24 de
maio de 2023, 8h00
Por José Miguel Garcia Medina
O porte de drogas para consumo
pessoal pode ser considerado crime? Ou uma lei nesse sentido viola o direito à
intimidade previsto na Constituição? O STF (Supremo Tribunal Federal) pode
restringir sua decisão apenas à maconha?
O assunto está na pauta do Supremo
para que se retome, na sessão desta quarta-feira (24/5), julgamento de recurso
extraordinário que veiculou essa questão constitucional e teve sua repercussão
geral reconhecida há pouco mais de dez anos. Os dispositivos normativos em
possível conflito são assim indicados, pelo STF, ao se referir ao Tema
506: "Título: Tipicidade do porte de droga para consumo pessoal.
Descrição: Recurso extraordinário, em que se discute, à luz do artigo 5º,
X, da Constituição Federal, a compatibilidade, ou não, do artigo 28 da Lei
11.343/2006, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal, com os
princípios constitucionais da intimidade e da vida privada".
Nesse procedimento, o Supremo pode
fixar tese que haverá de ser observada pelos demais órgãos do Poder Judiciário.
O STF pode decidir, por exemplo, que o texto do artigo 28 da Lei de Drogas é
inconstitucional, declarando a sua nulidade. Não poderá ser considerado crime,
nesse caso, o ato de ter consigo "para consumo pessoal, drogas sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar".
Esse é daqueles julgamentos a partir
dos quais é possível escrever um curso completo de direito constitucional. Um
professor da disciplina pode tratar dele no primeiro dia de aula e no final da
disciplina. O assunto é dos mais interessantes para os juristas. Não apenas
pela questão em si mesma, embora seja evidente que, se o Supremo concluir pela
inconstitucionalidade do dispositivo, isso terá consequências imediatas para o
direito penal e, também, no sistema prisional, na saúde pública e, enfim, em
toda a sociedade.
Por isso, farei um corte. Talvez
volte ao tema após o julgamento, tentando explorar outras faces dessa questão.
Aqui, porém, quero destacar os seguintes pontos:
O Supremo pode decidir a respeito, ou
esse é daqueles temas que devem ficar a cargo do Poder Legislativo? Essa é, a
meu ver, a primeira e mais importante das questões, e gira em torno dos limites
existentes entre as esferas de atuação dos Poderes Legislativo e
Judiciário [1].
Afinal, está-se diante de se saber se cabe ao Judiciário ou ao Legislativo
perquirir sobre qual dos valores há de prevalecer, em casos como esse. Nessa
hipótese, há que se reconhecer a prevalência da saúde pública, ou está em jogo
apenas a saúde do indivíduo, sendo o assunto pertinente apenas à sua vida
íntima? Trata-se de algo que interessa apenas ao indivíduo, ou a toda a
coletividade, já que se poderia considerar que o consumo mantém o tráfico de
drogas?
Esse conflito é retratado em vários
julgados do Superior Tribunal de Justiça e do próprio Supremo.
Por exemplo, o STJ, em julgado
expressivo do entendimento que prevalece naquela Corte, considerou os dilemas
indicados acima, mas afastou a incidência do princípio da insignificância (AgRg
no RHC 147158/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em
25/5/2021). Essa decisão, porém, não prevaleceu em julgamento realizado pelo
STF, em que, em razão do empate de votação entre os ministros da 2ª Turma,
acabou prevalecendo o entendimento de que o porte de 1,8 gramas de maconha
violaria os princípios da ofensividade, proporcionalidade e insignificância (HC
202883 AgR, relator para o acórdão ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em
15/9/2021).
O segundo ponto consiste no seguinte:
Admitindo-se que o Supremo possa pronunciar-se sobre a questão, de qual
modalidade de controle de constitucionalidade ele pode se valer?
Até o momento, foram proferidos três
votos: o ministro Gilmar Mendes votou pela inconstitucionalidade do
dispositivo; o ministro Fachin, pela inconstitucionalidade apenas em relação à "cannabis
sativa" (maconha); e o ministro Barroso, por sua vez, sugeriu
como parâmetro para diferenciar consumo (ou produção própria) e tráfico de
maconha o porte de 25 gramas ou a plantação de
até seis plantas fêmeas da espécie.
É possível fazer algumas aproximações
entre as posturas de cada um dos ministros e as técnicas de controle de
constitucionalidade [2].
Vamos a elas:
A prevalecer o primeiro dos votos
citados, proferido pelo ministro Gilmar Mendes, o STF limita-se a declarar a
inconstitucionalidade do dispositivo, invalidando-o. Tem-se, aqui, manifestação
daquilo que se convencionou chamar de atuação do Supremo como "legislador
negativo": "a declaração de inconstitucionalidade em tese
somente encerra, em se tratando de atos (e não de omissões) inconstitucionais,
um juízo de exclusão, que consiste em remover, do ordenamento positivo, a
manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo jurídico-normativo
consubstanciado na Carta Política" (STF, ADI 267 MC, relator
ministro Celso de Mello, Pleno, j. 25.10.1990). Trata-se de um modelo clássico,
por assim dizer, mas há muito a jurisprudência do Supremo vem admitindo o uso
de outras técnicas.
Foi o que sucedeu no voto seguinte,
proferido pelo ministro Fachin, em que se adotou técnica denominada pela
doutrina e pela jurisprudência de "interpretativa", que consiste em
uma forma intermediária de declaração de inconstitucionalidade. No caso,
admite-se a interpretação conforme à Constituição e a declaração de
inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. No voto, o ministro Fachin
adotou essa técnica para "declarar a inconstitucionalidade do artigo 28
da Lei 11.343, sem redução de texto, específica para situação que, tal como se
deu no caso concreto, apresente conduta que descrita no tipo legal tiver
exclusivamente como objeto material a droga aqui em pauta", no caso, a
maconha ("cannabis sativa").
Interessante notar que, neste voto,
foram tecidas várias considerações no sentido de que, em princípio, o Poder
Judiciário não poderia deliberar sobre esse assunto, pois essa tarefa toca ao
Legislativo: "Tal vazio respectivo merece ser preenchido por ato
legislativo, no catálogo de sua competência. A regulamentação de toda a
sequência que liga a produção ao consumo da droga em questão não cabe, nem aqui
ou agora, ao Poder Judiciário, mas sim ao poder constitucional e
democraticamente responsável para levar a diante tal mister sob pena de vácuo
inconstitucional e mora legislativa". No entanto, após considerar
que, no caso, se está diante de uma escolha "trágica", afirmou o
ministro Fachin: "Enquanto não houver pronunciamento do Poder
Legislativo sobre tais parâmetros, é mandatório reconhecer a necessidade do
preenchimento dessa lacuna". Voltaremos a esse ponto adiante.
Por fim, o ministro Barroso seguiu,
em parte, o entendimento manifestado pelo ministro Fachin. Mas foi um pouco
além, e sugeriu parâmetros a serem observados pelos juízes para se distinguir o
porte de maconha para uso próprio do tráfico de drogas: "O porte
de 25 gramas de maconha ou a plantação de até seis plantas fêmeas da espécie –
essas são as quantidades de referência que o ministro Luís Roberto Barroso, do
Supremo Tribunal Federal (STF), propôs como sugestão de parâmetro para
diferenciar consumo (ou produção própria) e tráfico de maconha, que no entender
do ministro deve ser descriminalizado". Consta ainda na página de
notícias do tribunal que, para o ministro, esses padrões não seriam rígidos,
podendo ser afastados pelos juízes a depender das circunstâncias do caso, em
decisão fundamentada "com maior profundidade". Esses
critérios devem valer até que o Congresso se manifeste sobre o tema, sustentou
ainda o ministro.
Parece que, aqui, adota-se uma
técnica diferente. As manifestadas nos votos anteriores são chamadas de "típicas",
sendo, inclusive, previstas na Lei 9.868/1999, que disciplina o processo e
julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade no Supremo. A técnica adotada pelo ministro Barroso,
segundo nos parece, pode ser inserida entre aquelas que doutrina e
jurisprudência consideram "atípicas". Nesse caso,
entendemos que se está diante de uma decisão que a doutrina classificaria
como manipulativa. Dentre as possíveis manifestação dessa técnica,
encontra-se a decisão manipulativa aditiva (ou manipulativa
com efeitos aditivos), em que, uma vez reconhecida a lacuna ou omissão na lei,
o Supremo supre esse vácuo, editando enunciado antes inexistente [3].
Caso prevaleça este último
entendimento, estaremos diante de mais uma manifestação do ativismo do Supremo?
Pode-se dizer que sim. Mas, como temos insistido em nossos estudos e também em
outras edições desta coluna (inclusive a que antecedeu a
presente), o Supremo acaba assim atuando diante da inação do legislador. Nem
sempre se trata de omissão legislativa orientada pelo entendimento de que o
tema não deve ser disciplinado pelo sistema normativo. Consciente de que o STF
não pode furtar-se à proteção a direitos fundamentais, já que o Judiciário não
deve manter-se inerte diante de ameaça ou lesão a um direito fundamental
(artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição), opta-se por deixar de deliberar na
lei a respeito de questões que evolvam escolhas trágicas, o que, na prática,
acaba por transferir a construção da solução jurídica ao Supremo.
Mas aí pode-se olhar o problema sob
outra perspectiva: o Supremo, quando os limites entre o que é jurídico e o que
é político é bastante tênue, ou, até, em que o caráter político parece
prevalecer sobre o jurídico, não poderia recusar-se a se manifestar a respeito,
decidindo que ao legislador incumbe decidir sobre o dilema? O fato de o
processo estar aguardando alguma definição no Tribunal há tanto tempo talvez
revele que seus juízes não estejam seguros de que a solução do dilema caiba à
Corte, e não ao Legislativo. Ao também não decidir (ou adiar, por mais de uma
década, a sua decisão), tacitamente o STF talvez esteja desejando expressar que
o dilema deve ser solucionado pelos legisladores, e não pelos juízes.
Aguardemos para conferir a postura
que será adotada pelo Supremo. Se resolver decidir a questão, voltaremos a
tratar do assunto, aqui em nossa coluna. Teremos, então, oportunidade de
analisar outros pontos ligados a esse tema, que, além de sua extrema
importância, é, ao mesmo tempo, fascinante para quem trabalha com processos nos
tribunais superiores e, em especial, se dedica ao estudo do papel das cortes
constitucionais.
[1] Cf. o que escrevemos em Constituição
Federal Comentada (7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2022,
comentário aos artigos 2º e 102 da Constituição; mais informações: https://bit.ly/obras2023).
[2] Cf., amplamente, o que
escrevemos em Constituição Federal Comentada cit., em
comentário ao artigo 102 da Constituição.
[3] Cf. o que escrevemos em Constituição
Federal Comentada cit., em comentário ao artigo 102 da Constituição.