quinta-feira, 15 de junho de 2023

 

Processo penal: seguro garantia judicial em vez de sequestro de bens e valores

14 de junho de 2023, 6h41

Por Marcelo Turbay Freiria e Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves

No âmbito do Direito Penal Econômico, tem-se notado, cada vez mais, o incremento na aplicação de medidas cautelares de natureza real, as quais, diferentemente das mais conhecidas de natureza pessoal, incidem sobre o patrimônio do investigado ou do réu — e não sobre a sua liberdade. Especialmente desde a "lava jato" é frequente a veiculação de notícias retratando, após a deflagração de grandes operações policiais, o bloqueio de vultosos valores em contas bancárias ou a apreensão de luxuosos carros, iates, entre outros bens de propriedade dos alvos investigados.

Essa tendência, denominada por Guilherme Lucchesi e Ivan Zonta, de "patrimonialização" da repressão criminal, é caracterizada pelo "crescente alcance patrimonial das políticas e instrumentos de combate ao crime" [1]. Sob essa novel lógica, lecionam os autores, busca-se "atingir o patrimônio do agente criminoso como um fim em si mesmo, não mais como um mero adicional às penas privativas de liberdade" [2].

Apesar de se tratar de fenômeno recente, é certo que a redação original do Código de Processo Penal já trazia, em seu capítulo VI, as principais medidas cautelares reais de nosso ordenamento jurídico, quais sejam: o sequestro (artigos 125 a 132); a hipoteca legal (artigos 134 e 135); e o arresto (artigos 136 a 137). O legislador optou por as denominar de "assecuratórias" em razão de suas finalidades precípuas: ora assegurar o cumprimento do efeito da condenação, qual seja, a perda do produto do crime (no caso do sequestro); ora assegurar a reparação do dano causado pelo ilícito, além de eventuais custas e multas (no caso da hipoteca legal e do arresto) [3].

Exatamente em razão dessa diferença de finalidade é que se costuma afirmar que o sequestro recai sobre bens de origem ilícita do investigado ou de terceiros, enquanto o arresto recai sobre bens de origem lícita exclusivamente de propriedade do investigado.

Tal diferenciação, porém, não é sempre respeitada pelo legislador. Há de se ressaltar, por exemplo, que o Decreto-Lei n° 3.240, o qual entrou em vigor poucos meses antes do Código de Processo Penal, em seu artigo 4°, prevê que, em casos de crimes cometidos contra a Fazenda Pública e que gerarem prejuízo em desfavor do ente, o sequestro poderá recair indistintamente sobre bens de origem lícita ou ilícita do acusado, in verbis: "O sequestro pode recair sobre todos os bens do indiciado, e compreender os bens em poder de terceiros desde que estes os tenham adquirido dolosamente, ou com culpa grave".

Nota-se que, ao mencionar especificamente a medida de sequestro, e não as medidas assecuratórias lato sensu, o legislador promove confusão entre as diferentes finalidades das diversas medidas e cria ampla margem para o desvirtuamento dos institutos.

As imprecisões nas redações a respeito das medidas assecuratórias, acima expostas, ocasionam graves problemas. A título de exemplo, não obstante o sequestro, o arresto e a hipoteca legal estejam há muito positivados no diploma processual penal, o legislador praticamente nada dispôs acerca das circunstâncias que ensejam a sua revogação ou substituição.

É verdade que o artigo 131, III, do CPP prevê que o sequestro será levantado "se for julgada extinta a punibilidade ou absolvido o réu, por sentença transitada em julgado", trazendo o artigo 141 semelhante disposição acerca do arresto.

Antes do trânsito em julgado da sentença, porém, a única previsão de levantamento da medida constritiva se encontra no artigo 131, I, do CPP, que aduz que o sequestro será levantado "se a ação penal não for intentada no prazo de sessenta dias, contado da data em que ficar concluída a diligência". Atualmente, no entanto, essa disposição se encontra praticamente esvaziada, em razão do entendimento jurisprudencial de que, havendo uma mínima complexidade do processo, o prazo de sessenta dias não é peremptório, motivo pelo qual não enseja a revogação da medida [4].

Ocorre que, no contexto atual dos megaprocessos, caracterizados pelo "grande número de réus e de acusações, pela extensa e complexa matéria probatória, bem como pela longa duração dos procedimentos" [5], não é incomum que ações penais e até mesmo inquéritos demorem anos até encontrarem sua conclusão — aliás, fato que, naturalmente, merece toda sorte de críticas. Em razão disso, faz-se indispensável oferecer alternativas à constrição do patrimônio do investigado.

Ora, se não é possível que medida cautelar de natureza pessoal se estenda por anos à míngua de resolução do processo, como vêm entendendo os Tribunais pátrios, tampouco parece razoável permitir que o patrimônio do acusado permaneça constrito ad aeternum, condenando-o a uma verdadeira pena pecuniária antecipada, muitas vezes antes mesmo do oferecimento de denúncia, a qual pode ter efeitos catastróficos sobre sua capacidade financeira e atividade empresarial, impactando, inclusive, a própria constituição de defesa.

No ponto, é louvável a alteração no Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94), empreendida ano passado por meio da Lei nº 14.365, a qual, por meio da inclusão do artigo 24-A, passou a garantir que, no caso de bloqueio universal do patrimônio do réu por decisão judicial, 20% dos bens constritos deverão ser liberados para fins de pagamento de honorários e reembolso de gastos com a defesa.

Tal garantia permite ao investigado que se encontra em caso extremo, no qual a integralidade de seu patrimônio foi atingida por medidas assecuratórias, a contratação de uma banca de defesa de seu interesse e confiança. Concretiza-se, assim, em última análise, o próprio princípio constitucional da ampla defesa.

Por sua vez, em um aspecto geral, solução ao problema da constrição patrimonial ad aeternum consiste na contratação de seguro-garantia judicial, prática já muito disseminada nas searas cível [6] e trabalhista. Tais contratos se regem pelas normais gerais contidas nos artigos 757 a 777 do Código Civil, assim como pelas circulares emitidas pela Superintendência de Seguros Privados (Susep).

Dentre as peculiaridades desse tipo de seguro, não raro se encontra a presença de uma cláusula de renovação automática, segundo a qual a garantia somente não será renovada diante da prova da extinção do risco ou quando apresentada nova garantia, o que exime de qualquer risco o segurado (que, no caso, é o próprio Poder Judiciário).

Embora não haja previsão semelhante na lei regente do processo penal, o CPP permite a interpretação extensiva e a aplicação analógica de outros campos do Direito, conforme dicção expressa do artigo 3°: "A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito".

Avançando os entendimentos sobre o tema e concluindo que o seguro-garantia judicial deve, sim, ter aplicação no processo penal, recentemente, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), por maioria, deu provimento à Apelação n° 5007354-18.2021.4.03.6181 para determinar o levantamento de mais de R$ 1 milhão de propriedade de investigado no âmbito da operação descarte, os quais já estavam constritos há mais de dois anos e meio, por força de ordem de sequestro.

Em seu voto condutor, o desembargador relator, Maurício Kato, destacou que seguros-garantia judiciais são "admitidos nos processos judiciais amplamente considerados e com o objetivo de garantir obrigações assumidas perante o Poder Judiciário".

Discordando da juíza de primeira instância, que havia rejeitado o pedido de substituição dos valores sequestrados pela apólice de seguro apresentada pelo investigado no curso inquérito, afirmou que "a garantia oferecida é suficiente, tanto quantitativa quanto temporalmente, haja vista que o valor da apólice atende àquele estimado pelo juízo de origem como adequado e, ainda, a apólice dispõe de cláusula de renovação automática da garantia".

Atento à existência de cláusula de renovação automática, registou, ainda, inexistir prejuízo ao Poder Judiciário, uma vez que "somente a promoção de arquivamento do inquérito ou eventual decisão absolutória ou extintiva da punibilidade em favor do apelante serviria como prova do fim do risco coberto para pôr termo ao seguro garantia substitutivo ao sequestro, nos termos do artigo 131, III, do Código de Processo Penal".

O relator foi acompanhado pelo desembargador Paulo Fontes, ficando vencido o desembargador André Nekatschalow, que negava provimento ao recurso. Ao final, foi lavrada a seguinte ementa:

"PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. RESTITUIÇÃO DE COISAS APREENDIDAS. SEQUESTRO. SEGURO-GARANTIA JUDICIAL. SUBSTITUIÇÃO. POSSIBILIDADE. CIRCULAR Nº 447/2013 DA SUSEP. EXCESSO DE PRAZO. ARTIGO 131, I E III DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
1. Atendida a regulamentação da Susep, é possível a substituição do sequestro de bens por seguro garantia.
2. A garantia contratual não prejudica a renovação do sequestro ou a adoção de outras medidas assecuratórias quando modificada a situação de fato ou verificada a superveniente insuficiência da própria garantia.
3. O prazo estipulado pelo artigo 131, I do Código de Processo Penal não é peremptório, mas sua prorrogação deve ser razoável.
4. O seguro garantia substitutivo ao sequestro extingue-se nas hipóteses previstas no artigo 131, III do Código de Processo Penal.
5. Apelação da defesa provida."

Com esse pronunciamento [7], a 5ª Turma do TRF-3 não só demonstra a perfeita compreensão do dramático cenário envolvendo as cautelares patrimoniais, assim como contribui para a aproximação do processo penal aos institutos modernos e às dinâmicas atuais em matéria de constrição patrimonial.

O Superior Tribunal de Justiça ainda deve enfrentar o tema sob a perspectiva da revogação total ou parcial de sequestro no âmbito penal, mas já sinaliza em favor da admissão do seguro-garantia como medida de contracautela.

Ilustrativamente, vale conferir paradigmático precedente firmado pela 6ª Turma em caso de repercussão nacional, no qual se admitiu a aludida garantia para fins de mitigação de um dos fundamentos da decretação da prisão preventiva, substituída por cautelares alternativas naquela oportunidade, conforme se depreende da seguinte ementa:

"HABEAS CORPUS. CRIMES DE MANIPULAÇÃO DO MERCADO E DE USO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA (INSIDER TRADING). ARTIGOS 27-C e 27-D DA LEI Nº 6.386/1976. PRISÃO PREVENTIVA. PRESENÇA DE PROVA MÍNIMA DO CRIME E DE INDÍCIOS DE AUTORIA. PERICULUM LIBERTATIS. RISCOS À ORDEM PÚBLICA E ECONÔMICA E À INSTRUÇÃO CRIMINAL. EXCEPCIONALIDADE E SUBSIDIARIEDADE DA PRISÃO PREVENTIVA. SUBSTITUIÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA POR MEDIDAS CAUTELARES ALTERNATIVAS. PROPORCIONALIDADE. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
(...)
12. Enquanto esteve em liberdade, o paciente compareceu aos atos processuais, atendeu aos chamados da autoridade policial que conduziu as investigações, e não há evidências de que, após a formalização do inquérito policial, haja interferido em atos de investigação. Ademais, além de afastado da gestão de suas empresas, boa parte dos bens do paciente e de seu irmão foi embargada judicialmente, em decorrência de medida assecuratória — sequestro — cuja decisão foi suspensa em razão da proposta de apresentação de seguro-garantia, pelos irmãos Batista, no total de R$ 238.000.000,00, suficiente, como afirmou a autoridade judiciária competente, para garantir o adimplemento de eventuais indenização, prestação pecuniária, multa e custas processuais, em caso de condenação.
13. (...)
14. Habeas corpus parcialmente concedido para substituir a prisão preventiva do paciente por medidas cautelares a ela alternativas, a saber: I) compromisso de comparecimento em Juízo, para todos os atos designados pelo Juízo competente, e de manter atualizado o endereço no qual poderá receber intimações; II) proibição de se aproximar e de manter contato pessoal, telefônico ou por meio eletrônico ou virtual com os outros réus, testemunhas arroladas pela defesa e pela acusação, ou pessoas que possam interferir na produção probatória;
(...)". (HC nº 422.122/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/2/2018, DJe de 26/3/2018).

Em síntese, as medidas cautelares patrimoniais são, hoje, um dos aspectos mais polêmicos do processo criminal e matéria em que o Código de Processo Penal definitivamente demonstra o peso de seus 82 anos. O surgimento dos megaprocessos e a tendência de "patrimonialização" da repressão criminal tornam urgentes a criação de saídas ao impasse da constrição patrimonial indefinida ou por tempo irrazoável.

 


[1] LUCCHESI, G. B.; NAVARRO ZONTA, I. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. Revista Brasileira de Direito Processual Penal[S. l.], v. 6, nº 2, p. 735–764, 2020. DOI: 10.22197/rbdpp.v6i2.353. Disponível em: https://revista.ibraspp.com.br/RBDPP/article/view/353. Acesso em: 23 abr. 2023.

[2] Idem.

[3] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal — Ed. 2022. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2022. Disponível em: https://thomsonreuters.jusbrasil.com.br/doutrina/1728399931/processo-penal-ed-2022. Acesso em: 23 de Abril de 2023.

[4] Nesse sentido, o seguinte precedente do STJ: "O princípio da razoabilidade impede que, no caso, o prazo previsto no artigo 131, inciso I, do Código de Processo Penal incida de forma peremptória, nomeadamente porque as instâncias ordinárias consignaram a extrema complexidade do feito, instaurado contra dezenas de investigados para apurar fraudes na execução de obras e contratações feitas por órgãos públicos e diversos municípios, todos em tese a se beneficiar ilicitamente de recursos da União repassados mediante convênios". (RMS nº 36.728/MT, relatora ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 12/11/2013, DJe de 25/11/2013).

[5] PRATES, Fernanda; BOTTINO, Thiago. Megaprocessos e o exercício do direito de defesa: uma abordagem empírica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 162, ano nº 27, p. 145-170, dez/2019.

[6] Aliás, o próprio Código de Processo Civil, em seu artigo 835, §2°, equipara o dinheiro ao seguro garantia judicial, para fins de substituição de penhora.

[7] A defesa foi patrocinada pelo escritório Almeida Castro, Castro e Turbay Advogados.