Hediondez do tráfico de drogas e direito penal do autor
No julgamento do HC 188.533/MS, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutia se a hediondez por equiparação do tráfico de entorpecentes abrangia, também, a causa especial de diminuição de pena prevista no §4º do artigo 33 da Lei de Tóxicos. O saudoso ministro Teori Zavascki, em seu voto, lavrou pertinente consideração quanto ao tema do presente artigo:
O comumente chamado tráfico privilegiado, quando referimo-nos à citada causa de diminuição especial, portanto, não se dá em razão da divergência da conduta do autor do delito, visto que o mencionado instrumento legislativo é expresso ao estabelecer que, nos delitos previstos pelo caput e no §1º do artigo 33, reduzir-se-á a pena tão somente quando o agente ostente a qualidade de primariedade, com bons antecedentes, quando não se dedicar à atividades criminosas e nem integrar organização criminosa. Portanto, percebe-se que o fato da pena ser maior, tanto no caput quanto no §1º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 decorre das características do agente, em expressa aplicação do direito penal do autor.
Considerando o apontado, temos que a aplicação de pena maior, inclusive com a aplicação de diferentes parâmetros na dosimetria da pena (seja na fixação da pena mínima ou na própria majoração desta e, ainda, no regime de pena e na concessão de direitos na execução da pena), a lógica a ser aplicada seria a que o artigo 33, §4º da Lei 11.343/2006, afastado o direito penal do autor, seria a regra.
Desta forma, com o ônus da prova incumbido à acusação de comprovar o não preenchimento, pelo acusado, das causas de diminuição específica, aplicar-se-ia o exposto no caput do artigo 33 da Lei 11.343/2006.
A interpretação lastreada pela boa hermenêutica, de acordo com o raciocínio jurídico empregado no presente momento, pressupõe que o tráfico privilegiado deve ser a regra, com a aplicação da pena mínima do caput acaso não preenchidos os requisitos. Neste passo, tendo em vista que a jurisprudência não considera o tráfico privilegiado como crime hediondo e a conduta praticada pelo autor do delito quando condenado pelo tráfico privilegiado é, em essência, a mesma do caput da Lei 11.343/2006, a tutela do bem jurídico da saúde pública também é a mesma. A consagração do delito se dá unicamente pela conduta, e não pelo agente ser quem é ou ostentar maus antecedentes, de modo que a diferenciação entre o tráfico privilegiado e o tráfico comum, um não sendo equiparado a crime hediondo e o outro sendo, não possui logística jurídica, visto que se criminaliza a conduta.
Everaldo da Cunha Luna dizia que "o homem responde pelo que faz e não pelo que é". Zaffaroni e Pierangeli complementam:
"Ainda que não haja um critério unitário acerca do que seja o direito penal do autor, podemos dizer que, ao menos em sua manifestação extrema, é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma 'forma de ser' do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o proibido e o reprovável ou perigoso, seria a personalidade e não o ato. Dentro desta concepção não se condena tanto o furto, como o 'ser ladrão', não se condena tanto o homicídio como o ser homicida, o estupro, como o ser delinquente sexual etc". (ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro — Parte Geral. 2020, p. 107).
Ao contrário do que se verifica dos crimes titulados no artigo 1º da Lei 8.072/1990, não se percebe diferença na gravidade da conduta do agente que pratica o narcotráfico pela primeira vez, ou ainda ostenta a qualidade de mula, o que a jurisprudência do STJ também considera como tráfico privilegiado, e a do traficante ocasional, de modo diverso do homicídio qualificado (nos termos do artigo 1º, inciso I), que possui, nas hipóteses previstas do artigo 121, §2º, diferentes condutas que foram sopesadas como mais graves pelo legislador. Percebe-se a incongruência em qualificar o tráfico comum como crime hediondo enquanto o tráfico privilegiado não, visto que o homicídio simples não é considerado crime hediondo, tal qual o homicídio privilegiado, que trata de hipóteses atinentes ao próprio agente da conduta.
Ou seja: a Lei de Crimes Hediondos buscou qualificar determinadas condutas como mais graves em relação ao próprio ato praticado pelo agente, pelo modo como foi realizado o crime. Daí decorre, portanto, a inexistência de nexo em seu caracterizar, novamente, o tráfico comum como equiparado a hediondo e o tráfico privilegiado não, visto que a diferença entre um e outro se dá pelas características do agente.
A divergência de tratamento ao agente se dá, por consequência da lógica aqui perpetrada, tão somente na possibilidade de concessão de fiança, graça ou anistia ao tráfico privilegiado, como se verifica do fato dos Decretos Presidenciais nº 6.706/08 e nº 7.049/09 terem beneficiado os condenados pelo tráfico privilegiado e pela própria característica do instituto do indulto, que é conferida ao sujeito, ao indivíduo, à pessoa.
Diante do que foi exposto, há incompatibilidade na interpretação de se considerar a hediondez do tráfico de drogas por equiparação tão somente porquanto inviável de concessão de anistia, graça ou fiança, por força do artigo 5º, inciso XLIII da Constituição e do artigo 2º da Lei 8.072/90, visto que a jurisprudência do STJ interpreta como sendo o artigo 1º um rol taxativo (AgRg nos EDcl no REsp 1244546/PR); que viola o princípio da reserva legal a interpretação in malam partem quando inexistente previsão legal em tal rol para considerar crime hediondo (REsp 180694/PR); e, ainda, que já utilizou também o STJ tão somente da equiparação pela Lei de Crimes Hediondos para consagrar a própria equiparação.
Portanto, em razão da própria teoria consagrada pelo Direito Penal, e ainda pela lógica jurisprudencial das cortes superiores, temos como inevitável compreender a hediondez do tráfico de drogas como uma ilegal aplicação do direito penal do autor.
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