Processo penal: seguro garantia
judicial em vez de sequestro de bens e valores
14 de
junho de 2023, 6h41
Por Marcelo Turbay Freiria e Álvaro Guilherme
de Oliveira Chaves
No âmbito do Direito Penal Econômico,
tem-se notado, cada vez mais, o incremento na aplicação de medidas cautelares
de natureza real, as quais, diferentemente das mais conhecidas de natureza
pessoal, incidem sobre o patrimônio do investigado ou do réu — e não
sobre a sua liberdade. Especialmente desde a "lava jato" é frequente
a veiculação de notícias retratando, após a deflagração de grandes operações
policiais, o bloqueio de vultosos valores em contas bancárias ou a apreensão de
luxuosos carros, iates, entre outros bens de propriedade dos alvos
investigados.
Essa tendência, denominada por
Guilherme Lucchesi e Ivan Zonta, de "patrimonialização" da
repressão criminal, é caracterizada pelo "crescente alcance
patrimonial das políticas e instrumentos de combate ao crime" [1].
Sob essa novel lógica, lecionam os autores, busca-se "atingir o
patrimônio do agente criminoso como um fim em si mesmo, não mais como um mero
adicional às penas privativas de liberdade" [2].
Apesar de se tratar de fenômeno
recente, é certo que a redação original do Código de Processo Penal já trazia,
em seu capítulo VI, as principais medidas cautelares reais de nosso ordenamento
jurídico, quais sejam: o sequestro (artigos 125 a 132); a hipoteca legal
(artigos 134 e 135); e o arresto (artigos 136 a 137). O legislador
optou por as denominar de "assecuratórias" em razão de suas
finalidades precípuas: ora assegurar o cumprimento do efeito da condenação,
qual seja, a perda do produto do crime (no caso do sequestro); ora assegurar a
reparação do dano causado pelo ilícito, além de eventuais custas e multas (no
caso da hipoteca legal e do arresto) [3].
Exatamente em razão dessa diferença
de finalidade é que se costuma afirmar que o sequestro recai sobre bens de
origem ilícita do investigado ou de terceiros, enquanto o
arresto recai sobre bens de origem lícita exclusivamente de
propriedade do investigado.
Tal diferenciação, porém, não é
sempre respeitada pelo legislador. Há de se ressaltar, por exemplo, que o
Decreto-Lei n° 3.240, o qual entrou em vigor poucos meses antes do Código de
Processo Penal, em seu artigo 4°, prevê que, em casos de crimes cometidos
contra a Fazenda Pública e que gerarem prejuízo em desfavor do ente, o
sequestro poderá recair indistintamente sobre bens de origem lícita ou ilícita
do acusado, in verbis: "O sequestro pode recair sobre
todos os bens do indiciado, e compreender os bens em poder de terceiros desde
que estes os tenham adquirido dolosamente, ou com culpa grave".
Nota-se que, ao mencionar
especificamente a medida de sequestro, e não as medidas assecuratórias lato
sensu, o legislador promove confusão entre as diferentes finalidades das
diversas medidas e cria ampla margem para o desvirtuamento dos institutos.
As imprecisões nas redações a
respeito das medidas assecuratórias, acima expostas, ocasionam graves
problemas. A título de exemplo, não obstante o sequestro, o arresto e a
hipoteca legal estejam há muito positivados no diploma processual penal, o
legislador praticamente nada dispôs acerca das circunstâncias que ensejam a sua
revogação ou substituição.
É verdade que o artigo 131, III, do
CPP prevê que o sequestro será levantado "se for julgada extinta a
punibilidade ou absolvido o réu, por sentença transitada em julgado",
trazendo o artigo 141 semelhante disposição acerca do arresto.
Antes do trânsito em julgado da
sentença, porém, a única previsão de levantamento da medida constritiva se encontra
no artigo 131, I, do CPP, que aduz que o sequestro será levantado "se
a ação penal não for intentada no prazo de sessenta dias, contado da data em
que ficar concluída a diligência". Atualmente, no entanto, essa
disposição se encontra praticamente esvaziada, em razão do entendimento
jurisprudencial de que, havendo uma mínima complexidade do processo, o prazo de
sessenta dias não é peremptório, motivo pelo qual não enseja a revogação da
medida [4].
Ocorre que, no contexto atual dos
megaprocessos, caracterizados pelo "grande número de réus e de
acusações, pela extensa e complexa matéria probatória, bem como pela longa
duração dos procedimentos" [5],
não é incomum que ações penais e até mesmo inquéritos demorem anos até
encontrarem sua conclusão — aliás, fato que, naturalmente, merece
toda sorte de críticas. Em razão disso, faz-se indispensável oferecer
alternativas à constrição do patrimônio do investigado.
Ora, se não é possível que medida
cautelar de natureza pessoal se estenda por anos à míngua de resolução do
processo, como vêm entendendo os Tribunais pátrios, tampouco parece razoável
permitir que o patrimônio do acusado permaneça constrito ad aeternum,
condenando-o a uma verdadeira pena pecuniária antecipada, muitas vezes antes
mesmo do oferecimento de denúncia, a qual pode ter efeitos catastróficos sobre
sua capacidade financeira e atividade empresarial, impactando, inclusive, a
própria constituição de defesa.
No ponto, é louvável a alteração no
Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94),
empreendida ano passado por meio da Lei nº 14.365, a qual, por meio da inclusão
do artigo 24-A, passou a garantir que, no caso de bloqueio universal do
patrimônio do réu por decisão judicial, 20% dos bens constritos deverão
ser liberados para fins de pagamento de honorários e reembolso de gastos com a
defesa.
Tal garantia permite ao investigado
que se encontra em caso extremo, no qual a integralidade de seu patrimônio foi
atingida por medidas assecuratórias, a contratação de uma banca de defesa de
seu interesse e confiança. Concretiza-se, assim, em última análise, o próprio
princípio constitucional da ampla defesa.
Por sua vez, em um aspecto geral,
solução ao problema da constrição patrimonial ad aeternum consiste
na contratação de seguro-garantia judicial, prática já muito disseminada nas
searas cível [6] e
trabalhista. Tais contratos se regem pelas normais gerais contidas nos
artigos 757 a 777 do Código Civil, assim como pelas circulares emitidas
pela Superintendência de Seguros Privados (Susep).
Dentre as peculiaridades desse tipo
de seguro, não raro se encontra a presença de uma cláusula de renovação
automática, segundo a qual a garantia somente não será renovada diante da
prova da extinção do risco ou quando apresentada nova garantia, o que exime de
qualquer risco o segurado (que, no caso, é o próprio Poder Judiciário).
Embora não haja previsão semelhante
na lei regente do processo penal, o CPP permite a interpretação extensiva e a
aplicação analógica de outros campos do Direito, conforme dicção expressa do artigo 3°: "A
lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica,
bem como o suplemento dos princípios gerais de direito".
Avançando os entendimentos sobre o
tema e concluindo que o seguro-garantia judicial deve, sim, ter aplicação no
processo penal, recentemente, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª
Região (TRF-3), por maioria, deu provimento à Apelação n°
5007354-18.2021.4.03.6181 para determinar o levantamento de mais de R$ 1 milhão
de propriedade de investigado no âmbito da operação descarte, os quais já
estavam constritos há mais de dois anos e meio, por força de ordem
de sequestro.
Em seu voto condutor, o desembargador
relator, Maurício Kato, destacou que seguros-garantia judiciais são "admitidos
nos processos judiciais amplamente considerados e com o objetivo de garantir
obrigações assumidas perante o Poder Judiciário".
Discordando da juíza de primeira
instância, que havia rejeitado o pedido de substituição dos valores
sequestrados pela apólice de seguro apresentada pelo investigado no curso
inquérito, afirmou que "a garantia oferecida é suficiente, tanto
quantitativa quanto temporalmente, haja vista que o valor da apólice atende
àquele estimado pelo juízo de origem como adequado e, ainda, a apólice dispõe
de cláusula de renovação automática da garantia".
Atento à existência de cláusula de
renovação automática, registou, ainda, inexistir prejuízo ao Poder Judiciário,
uma vez que "somente a promoção de arquivamento do inquérito ou
eventual decisão absolutória ou extintiva da punibilidade em favor do apelante
serviria como prova do fim do risco coberto para pôr termo ao seguro garantia
substitutivo ao sequestro, nos termos do artigo 131, III, do Código de Processo
Penal".
O relator foi acompanhado pelo
desembargador Paulo Fontes, ficando vencido o desembargador André Nekatschalow,
que negava provimento ao recurso. Ao final, foi lavrada a seguinte ementa:
"PENAL. PROCESSUAL PENAL.
APELAÇÃO CRIMINAL. RESTITUIÇÃO DE COISAS APREENDIDAS. SEQUESTRO.
SEGURO-GARANTIA JUDICIAL. SUBSTITUIÇÃO. POSSIBILIDADE. CIRCULAR Nº 447/2013 DA
SUSEP. EXCESSO DE PRAZO. ARTIGO 131, I E III DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
1. Atendida a regulamentação da Susep, é possível a substituição do
sequestro de bens por seguro garantia.
2. A garantia contratual não prejudica a renovação do sequestro ou a adoção
de outras medidas assecuratórias quando modificada a situação de fato ou
verificada a superveniente insuficiência da própria garantia.
3. O prazo estipulado pelo artigo 131, I do Código de Processo Penal não é
peremptório, mas sua prorrogação deve ser razoável.
4. O seguro garantia substitutivo ao sequestro extingue-se nas hipóteses
previstas no artigo 131, III do Código de Processo Penal.
5. Apelação da defesa provida."
Com esse pronunciamento [7],
a 5ª Turma do TRF-3 não só demonstra a perfeita compreensão do dramático
cenário envolvendo as cautelares patrimoniais, assim como contribui para a
aproximação do processo penal aos institutos modernos e às dinâmicas atuais em
matéria de constrição patrimonial.
O Superior Tribunal de Justiça ainda
deve enfrentar o tema sob a perspectiva da revogação total ou parcial de
sequestro no âmbito penal, mas já sinaliza em favor da admissão do
seguro-garantia como medida de contracautela.
Ilustrativamente, vale conferir
paradigmático precedente firmado pela 6ª Turma em caso de repercussão nacional,
no qual se admitiu a aludida garantia para fins de mitigação de um dos
fundamentos da decretação da prisão preventiva, substituída por cautelares
alternativas naquela oportunidade, conforme se depreende da seguinte ementa:
"HABEAS CORPUS. CRIMES DE
MANIPULAÇÃO DO MERCADO E DE USO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA (INSIDER TRADING).
ARTIGOS 27-C e 27-D DA LEI Nº 6.386/1976. PRISÃO PREVENTIVA. PRESENÇA DE
PROVA MÍNIMA DO CRIME E DE INDÍCIOS DE AUTORIA. PERICULUM LIBERTATIS. RISCOS À
ORDEM PÚBLICA E ECONÔMICA E À INSTRUÇÃO CRIMINAL. EXCEPCIONALIDADE E
SUBSIDIARIEDADE DA PRISÃO PREVENTIVA. SUBSTITUIÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA POR
MEDIDAS CAUTELARES ALTERNATIVAS. PROPORCIONALIDADE. ORDEM PARCIALMENTE
CONCEDIDA.
(...)
12. Enquanto esteve em liberdade, o paciente compareceu aos atos
processuais, atendeu aos chamados da autoridade policial que conduziu as
investigações, e não há evidências de que, após a formalização do inquérito
policial, haja interferido em atos de investigação. Ademais, além de afastado
da gestão de suas empresas, boa parte dos bens do paciente e de seu irmão foi
embargada judicialmente, em decorrência de medida
assecuratória — sequestro — cuja decisão foi suspensa em
razão da proposta de apresentação de seguro-garantia, pelos irmãos Batista, no
total de R$ 238.000.000,00, suficiente, como afirmou a autoridade judiciária
competente, para garantir o adimplemento de eventuais indenização, prestação
pecuniária, multa e custas processuais, em caso de condenação.
13. (...)
14. Habeas corpus parcialmente concedido para substituir a prisão preventiva
do paciente por medidas cautelares a ela alternativas, a saber: I) compromisso
de comparecimento em Juízo, para todos os atos designados pelo Juízo
competente, e de manter atualizado o endereço no qual poderá receber
intimações; II) proibição de se aproximar e de manter contato pessoal,
telefônico ou por meio eletrônico ou virtual com os outros réus, testemunhas
arroladas pela defesa e pela acusação, ou pessoas que possam interferir na
produção probatória;
(...)". (HC nº 422.122/SP, relator ministro Rogerio
Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/2/2018, DJe de 26/3/2018).
Em síntese, as medidas cautelares
patrimoniais são, hoje, um dos aspectos mais polêmicos do processo criminal e
matéria em que o Código de Processo Penal definitivamente demonstra o peso de
seus 82 anos. O surgimento dos megaprocessos e a tendência de
"patrimonialização" da repressão criminal tornam urgentes a
criação de saídas ao impasse da constrição patrimonial indefinida ou por tempo
irrazoável.
[1] LUCCHESI, G. B.; NAVARRO ZONTA,
I. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de
medidas assecuratórias. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, [S.
l.], v. 6, nº 2, p. 735–764, 2020. DOI: 10.22197/rbdpp.v6i2.353. Disponível
em: https://revista.ibraspp.com.br/RBDPP/article/view/353.
Acesso em: 23 abr. 2023.
[2] Idem.
[3] BADARÓ, Gustavo. Processo
Penal — Ed. 2022. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais.
2022. Disponível em: https://thomsonreuters.jusbrasil.com.br/doutrina/1728399931/processo-penal-ed-2022.
Acesso em: 23 de Abril de 2023.
[4] Nesse sentido, o seguinte
precedente do STJ: "O princípio da razoabilidade impede que, no
caso, o prazo previsto no artigo 131, inciso I, do Código de Processo
Penal incida de forma peremptória, nomeadamente porque as instâncias ordinárias
consignaram a extrema complexidade do feito, instaurado contra dezenas de
investigados para apurar fraudes na execução de obras e contratações feitas por
órgãos públicos e diversos municípios, todos em tese a se beneficiar
ilicitamente de recursos da União repassados mediante convênios". (RMS
nº 36.728/MT, relatora ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em
12/11/2013, DJe de 25/11/2013).
[5] PRATES, Fernanda; BOTTINO,
Thiago. Megaprocessos e o exercício do direito de defesa: uma abordagem
empírica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol.
162, ano nº 27, p. 145-170, dez/2019.
[6] Aliás, o próprio Código de Processo
Civil, em seu artigo 835, §2°, equipara o dinheiro ao seguro garantia judicial,
para fins de substituição de penhora.
[7] A defesa foi patrocinada pelo
escritório Almeida Castro, Castro e Turbay Advogados.