

Nada de ilícito foi encontrado com o homem na primeira revista feita pelos policiais, mas ele teria confirmado que estava traficando drogas. Segundo o que consta no boletim de ocorrência, o réu teria autorizado os policiais a entrarem em sua casa para buscarem drogas que estariam no local, e ele mesmo teria indicado onde estaria um pacote com crack.

Na delegacia, no entanto, o homem negou tudo. Ele alegou que os policiais invadiram sua casa enquanto estava dormindo e que foi coagido a entregar uma arma aos militares, objeto não confirmado nos autos.

Testemunha ignorada

Relator do caso, o desembargador Heitor Donizete de Oliveira destacou que a mulher do réu, que estava no local no momento da abordagem policial, sequer foi ouvida como testemunha. "Ou seja, não consta a comprovação de qualquer autorização de algum morador para entrada dos policiais na residência do paciente. Embora a materialidade delitiva venha demonstrada nos autos, é certo que a prova produzida nos autos principais se encontra eivada de ilegalidade inicial e, por isso, não serve para sustentar uma prisão preventiva, ou sequer uma prisão em flagrante."

O magistrado destacou que os policiais não comprovaram que o suposto tráfico acontecia no local da abordagem. Para o relator, se as informações relativas à traficância feita pelo réu fossem tão relevantes, haveria fundadas suspeitas suficientes para o pedido de um mandado de busca e apreensão para aquele local. Segundo o magistrado, o ponto fundamental que desestabiliza e enfraquece a diligência policial foi a ausência inicial de autorização de entrada na residência.

"O que deve ser salientado é que 'denúncias ou notícias anônimas' de 'colaboradores anônimos', e os pormenores constantes nos depoimentos dos agentes públicos, sem outras comprovações, ainda que indiciárias, não podem ser considerados como atos ou circunstâncias de permissão para uma abordagem, quanto menos uma invasão de domicílio", disse o relator.

O magistrado afirmou que a pedra de toque do caso foi o primeiro ato da atuação policial, que causou a nulidade da invasão de domicílio do réu. "É certo que há uma sutileza na dinâmica do evento, mas tal circunstância é crucial para o reconhecimento da ilegalidade do ato. Ou seja, não podemos descartar a hipótese de que os policiais entraram na casa quando o paciente já estava dentro do imóvel; e ele, ainda que tenha sido abordado entrando na casa, nesse momento, não foi visto praticando nenhum ato de possível mercancia de entorpecentes, e nada de ilícito foi encontrado em sua posse."

Para o relator, toda a diligência policial que se seguiu se mostrou "contaminada e despicienda". "Como inobservada garantia constitucional e disposição legal contidas na lei processual penal, tudo o que se seguiu ao ingresso ilegal no interior da residência do paciente não pode ser considerado, pois estamos diante de prova ilícita, tendo aplicabilidade na hipótese a teoria dos frutos da árvore envenenada."

O relator lembrou que, com a invalidação da prisão em flagrante em razão da ilegalidade da ação, as provas e os atos processuais decorrentes também ficam invalidados. Isso enseja, também, o trancamento da ação penal. O réu foi representado na ação pelo advogado Lucas Hernandes Lopes.


HC 2170049-40.2023.8.26.0000

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

 

PROVAS INSUFICIENTES

Má gerência não se confunde com dolo e 11 são absolvidos no Porto de Santos

Por 

A má gerência de órgão público justifica uma criteriosa investigação e a responsabilização dos gestores na esfera cível-administrativa, mas é insuficiente para puni-los criminalmente sem a comprovação de que tiveram intenção de lesar o erário para benefício próprio ou de terceiros.

Com essa ponderação, o juiz Roberto Lemos dos Santos Filho, da 5ª Vara Federal de Santos, absolveu 11 pessoas denunciadas pelos crimes de fraude a licitação e peculato. Oito réus integravam a alta cúpula da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), atual Autoridade Portuária de Santos.

Divulgação

"Na seara criminal, a falta de zelo, prudência ou mesmo a omissão de um dever funcional não são suficientes, per si, para demonstração do dolo. Com efeito, o elemento subjetivo do tipo nunca pode ser presumido, mas sim efetivamente demonstrado, sob pena de afrontar ao próprio princípio da presunção de inocência", sentenciou o julgador.

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou todos os 11 réus por peculato, porque a condição de funcionários públicos dos ex-integrantes da Codesp, por se tratar de elementar do crime, se comunica com os demais acusados, ligados a uma empresa privada que venceu a licitação supostamente viciada.

Os acusados vinculados à estatal também responderam pelo delito do artigo 90 da Lei 8.666/1993 (fraudar procedimento licitatório com o intuito de obter vantagem decorrente do seu objeto). A empresa Vert venceu o certame e celebrou contrato para monitorar com drones o Porto de Santos, durante 12 meses, pelo valor de R$ 2,7 milhões.

Segundo o MPF, os réus teriam desviado valores referentes a pagamentos por serviços que não chegaram a ser prestados pela vencedora da licitação, causando prejuízos à Administração Pública. Codesp e Vert assinaram o contrato em maio de 2018, sendo a denúncia oferecida em julho de 2021. A sentença é da última quinta-feira (10/8).

A inicial acusatória teve por base investigação da Polícia Federal no curso da operação tritão. De acordo com Roberto Lemos, embora os elementos indiciários colhidos na fase de inquérito evidenciem supostas ações ilícitas, elas não foram provadas. "Isso porque não emerge dos autos, com a clareza necessária, terem os acusados agido com dolo".

O juiz federal observou que “defeitos no certame”, por si só, não podem ser atribuídos de forma objetiva a uma suposta intenção dos acusados de frustrarem o caráter competitivo da licitação. Além disso, não há prova de enriquecimento ilícito e não ficou demonstrado conluio entre o grupo da Codesp e o trio da empresa de monitoramento por drones.

"Assumir que os réus estavam revestidos do elemento subjetivo específico do tipo meramente por ocuparem posições de direção e não terem pedido esclarecimentos adicionais aos setores técnicos da empresa é admitir a responsabilização penal objetiva, o que é vedado em nosso ordenamento", justificou Lemos.

Quanto aos valores que teriam sido desviados, o julgador apontou que não há comprovação de prejuízo para a Codesp, até porque a Controladoria-Geral da União e a auditoria da própria estatal, realizada após a gestão dos denunciados, não auferiram o impacto econômico das irregularidades narradas na denúncia.

Também sem culpa
Embora o crime de peculato preveja a modalidade culposa (artigo 312, parágrafo 2º, do Código Penal), a condenação exige que o réu concorra culposamente para o delito de outrem. "No caso concreto, o dolo de nenhum dos réus foi demonstrado, inviabilizando, portanto, a condenação de qualquer outro por culpa", assinalou Lemos.

Ao absolver os 11 acusados sob o fundamento de insuficiência de provas, o magistrado ressaltou que, "diante da incerteza, a dúvida deve sempre militar em favor dos acusados, em obediência ao princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, consagrado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal".

A sentença considerou "plausível", entre outras, a tese sustentada pelas defesas dos réus de que a homologação da licitação se baseou em pareceres técnicos de outros funcionários da Codesp. Os autores desses estudos de viabilidade não chegaram a ser denunciados pelo MPF.

No caso específico de um dos diretores da empresa ganhadora do certame, o advogado Rodrigo Barboza Delgado acrescentou que, conforme a prova testemunhal, o contrato com a estatal foi executado de acordo com as cláusulas, revelando-se útil à Codesp. O defensor frisou ainda que o cliente não obteve qualquer vantagem indevida.

O advogado Jonatas de Sousa Nascimento defende outro suposto diretor da empresa privada e sustentou que cliente sequer integra a pessoa jurídica. "O único 'delito' que recai sobre ele é o fato de ser irmão de um dos corréus. Mas o MPF não demonstrou a sua participação em desvio de verba pública, que também sequer foi comprovada."

Defensor do superintendente jurídico da Codesp à época dos fatos, o advogado Eugênio Malavasi frisou que o cliente não integrava a diretoria executiva da estatal e, portanto, não detinha poder decisório, tampouco a atribuição para adjudicar o objeto da licitação. "Ele não agiu com dolo, tendo apenas cumprido seu dever funcional."

Processo nº 5004303-36.2021.4.03.6104


 

REALIDADE NUA E CRUA

"Achar que presídio é solução e que o preso não voltará ao convívio é um erro"

Por  e 

A sociedade brasileira, seus representantes políticos e seu Poder Judiciário convivem nos dias atuais com um grande dilema: como fazer com que seu sistema prisional, que opera em reconhecido estado de coisas inconstitucional, ofereça a pacificação social que o Direito Penal promete. Na visão de Sebastião Reis Júnior, a correção de rumos passa pela necessidade de conhecer de fato como os reeducandos são tratados presídios adentro e as consequências disso.

A opinião é de um ex-advogado que, na função de consultor jurídico do Ministério da Integração Nacional, teve a oportunidade de viajar o país e conhecer as realidades mais distintas, que serviram para formar seu entendimento. Desde 2011, quando foi empossado ministro do STJ e passou a integrar uma das turmas criminais, buscou reproduzir essa experiência para saber melhor os impactos de seus julgamentos.

As visitas a presídios e entidades como a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs) deram a Reis Júnior a certeza de que é um erro achar que prisão é solução e que os presos não voltarão ao convívio social. Ele entende que a falta de um tratamento digno a quem comete crimes é o que prejudica a ressocialização e potencializa a chance de retorno à criminalidade. E se diz incomodado pelo fato de magistrados, membros do Ministério Público e advogados não saberem disso.

"É muito bonito dizer que processo não tem cara, mas tem uma vida ali. O processo no papel já era frio, agora, digitalizado, é mais frio ainda. Daí a importância de visitar presídios, de conviver. O magistrado tem que sair da casinha dele, tem que viver a vida e sentir as coisas. Tem que conhecer a realidade do estado, porque são situações que aparecerão”, defendeu, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

As experiências no sistema penal brasileiro ainda permitiram ao ministro publicar o livro Translucida, obra que reúne fotos de sua autoria de pessoas transgênero recolhidas em estabelecimentos penais e reflexões sobre o tema, em formatos variados — contos, estudos técnicos e poemas. A obra foi lançada na sede do STJ em junho e confere visibilidade a uma parcela dessa população que, cedo ou tarde, retornará possivelmente mais marginalizada.

Para o ministro Sebastião, a noção quanto a essa realidade também pode permitir que juízes entendam melhor a necessidade de dar alguma coerência jurisprudencial aos julgados, o risco de isso aumentar ainda mais as tensões no sistema carcerário e até a forma de encarar temas profundamente impactados por moralismo, como o do juiz das garantias.

Leia a entrevista:

ConJur — Como surgiu a ideia do livro Translúcida?
Sebastião Reis Júnior — A ideia surgiu após uma visita às presas, há quatro anos, e também por influência do livro Ausência, da fotógrafa Nana Moraes, que mostrou o abandono dessas pessoas. Então procurei a direção do presídio e as presas para saber se elas estariam dispostas a participar do projeto, inicialmente previsto para ser um ensaio fotográfico.

ConJur — E quando essa ideia inicial mudou?
Sebastião Reis Júnior — Fizemos uma primeira apresentação das fotos no congresso internacional anual do IBCCrim. A coisa foi crescendo a partir daí e se transformou no livro. Mas eu queria algo diferente, que não fosse focado apenas em doutrina jurídica. Então também procurei pessoas de áreas distantes do Direito, como artistas plásticos e chargistas.

ConJur — Qual é sua avaliação do tratamento dado pelo Estado às presas transexuais?
Sebastião Reis Júnior — A visão que tenho é a de uma realidade que elas me passaram. No presídio que visitei, elas disseram se sentir respeitadas. Tinham direito, por exemplo, a ter cabelo comprido, sutiã, calcinha. Por outro lado, elas tinham que interromper o tratamento hormonal por falta de acompanhamento médico, o que é um problema muito sério. Mas, mesmo com a superlotação, o presídio era limpo, destoando do caos encontrado nas inspeções feitas pelo CNJ.

ConJur  Que é o que impera no sistema prisional, correto?
Sebastião Reis Júnior — Ouvi das presas que a gestão de outras unidades prisionais as tratam como homens, cortando seus cabelos e não garantindo uma ala diferenciada, apenas um conjunto de celas no da ala masculina.

ConJur — Qual é o motivo do descaso histórico com o sistema prisional?
Sebastião Reis Júnior — Nosso grande erro é achar que presídio é a solução, que os presos não voltarão para o convívio social. Enquanto continuarmos com essa ideia, não vamos evoluir. Essas pessoas vão ficar lá cinco, sete, dez anos e vão sair. E se não as tratarmos com dignidade e não dermos perspectiva de vida, a possibilidade de retorno ao crime é enorme. Isso porque elas estarão revoltadas e numa situação de vida muito pior do que aquela em que viviam quando foram encarceradas, pois a chance de arrumar emprego é mínima. Essa é a mentalidade que ainda prevalece numa parcela do Judiciário e em boa parte da sociedade. Na pandemia, com o isolamento, eu realmente achei que a sociedade ia pensar um pouco melhor.

ConJur — Mas piorou.
Sebastião Reis Júnior — Quando se está enclausurado em casa, com todos os confortos, já é enlouquecedor, imagina enjaulado. E o cenário piora quando se trata de uma mulher encarcerada, por conta do abandono familiar. Ao contrário do homem preso, que recebe visita da mãe, da companheira. Incomoda saber que boa parte da magistratura não tem noção disso. Há muitos juízes que visitaram presídios apenas quando eram estudantes, quando algum professor teve a sensibilidade de levá-los ao presídio.

ConJur — O desconhecimento é tamanho que ainda discutimos o fornecimento de absorventes em presídios.
Sebastião Reis Júnior — É algo inimaginável achar absorvente supérfluo. Se discutimos o acesso a absorventes fora da penitenciária, imagina intramuros. As pessoas criticam a preocupação do tribunal com direitos individuais porque não é com elas. O dia em que for, vão exigir todas as garantias constitucionais. Pessoas que até pouco tempo eram acusadores passaram a gritar por direito de defesa quando se viram no papel de acusados. Nós temos que mudar essa mentalidade de que não é preciso se preocupar com algo enquanto só acontece com o outro.

ConJur — Não é sintomático que a parte que não defende o bom trato do preso no sistema penitenciário não tenha relação com o tema, com o Direito Penal?
Sebastião Reis Júnior — É o reflexo do que as pessoas pensam. E o Judiciário é reflexo da nossa sociedade, assim como os outros Poderes. Se temos um Congresso, hoje, majoritariamente conservador é porque a sociedade, em sua maioria, é conservadora. Essa é a realidade e não tem como fugir.

ConJur — Como é o histórico das visitas do senhor a essas instituições?
Sebastião Reis Júnior — A primeira vez que fui foi essa, a convite do IDDD. Depois, tive a iniciativa de visitar novamente. Aí eu provoquei o pessoal de Minas Gerais para conhecer as Apacs. Sempre tinha ouvido falar, mas nunca tinha tido oportunidade de conhecer. Visitei as unidades de Santa Luzia, São João Del Rey e Belo Horizonte. No fim de junho, fui no conhecer o presídio feminino no Rio. Devo voltar no segundo semestre. Também fui à Papuda, aqui em Brasília, a todos os presídios de segurança máxima. Sempre que tem uma oportunidade, acho interessante conhecer e ver como é que funciona, até para ter uma ideia do que você está fazendo com a pessoa. Quero transformar isso numa rotina, fazendo essas visitas pelo menos uma ou duas vezes por semestre.

ConJur — Mas não há uma ‘maquiagem’ porque o ministro vai visitar?
Sebastião Reis Júnior — Você pode esconder algumas coisas, mas não tudo. É claro que o próprio preso pode ter medo de falar, mas é possível perceber, pelo quadro geral, qual é a realidade. Por exemplo, na Colmeia [Penitenciária Feminina do DF], quando visitamos, eles sortearam quais presas conversaríamos, para não dizer que eram pessoas previamente selecionadas por eles. E as conversas ocorriam sem a presença da gestão do presídio. Tivemos plena liberdade para conversar com as pessoas. Em outra visita, em São Paulo, quando passávamos pelas celas masculinas, vários presos reclamavam sobre problemas na execução penal, da qualidade da comida.

ConJur — Como o senhor avalia a importância de magistrados, integrantes do Ministério Público e advogados conhecerem a realidade prisional?
Sebastião Reis Júnior — É fundamental, até porque isso ajuda a entender que ali estão pessoas. Algumas erraram, outras não. Tem gente ali que nem sabe se errou, porque todo dia descobrimos erros judiciários. É muito bonito dizer que processo não tem cara, mas tem uma vida ali. O processo no papel já era frio, agora, digitalizado, é mais frio ainda. Daí a importância de visitar presídios, de conviver. O magistrado tem que sair da casinha dele, tem que viver a vida e sentir as coisas. Tem que conhecer a realidade do estado, porque são situações que aparecerão. Fui consultor jurídico do Ministério da Integração, o que me permitiu conhecer realidades de todo o Brasil; vi a dificuldade de prefeituras pequenas. Quando vou examinar um processo que questiona a responsabilidade de um prefeito, por exemplo, é preciso se atentar a essas nuances.

ConJur — Em uma palestra recente o senhor falou que as pessoas não entendem a gravidade que há em ter duas pessoas condenadas pelo mesmo crime com tratamento desigual. Qual é o risco?
Sebastião Reis Júnior — Isso vira o presídio [gíria usada no sistema prisional para falar de rebelião]. Imagine o efeito da diferença de tratamento, pelo Judiciário, para duas pessoas que cometeram o mesmo crime e dividem uma cela? O preso já está no limiar do limiar, então tudo é motivo para iniciar uma confusão dentro da penitenciária. A lei não prevê a uniformização, cada juiz aplica o que considera correto e o tribunal vai direcionando. O papel do Judiciário também é o de ter essa sensibilidade. Por um lado, a lei não pode ser muito rígida, porque isso promoveria injustiças e impediria a correção nos casos individuais. Por outro, é preciso ter uma coerência na aplicação da lei.

ConJur — A quantidade de recursos que chegam ao STJ influencia?
Sebastião Reis Júnior — Há dias em que chegam 40, 45 habeas corpus. Isso dificulta a análise das diversas questões, como aplicação do redutor no tráfico ou a quantidade de droga, sem haver discrepância. Não sei qual seria a solução, mas ajudaria se os tribunais firmarem o máximo possível de teses e fazerem valer esses entendimentos. A partir do momento que se diminui o volume processual, julgando uniformemente, o cenário melhora. Houve um julgamento recente aqui, sobre a necessidade de cumprir o início da pena em regime fechado, em que o juiz aplicou um dispositivo declarado inconstitucional pelo Supremo há 10 anos. Isso não é questão de interpretação, não é uma discussão subjetiva. Há casos onde a lei realmente garante espaço para interpretação, mas há outros em que as questões são objetivas. Nesses, é preciso respeitar os precedentes. Do contrário, o sistema não funciona, entra em colapso. Digo sempre que, para mim, já entrou em colapso.

ConJur — O julgamento sobre descriminalização do porte de drogas para consumo pode ajudar a reduzir o número de processos e a população carcerária?
Sebastião Reis Júnior — A questão é saber se a magistratura, o Ministério Público e a polícia não forçarão a barra para achar elementos que justifiquem a presença do tráfico. A tese vai ser firmada, mas teremos boa vontade para compreendê-la, para garantir o efeito almejado? É muito fácil fugir da jurisprudência.

ConJur — É o que acontece com a tese da invasão de domicílio.
Sebastião Reis Júnior — É o caso do “eu vi por cima do muro”, do “senti o cheiro de maconha”, entre outros argumentos. Antes, a invasão sem autorização judicial era justificada só com denúncia anônima. Quando perceberam que não funcionava mais, mudaram de argumento. Sempre haverá uma forma de tentar burlar a jurisprudência.

ConJur — Em 2016, o STF declarou o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário. Sete anos se passaram e nada mudou. O Estado ignorou a decisão?
Sebastião Reis Júnior — Não adianta fixar determinada linha de ação sem definir sanção. A verdade é essa. O Supremo fez o que podia, que era declarar e atestar a situação. Mas é preciso haver vontade do Estado, que é quem tem poder e condições para modificar esse estado de coisas inconstitucional. Porém, não dá voto reformar ou construir presídio e mudar política pública de combate à criminalidade.

ConJur — É o mesmo que ocorre com o juiz de garantias?
Sebastião Reis Júnior — Não entendo a AMB combatendo tanto o juízo de garantias, dizendo que vai aumentar gasto, que será difícil implementar. É a mesma rejeição que a magistratura teve com as audiências de custódia. Até acho que a lei que criou o juiz de garantias errou ao usar esse nome, pois juiz da instrução facilitaria a compreensão, e ao determinar prazo inviável de 90 dias para iniciar a implantação no Judiciário. Mas o ministro Dias Toffoli prorrogou esse prazo, além de a lei não impor a implantação imediata, respeitando a capacidade de cada estado. Mesmo assim, a AMB é contra, a Associação Nacional do Ministério Público é contra e a sociedade como um todo é contra por achar que vai ajudar bandido.

ConJur — Critica enquanto não é alvo da Justiça...
Sebastião Reis Júnior — Isso muda quando o cidadão passa a ser acusado de um crime, porque qualquer um de nós pode passar por isso, não precisa ter intenção de matar. Você pode estar dirigindo um carro, espirrar, fazer uma manobra brusca e matar alguém. Aí eu quero ver se não vai pedir por um juiz imparcial, por respeito ao direito de defesa.

ConJur — O juiz de garantias vai trazer algum resultado efetivo? O juiz de execução penal também foi criado para aumentar o distanciamento entre apenado e o magistrado que o condenou, mas pouco mudou.
Sebastião Reis Júnior — É um passo, até porque o Judiciário é conservador. A questão do juiz de garantias é você dar independência. Imagine um juiz determinar a prisão da pessoa, que fica anos encarcerada, e, quando vai julgar, percebe que deve absolver esse réu. Como que vai conviver com esse fato? Um outro magistrado fica muito mais livre para isso. Esse novo modelo só funcionará se houver uma mudança de mentalidade. Se o juiz pensar que uma decisão contrária vai desrespeitar o colega, não vai funcionar. Há juízos de execução penal que são maravilhosos. O Luiz Cláudio, por exemplo, que é o juiz da vara de execução em Belo Horizonte. Fui visitar as Apacs com ele e pude ver que o relacionamento dele com os presos é bom. Ele conhece os presos. Também existem bons no Amazonas.

ConJur — A questão do nome é sintomática, né?
Sebastião Reis Júnior — Naquele momento em que surgiu a ideia do juiz de garantias, durante o embate sobre a “lava jato”, criou-se a impressão de que essa nova figura jurídica teria o objetivo de soltar as pessoas. Ainda há pessoas falando isso. Vi uma declaração de um promotor de São Paulo falando que “vamos ter que soltar um bando de gente”. É o mesmo discurso usado quando se discutiu o fim da prisão em segunda instância. São falácias repetidas à exaustão e que as pessoas acreditam.

ConJur — O Estado brasileiro perdeu o controle das suas penitenciárias, do muro pra dentro?
Sebastião Reis Júnior — Em algumas situações, sim. E até que ponto há vontade do Estado em resolver esse problema? Não se soluciona isso sem investimento. A população é contra diminuir a população carcerária. Mas, sem essa redução, só resta construir presídios. Houve uma pesquisa que mostrou que quase 60% dos presídios brasileiros estão superlotados. Em alguns é possível controlar isso, mas em outros, não. É uma pessoa pendurada sobre a outra, o cara que chega mais novo vai dormir do lado do vaso.


quinta-feira, 3 de agosto de 2023

PRESUNÇÕES E CONJECTURAS

 

Reunião de duas ou mais pessoas não configura associação para o tráfico

Por 

O crime de associação para o tráfico de drogas é caracterizado quando existe dolo de associar com estabilidade e permanência. A reunião de duas pessoas ou mais sem propósito associativo não pode ser enquadrada neste tipo penal.

Mera reunião de duas ou mais pessoas não comprova crime de associação para o tráfico
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Esse foi o entendimento do desembargador convocado para o Superior Tribunal de Justiça, Jesuíno Cardoso, para absolver um homem condenado pelo crime de tráfico de drogas. 

A decisão foi dada em pedido de Habeas Corpus. No recurso, a Defensoria Público do Rio de Janeiro sustentou que a condenação por associação ao tráfico foi baseada no depoimento de policiais, que "não trouxeram qualquer dado indicativo sobre a existência de ânimo associativo".

Ao decidir, o magistrado apontou que o réu foi absolvido no crime em primeira instância, mas que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu provimento a recurso do Ministério Público pela condenação. O MP utilizou como argumento a quantidade de drogas, a confissão quanto ao crime de tráfico e a identificação das drogas com a inscrição CV (Comando Vermelho). 

"Evidente, portanto, que a condenação pelo delito de associação teve como fundamento presunções e conjecturas, além de referências genéricas à configuração do tipo previsto no art. 35 da Lei 11.343/2006, como vínculo subjetivo entre o paciente e os corréus como crime autônomo, o que não é suficiente para ensejar a condenação, que exige um contingente mínimo pelo menos razoável da autoria", registrou o julgador. 

Diante disso, ele decidiu absolver o réu do crime de associação para o tráfico, com extensão aos outros corréus da ação penal. 

O HC foi impetrado pelo defensor público do Rio de Janeiro, Eduardo Newton.

HC 823.265

AÇÃO ILEGAL

 Juiz absolve réu condenado com base em provas obtidas pós-denúncia anônima

31 de julho de 2023, 7h50

Por Renan Xavier

O ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas é legítimo, a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno, quando amparado em fundadas razões, devidamente justificado pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem ocorrer, no interior da casa, situação de flagrante delito.

Magistrado lembrou também a teoria dos frutos da árvore envenenada

Com esse entendimento, a 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude de Piumhi (MG) anulou provas colhidas após denúncia anônima e absolveu um réu condenado por tráfico de drogas.

Em abril de 2021, policiais militares abordaram o réu em uma rodovia após receberem uma informação contra ele de forma sigilosa. A denúncia era que ele, em parceria com o filho, comercializavam drogas em Capitólio. Enquanto o homem estava sob o poder dos agentes, outro grupo foi até a casa dele onde seguiram com as buscas à procura de provas.

Ao analisar o caso, o juiz Mateus Leite Xavier lembrou o artigo 5º da Constituição Federal, que consagra o direito fundamental à inviolabilidade domiciliar.

O magistrado destacou o entendimento firmado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal que diz que a fundada suspeita prevista no artigo 244 do Código de Processo Penal não pode se fundar em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa.

"Com olhos no caso concreto, após a colheita de provas e tudo que foi produzido nos autos, restou suficientemente claro que a busca pessoal procedida nos denunciados foi motivada por 'denúncias anônimas', e entre o período que sucedeu a referida denúncia e precedeu a busca, não consta nos autos registros de investigações preliminares ou diligências realizadas", declarou.

Baseado nos depoimentos de policiais militares que participaram da ação, o juiz destacou que não havia diligência específica para corroborar as denúncias anônimas, como exige a lei. "E, à luz da fundamentação alhures e das particularidades do caso concreto, tenho que não existia situação de fundada suspeita, tampouco elementos concretos que indiquem a necessidade da busca pessoal, o que a torna ilegal."

O magistrado lembrou as consequências da teoria do fruto da árvore envenenada, que se faz presente no artigo 157 do Código de Processo Penal. "As provas obtidas por meios ilícitos contaminam as que delas derivam, como consequência da prova ilícita por derivação."

O réu foi representado na ação pelo advogado Antônio Marcos de Sousa Terra, sócio do escritório Santos Terra Sociedade de Advogados.


Processo 0006729-80.2021.8.13.0515

CIZÂNIA NAS CORTES

 STF e STJ divergem sobre reconhecimento e geram insegurança em aplicação do CPP

31 de julho de 2023, 18h48

Por Alex Tajra

Uma recente decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal jogou luz sobre a rusga jurisprudencial que acomete as duas cortes superiores do país — gerando insegurança e imprevisibilidade sobre aplicação do Código de Processo Penal. A divergência paira sobre o artigo 226, em especial seu inciso segundo, que versa sobre o reconhecimento pessoal, ou seja, quando a vítima designa o possível infrator com base em identificação na delegacia (ou por meio de fotografia):

Artigo 226 - Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la.

 

STJ e STF se posicionam de forma distinta sobre reconhecimento em delegacia

Desde 2015 a 1ª Turma do Supremo entende que o inciso não tem aplicação obrigatória (Habeas Corpus 125.026, relatoria da ministra Rosa Weber), ou seja, a semântica fria do termo "se possível" prevalece. A orientação tem embasado as decisões dessa turma que, mesmo quando há fragilidade no conjunto probatório, mantém as prisões por considerar idônea a prova testemunhal colhida a partir de reconhecimento pessoal.

Em 2020, todavia, houve uma mudança de paradigmas em torno do tema. No HC 598.886, o ministro Rogerio Schietti tentou estabelecer novos parâmetros e assentou entendimento no sentido de que os incisos do artigo 226 são obrigatórios. Em uma decisão multidisciplinar, em que aborda questões da "Psicologia moderna" para argumentar sobre as possibilidades do erro humano a partir da memória, ele afirmou:

"O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de 'mera recomendação' do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação."

A decisão teve importante reflexo jurisprudencial. De outubro de 2020, quando foi proferida sentença, até dezembro de 2022, o STJ registrou 28 acórdãos das duas turmas criminais e 61 decisões monocráticas que absolveram réus ou revogaram prisões preventivas por conta dos vícios provocados pelo reconhecimento pessoal feito em desacordo com o que diz o CPP e, claro, com o entendimento proferido por Schietti. Os números foram levantados pelo próprio gabinete do ministro.

A cizânia escalou ao Supremo. A 2ª Turma divergiu da outra parte do colegiado e, a partir de um voto de Gilmar Mendes (HC 206.846), absolveu um réu alegando inobservância das exigências do reconhecimento pessoal pelo CPP. Para Gilmar, o inciso 6 do CPP "não é mera recomendação, mas regime necessário à confiabilidade da informação dependente da memória, como o reconhecimento".

Criminalistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico são unânimes em apontar que essa rusga jurisprudencial afeta de forma desproporcional as pessoas pretas e pobres, que constituem maioria da massa carcerária e encontram mais uma vulnerabilidade no processo penal, que deveria protegê-las dos impropérios acusatórios.

Segundo os especialistas, a divergência também evidencia o excesso de crédito dado à prova testemunhal, invariavelmente sujeita ao erro humano, e a inobservância às jurisprudências consolidadas. 

"O Judiciário não obedece seus próprios precedentes, não tem uma tese clara, uma teoria clara, sobre o que é precedente, e isso faz com que as decisões se alterem de um caso para o outro. Além disso, o outro problema, nesse caso específico, é que o Judiciário faz leis, está legislando. Esse é um problema central: o que é um precedente e por que que o Judiciário pode criar leis ou modificar as leis fora do controle de constitucionalidade.", diz o professor e criminalista Lenio Streck, colunista da ConJur.

Em recente artigo sobre o tema, Streck questionou: "Se o nosso sistema está ancorado (ainda) no civil law, não se pode admitir que o judiciário aplique o direito desaplicando-o, porque a observância da legalidade pelo Poder Judiciário traduz-se em segurança jurídica, já que está no ordenamento jurídico (na legalidade) a previsão de todos os direitos e deveres inerentes ao Estado e aos cidadãos."

Problema estrutural

A zona cinzenta em que se encontra o artigo 226, ao menos do ponto de vista jurisprudencial, acaba trazendo à superfície outros problemas atrelados ao Direito Penal no país, a começar pelo próprio trabalho da polícia que, em muitos casos, não consegue ou não quer reunir conjunto probatório fidedigno para imputar crime a determinado indivíduo.

O debate também respinga nas instâncias inferiores, que não observam os julgados das cortes superiores e alimentam certa pretensão punitivista.

"[Essa discussão] passa por uma parcela do Judiciário, por uma readequação da valoração daquilo que é prova. As decisões do STJ foram essenciais para retomar o rumo do que se tem como adequado diante do que a Constituição preconiza.  A divergência nesse caso contribui para que as antinormatividades ocorram. É permitir que pessoas sejam reconhecidas de maneira indevida e sejam condenadas de maneria indevida", diz Glauco Mazzetto, defensor público e assessor criminal da Defensoria Pública de São Paulo.

O artigo do CPP, de fato, tem gerado distorções que ganharam ampla repercussão e minaram a credibilidade de parte do Judiciário. Em um caso proeminente (HC 686.317), um homem foi preso por furto porque estava com uma camisa do Barcelona do jogador Lionel Messi. Isso porque, segundo os autos, o comerciante roubado viu na câmera que o suposto ladrão estava vestido da mesma forma.

O homem afirmou que encontrou a camisa na rua e a vestiu. Por isso — e pelo seu "porte físico" — acabou condenado. Depois, foi absolvido e solto pelo STJ.

No Rio de Janeiro, a Defensoria Pública do estado teve de entrar com um pedido na Vara Criminal de Petrópolis para que a 57ª Delegacia de Polícia retirasse a foto de um homem negro do "cadastro de suspeitos". Ele foi apontado nove vezes distintas como autor de crime  — e em todas absolvido. O homem sequer havia dado autorização para que sua imagem constasse no álbum.

Em outro caso (REsp 1.914.998) a vítima de assalto afirmou, diante de uma fotografia, que o homem apresentado era "70% semelhante" ao suposto ladrão. O homem, absolvido em primeiro grau e condenado no Tribunal de Justiça de São Paulo, acabou absolvido novamente neste caso, que teve ampla repercussão não só pela questão do reconhecimento, mas pelo fato de que consolidou a jurisprudência estipulada por Schietti nas turmas criminais do STJ.

"Foram diversos os estudos feitos, inclusive pela organização norte-americana Innocence Project, divulgando os erros judiciais baseados em reconhecimentos falhos, que certamente contribuíram para a mudança de entendimento que hoje se consolidou no STJ", afirma a defensora pública Isabela Veloso Monreal, que atuou no caso.

Para ela, a jurisprudência do STJ trouxe esperança de que "cessem as inúmeras injustiças que se perpetuaram durante tantos anos".

"Embora não se veja ainda essa consolidação no STF, o que, por certo, causa insegurança jurídica, acredito que a uniformização das decisões do STJ, muito firmes no sentido de não mais aceitarem qualquer irregularidade no procedimento de identificação do verdadeiro autor do crime, já estão contribuindo e a expectativa é a de que haja uma pacificação sobre esse tema de extrema relevância para que cessem tantas injustiças e falhas que acarretam condenações de inocentes."

Zanin como peça-chave

Com a formação de entendimento uníssono das turmas (5ª e 6ª) do STJ sobre o tema, seguindo argumentação do ministro Schietti, a discussão sobre interpretação do artigo 226 ganha mais força nas turmas do Supremo — e a indicação do ministro Cristiano Zanin, que toma posse nesta semana e vai substituir Ricardo Lewandowski, pode influenciar o rumo do debate.

"Quando se pega o voto do ministro Gilmar Mendes [que defende a obrigatoriedade dos dispositivos do artigo 226], tendo como um dos votos vencidos o ministro Lewandowski, é importante destacar que teremos o ingresso de um novo ministro na sua vaga, o ministro Zanin, e ficaremos na expectativa de como ele vai apreciar essa questão do reconhecimento, seja ele pessoal ou fotográfico", avalia o advogado criminal e professor Yuri Félix.

Para o criminalista, a pacificação do tema é importante para arrefecer a vulnerabilidade da "clientela preferencial" do Judiciário. Os dados mais recentes do Anuário Brasileiro se Segurança Pública mostram que, das mais de 830 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil, 68,2% são negras e 95% homens.

"Com essa divergência, aumenta a vulnerabilidade de determinada classe, de determinada cor, determinado CEP, que há é algo que ocorre no dia a dia do sistema de Justiça criminal. É preciso debater de forma muito séria uma reforma do CPP, pois o Brasil é o único país da América Latina que, após a Constituição, não fez uma reforma vigorosa no seu código. E as distorções ocorrem por conta dessa ausência de reforma à luz da Constituição."

HC 227.629
HC 206.846
RESP 1.914.998

TJ-SP condena homem que promoveu perseguição psicológica por lesão corporal grave - 2 de agosto de 2023, 17h46

 Por Renan Xavier

Por constatar que a conduta do réu gerou traumas psíquicos à vítima, a 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou recurso interposto pelo Ministério Público e condenou um homem a 2 anos e 4 meses de prisão por lesão corporal grave após ele promover uma longa perseguição psicológica contra a ex-mulher.

Perseguição se estendeu à família e profissionais de saúde que atenderam a vítima

Devido às agressões, a vítima chegou a ficar incapacitada de exercer atividades habituais por mais de 30 dias. A corte também restabeleceu as medidas protetivas de urgência em favor da mulher.

O caso se arrasta desde 2011. Entre maio de 2007 e abril de 2013 — portanto, já com o processo em andamento —, o réu, valendo-se da relação íntima de afeto, praticou violência psicológica contra a ex-mulher por diversas formas.

Ele a perturbou e perseguiu, além de produzir dossiês difamatórios contra a vítima e seus familiares. Conforme laudo pericial, ele ofendeu a integridade corporal dela, causando lesão psíquica de natureza grave, o que a afastou das atividades de rotina.

O MP interpôs o recurso após a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Foro Regional de Santo Amaro, na capital paulista, desclassificar a imputação da prática de lesão corporal e revertê-la para a contravenção prevista no artigo 65 do Decreto Lei 3.688/1941 (molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável).

A juíza entendeu que, embora demonstrada a materialidade do crime de lesão corporal de natureza grave pelo laudo técnico, não houve demonstração do nexo causal entre as condutas e o dano psicológico causado à vítima.

Ao recorrer, os promotores sustentaram a necessidade de condenação do réu no termos da denúncia. Na condição de assistente de acusação, a vítima salientou que o conjunto de provas já era suficiente para comprovar o nexo causal da conduta do réu aos traumas psíquicos sofridos por ela.

Julgamento no TJ-SP
Relator do recurso, o desembargador Camargo Aranha Filho refutou o entendimento de primeiro instância. Ele acredita que o conjunto probatório comprova, "à saciedade, a existência de nexo causal entre a conduta do apelado e a lesão corporal de natureza grave suportada pela vítima".

"A materialidade restou comprovada pelo exame de sanidade mental e pelo laudo de avaliação psicológica que concluíram que houve ofensa à integridade corporal ou à saúde da examinada, de natureza grave, pela incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias e debilidade permanente da função psíquica, pelo transtorno de estresse pós-traumático que perdura por mais de 1 ano, e, ainda, ter sido o meio insidioso (violência psíquica crônica e recorrente). E o laudo de avaliação psicológica consignou que a probanda vem empregando esforços para não sucumbir frente ao sofrimento psíquico pelo qual está passando. Portanto, se faz necessária a continuidade do acompanhamento psicológico."

Para o relator, não há dúvidas de que o réu foi o autor de mensagens difamatórias e ameaçadoras contra a ex-mulher. "Não bastassem as mensagens e publicações antes mencionadas, o apelado passou a perturbar a vida da vítima e de seus familiares por meio de ações judiciais, utilizando-se de todos os instrumentos possíveis para retardar o andamento dos feitos, como fez no presente."

Além da perseguição contra a vítima, o acusado também ajuizou mais de 300 ações judiciais contra pessoas próximas a ela (familiares e profissionais de saúde que a atendiam, além de empresas da família dela). "Conforme os relatos da vítima ao ser ouvida em juízo, ela e sua família foram atormentadas pelas inúmeras intimações, a qualquer momento do dia, pouco importando datas e locais do constrangimento."

O desembargador destacou que, ainda que o réu tenha se utilizado de todos os expedientes possíveis e imagináveis para impugnar as provas trazidas pela acusação, cabe ao juiz valorá-las. "E mesmo depois de tantos incidentes, que se mostraram meramente protelatórios e com o objetivo de causar mais danos à vítima, não há nada nos autos que comprove a falsidade de qualquer uma das provas acusatórias trazidas à colação."

"Além disso, as 20 mil páginas do presente feito, mais de 1.000 delas juntadas aos autos após a oferta do parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, são mais que suficientes para demonstrar que o apelado utiliza o Poder Judiciário de forma acintosa, procurando confundir e cansar o julgador. Imagine-se a parte demandada, que se vê processada em dezenas de feitos, obrigada a constituir advogado e formular sua defesa."

Diante de todas as provas, de acordo com o relator, "não há que se falar ausência de nexo causal, sendo a conduta do réu a causa existente nos autos para as lesões apresentadas pela vítima, e ele tinha ciência e buscava alcançar o resultado, motivo pelo qual é o caso de provimento dos recursos."

A fixação de medidas protetivas de urgência se mostra necessária, porque o réu continua buscando meios de atingir a vítima, ponderou o desembargador. O homem ficou, então, proibido de aproximar-se a menos de 300 metros da vítima, seus familiares e testemunhas; de estabelecer com eles qualquer forma de contato; e de frequentar os mesmos lugares que a ofendida, mesmo que tenha chegado anteriormente ao local, sob pena de decretação da prisão.

Processo 0038488-38.2011.8.26.0002