OPINIÃO
Prescrição da pretensão executória e
presunção de inocência
28 de
fevereiro de 2023, 6h08
A prescrição é a perda do direito ou
poder de punir do Estado em virtude do decurso de tempo, consagrando o controle
imposto em lei para que os órgãos investigatórios e judiciários cumpram o seu
dever em prazo determinado, evitando-se a protelação indeterminada da ameaça
punitiva em relação ao autor da infração penal. É um instituto favorável ao
acusado. Note-se que as regras acerca da prescrição advêm do Poder Legislativo,
consagradas no Código Penal e em outras leis especiais, voltadas à atuação dos
Poderes Executivo — investigação — e
Judiciário — devido processo legal. Portanto, cuida-se de um freio ao
decurso indefinido de tempo aplicado por razões de política criminal, obstando a
viabilidade punitiva no tocante a quem comete um crime, enumerando-se, dentre
outras, as seguintes teorias: esquecimento, baseando-se no fato de
que a sociedade esquece o delito e suas consequências quando decorre tempo
considerável, inexistindo fundamento para punir o seu autor, na medida em que
se considerar a aplicação da pena como um fator retributivo ou
preventivo; expiação moral, calcando-se na ideia de que a espera
pela punição já pode ser considerada em si mesma uma forma de aflição,
atingindo-se o objetivo da pena; emenda do criminoso, fundando-se
no aspecto de natural evolução interior de quem cometeu a infração penal, com o
passar do tempo, deixando de existir o alicerce da reeducação, ínsita à
aplicação da pena, pois esta teria ocorrido naturalmente; dispersão das
provas, alicerçando-se na perda do valor probatório dos elementos colhidos
durante a investigação, motivo pelo qual a chance de ocorrência de erro
judiciário eleva-se consideravelmente conforme o tempo passa; psicológica,
apontando o fato de que o autor da infração penal tende a alterar o seu modo de
ser e de pensar, tornando-se alguém diverso daquele que cometeu o delito,
falecendo motivo para a punição. Muitas se interpenetram e, segundo nos parece,
todas representam relevantes argumentos para a existência da prescrição em
direito penal.
O enfoque prescricional concentra-se,
basicamente, em dois aspectos: a perda da pretensão punitiva e a perda da
pretensão executória, podendo-se indicar que a primeira cuida da vedação ao
próprio direito de punir, impedindo que o Estado chegue a uma condenação válida
e definitiva, enquanto a segunda se refere à proibição de executar a pena
estabelecida em condenação válida e definitiva, ambas pelo decurso do prazo
estipulado em lei (artigo 109, CP). Quando ocorre a perda do poder punitivo,
mesmo que haja a decisão condenatória, esta dilui-se como se não houvesse
existido para todos os fins, sem deixar rastro ou macular a folha de
antecedentes do agente. Consolidando-se a perda do poder executório, deixa-se
de aplicar a pena estabelecida validamente, remanescendo os efeitos penais
secundários, como a viabilidade de figurar como antecedente, a possibilidade de
gerar reincidência e até mesmo se tornando título executivo para a ação
civil ex delicto.
Antes da decisão condenatória,
impondo a pena, a partir da data de cometimento do delito (forma consumada ou
tentada e situações especiais — artigo 111, CP) inicia-se o curso do
prazo prescricional da pretensão punitiva, calcada na pena máxima abstrata
cominada à infração penal. Após o advento da decisão condenatória, com trânsito
em julgado para a acusação, passa a existir uma pena concreta, que não mais
poderá ser alterada sob o ponto de vista da elevação, de modo que se mostra
viável avaliar, ainda, se houve a perda da pretensão punitiva por meio da
prescrição retroativa (entre a decisão condenatória e o marco imediatamente
anterior que, para a maioria dos casos, é o recebimento da denúncia ou
queixa — artigo 117, CP) ou por intermédio da prescrição
intercorrente, subsequente ou superveniente (entre a decisão condenatória, com
trânsito em julgado para a acusação e o trânsito em julgado para a defesa). A
prescrição da pretensão executória, objeto desta análise, é computada, nos
termos legais, a partir do dia do trânsito em julgado da decisão condenatória
para a acusação até que o sentenciado inicie o cumprimento da pena ou reincida,
cometendo outro crime (art. 112, I, c. c. artigo 117, V e VI, CP).
Em primeiro lugar, convém destacar a
diferença entre a prescrição intercorrente e a prescrição da pretensão
executória, pois ambas têm o seu início quase ao mesmo tempo. A primeira é
computada da data da sentença condenatória, que venha a transitar em julgado
para a acusação ou quando esta tiver por improvido seu recurso; a segunda
inicia-se no dia em que transita em julgado a sentença condenatória para a
acusação. Apenas para ilustrar, é possível que a diferença entre as duas seja
de alguns dias, caso o órgão acusatório não apresente recurso em relação à
sentença condenatória. Quando se está cuidando da prescrição intercorrente
ingressa o fator tempo no tocante à lentidão do Judiciário
para julgar recursos e dar por finda a discussão naquele caso. Se houver o
decurso do prazo prescricional, assinalado pelo artigo 109 do Código
Penal, agora com base na pena concreta, entre a sentença condenatória (sem
recurso da acusação) e o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça (ou
Regional Federal), falece a pretensão punitiva do Estado. Parece-nos lógico e
razoável. Entretanto, ao tratar do prazo prescricional da pretensão de executar
a pena, sempre nos pareceu estranha a previsão legal, ao prever o início da
prescrição na data em que transitar em julgado a condenação para a acusação.
Ora, como pode o Estado executar a decisão, aplicando a pena,
antes de transitar em julgado para a defesa em face do princípio da presunção
de inocência? Somente é considerado culpado quem possua sentença condenatória
com trânsito em julgado para as partes (artigo 5º, LVII — ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
CF).
Desse modo, o Estado estaria impedido
de impor a pena, mas já estaria transcorrendo o prazo para atingir a sua
pretensão executória, o que representa um contrassenso. Em princípio, haveria
de se iniciar a prescrição da pretensão de executar a sanção a partir do
trânsito em julgado para ambas as partes, pois, em caso de desídia estatal, não
mais poderia ser feito.
O Tema 788 do Supremo Tribunal
Federal cuida exatamente disso: "Termo inicial para a contagem da
prescrição da pretensão executória do Estado: a partir do trânsito em julgado
para a acusação ou a partir do trânsito em julgado para todas as partes". O
confronto se volta ao fato de que o princípio da presunção de inocência impõe o
cumprimento após o trânsito em julgado para as partes, mas o artigo 112,
I, do CP, prevê o início do decurso do prazo da prescrição da pretensão
executória a partir do trânsito em julgado apenas para a
acusação. Por outro lado, seguir o preceituado pelo artigo 112, I, do CP, seria
o fiel cumprimento do princípio da legalidade, tanto do artigo 5º, II, quanto
do seu inciso XXXIX, pois a mescla de ambos aponta para o cumprimento exato do
preceituado em lei para impor a pena ao autor de crime.
Tem-se apontado que o STF já
teria decidido, em plenário que a prescrição da pretensão executória
somente tem início a partir do trânsito em julgado para ambas as partes e a
indicação seria o acórdão proferido no Ag.Reg. no Ag. de Instrumento
794.971-RJ, Plenário, relator Roberto Barroso; redator para o acórdão Marco
Aurélio, 16.4.2021, m. v. Analisando-se esse julgamento, de fato, consta uma
ementa com o seguinte teor: "Prescrição – pretensão executória
– termo inicial. A prescrição da pretensão executória, no que pressupõe
quadro a revelar a possibilidade de execução da pena, tem como marco inicial
o trânsito em julgado, para ambas as partes, da condenação". A
contar dessa parte da ementa, por maioria de votos vencedores, o Plenário do
STF teria, realmente, acolhido a tese. No entanto, analisando o inteiro
teor do julgado, s.m.j., o STF decidiu somente a questão referente à
prescrição da pretensão punitiva, acolhendo-a, por maioria de votos e deixou
para julgamento oportuno, constante do tema 788, a matéria atinente ao início
da prescrição da pretensão executória. Fixada essa premissa, o Plenário ainda
vai decidir sobre a temática.
O ponto fulcral da questão, segundo
nos parece, é a possibilidade ou inviabilidade de se utilizar o princípio da
presunção de inocência (garantia fundamental do réu) para se tomar uma decisão contra o
interesse do próprio acusado. Afinal, o enfoque do contraste entre o disposto
pelo artigo 112, I, do CP, e o artigo 5º, LVII, CF, é justamente esse:
tendo em vista a presunção de inocência e a derradeira posição do STF (2019) de
que somente se cumpre a decisão condenatória quando houver o trânsito em
julgado para as partes, o artigo 112, I, do CP, seria inconstitucional.
Mereceria, então, uma interpretação conforme a Constituição para deduzir-se a
sua efetiva aplicabilidade. Afinal, em tese, esse dispositivo legal
estaria autorizando o cumprimento da decisão condenatória
assim que transitasse em julgado para a acusação, pois, a contrario
sensu, não fosse assim, inexistiria razão para correr prescrição da
pretensão executória durante um período no qual o Estado não pode fazer valer o
seu poder-dever de punir. Não nos convence esse confronto, embora sempre
tenhamos mencionado a incongruência de se prever o início da prescrição da
pretensão executória no dia em que transitar a decisão condenatória somente para
a acusação. Mas essa incongruência consta expressamente em lei e somente
poderia ser alterada por outra lei ou caso o STF considere o dispositivo
inconstitucional. Venia concessa, para que isso seja viável o
caminho é promover o confronto do mencionado artigo 112, I, do CP com o artigo
5º, LVII, da CF. No entanto, se isto se realizar haveria a utilização de um
princípio-garantia do réu contra os seus próprios interesses, abrindo um
precedente de que os direitos e garantias individuais também poderiam refletir
negativamente em relação ao acusado em processo-crime.
Recordamo-nos da época em que se
debateu a hoje dominante possibilidade da execução provisória da pena,
regulamentada, inclusive, pelo Conselho Nacional de Justiça. Nos anos 1990,
ocorria uma disparidade entre o acusado que recorria ao tribunal contra a
decisão condenatória e aquele que não o fazia para fins de benefícios da
execução penal. Ilustrando, se corréus, cometendo um roubo, fossem condenados a
6 anos de reclusão, iniciando-se no regime fechado, seria viável atingir a
seguinte situação: ambos estariam presos preventivamente há um ano; o corréu A
recorre ao Tribunal, pleiteando a absolvição; o corréu B não o faz e,
transitada em julgado a decisão, o juízo determina a expedição de guia de
recolhimento à Vara das Execuções Penais. A partir disso, o juízo da execução,
considerando a detração (artigo 42, CP), verifica que B já cumpriu um sexto da
sua pena (à época era o padrão para requerer a progressão de regime).
Considerando o bom comportamento, determina a sua progressão ao regime
semiaberto. Portanto, cerca de um ano e meio depois de preso preventivamente, o
acusado B ingressa em regime mais favorável (colônia penal), enquanto o corréu
A continua recolhido em cárcere fechado (onde se mantém quem está recolhido por
força de prisão preventiva). Se a apelação do corréu A demorar para ser
apreciada — o que era algo muito comum à época — seria
possível que o corréu B atingisse a liberdade, chegando ao regime aberto antes
que o recurso do outro fosse apreciado. Uma flagrante injustiça decorrente
exclusivamente da lentidão da Justiça. Atuávamos em Vara de Execuções Penais no
início dos anos 1990, quando uma sentenciada por homicídio simples a
dex anos de reclusão ainda estava com seu caso em grau de recurso
(aguardava apreciação de agravo no STF para a subida de recurso
extraordinário); ela já estava presa cautelarmente há cinco anos e pediu a
progressão. Em função do princípio da presunção de inocência, não poderia ter
seu pedido deferido, pois somente condenados cumprem pena — ela
estava em prisão cautelar e, por isso, indeferimos o pleito. O Tribunal de
Justiça de S. Paulo concedeu-lhe ordem de habeas corpus para
que aguardasse o término de seus recursos em regime semiaberto,
argumentando, com razão, ter a sentenciada (primária, sem outros
antecedentes) cumprido já metade da pena aplicada, com trânsito em julgado para
a acusação, em visão futura da aplicação da detração. Enfim, percebemos que não
se pode utilizar um princípio favorável ao indivíduo, que
funciona como proteção contra qualquer abuso do Estado, em detrimento do
acusado. A presunção de inocência é uma garantia fundamental de todos nós, mas
atua, em particular, em favor de quem é réu em processo criminal,
substancialmente. A execução provisória, hoje, funciona para quem está preso e,
recorrendo, pleiteia a progressão; no entanto, por decisão dos Tribunais,
inclusive os Superiores, não se aplica a quem está solto.
Outro precedente por vezes mencionado
para apontar a possibilidade de não seguir o preceituado pelo artigo 112,
I, do Código Penal, é o julgamento realizado no HC nº 84.078-MG (Plenário,
relator Eros Grau, 05.2.2009, m. v.) que, enaltecendo o princípio da
presunção de inocência, decidiu que somente se autoriza a prisão, para cumprimento
da pena, de réu cuja decisão condenatória tenha transitado em julgado,
significando, por óbvio, para ambas as partes. Porém, não cuidou da prescrição
da pretensão punitiva ou executória, firmando entendimento exclusivamente
favorável ao réu.
Temos como corolário da dignidade
humana o postulado de ser considerada inocente qualquer pessoa até que a
decisão condenatória se torne definitiva e, portanto, sua culpa seja
firmada. O artigo 112, I, do CP, teve fundamento, à época de sua edição, no
mesmo substrato que inspira a existência da prescrição: não é razoável que o
Estado-juiz demore tempo demasiado para julgar recursos e consolidar a situação
processual de alguém. Nem para o cálculo da prescrição intercorrente (o foco é
a pretensão punitiva), nem tampouco para o cômputo da prescrição da pretensão
executória. Quando a decisão condenatória se torna definitiva para a acusação,
a pena concreta máxima emerge (eventual recurso da defesa somente provoca algo
benéfico: absolvição ou diminuição da pena) e, portanto, o Judiciário deve
assegurar a celeridade processual (artigo 5º, LXXVIII: "a
todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração
do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação"),
julgando os recursos interpostos em breve espaço de tempo, pois, do contrário,
firma-se a prescrição da pretensão punitiva ou da pretensão executória. Com as
reformas introduzidas no Código Penal, em especial pela Lei 13.964/2019, os
denominados recursos meramente protelatórios para instâncias
superiores sofreram um bloqueio, tendo em vista constituir causa de suspensão
do prazo prescrição o período decorrente da interposição de embargos de
declaração ou de recursos especial e extraordinário, quando forem considerados
inadmissíveis (artigo 116, III, CP). A partir daí, reduz-se a viabilidade
de ocorrência da prescrição por conta da interposição de recurso com o intuito
protelatório.
De todo modo, em conclusão,
parece-nos admissível a alteração, por lei, da redação dada ao artigo 112,
I, do Código Penal, para constar que a prescrição da pretensão executória tem
início com o trânsito em julgado da decisão condenatória para as partes.
Entretanto, conceder ao referido dispositivo uma interpretação conforme a
Constituição, tomando por base o princípio da presunção de inocência, aparenta
não ser a mais adequada exegese, pois se estaria utilizando uma garantia
individual contra os interesses do réu.
Guilherme
de Souza Nucci é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo,
livre-docente em Direito Penal pela PUC-SP, doutor e mestre em Processo Penal
pela mesma instituição.
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