segunda-feira, 16 de outubro de 2023

 Outras ações penais em andamento não justificam aumento de pena

15 de outubro de 2023, 12h31

Por José Higídio

Conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, inquéritos policiais, ações penais em andamento e atos infracionais pretéritos não justificam o aumento da pena por maus antecedentes, conduta social negativa ou personalidade voltada para o crime.

Sob essa argumentação, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca negou o aumento da pena de um homem devido à existência de outra ação penal em curso. Com isso, a pena por estelionato foi fixada em um ano e dois meses de prisão em regime semiaberto, mas substituída por duas medidas restritivas de direitos, a serem fixadas pelo Juízo da execução.

A 3ª Vara Criminal de Dracena (SP) havia condenado o réu a um ano e seis meses de prisão em regime fechado. A juíza aumentou a pena-base porque o homem responde por estelionato em outra ação penal e ainda conta com inúmeros registros de boletins de ocorrência pelo mesmo crime.

O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a sentença. Assim como a juíza, os desembargadores negaram a substituição da pena, devido à reincidência e à "conduta social reprovável".

"O fato de o recorrente ter outros feitos criminais em seu nome não serve para validar o aumento da sanção básica a título de conduta social", apontou o relator do caso no STJ.

Reynaldo também ressaltou que o regime semiaberto pode ser aplicado aos reincidentes condenados a pena de até quatro anos, se as circunstâncias judiciais forem favoráveis — como no caso concreto.

Por fim, o ministro explicou que o § 3º do artigo 44 do Código Penal permite a substituição da pena a condenado reincidente não específico, desde que a medida seja socialmente recomendável. No caso, o réu era reincidente, mas pela prática do crime de receptação, e não de estelionato. Já a conduta social foi afastada da pena-base.

Atuaram no caso as advogadas Bethânia Silva Santana Maria Clara Bizinotto Borges.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

 NÃO COMPRE, PLANTE

STJ consolida posição sobre salvo-conduto para produção de óleo de maconha

 

13 de setembro de 2023, 15h47

Por Danilo Vital

Por maioria de votos, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça confirmou que plantar maconha para extrair óleo de uso medicinal não configura crime de tráfico de drogas. Assim, quem puder comprovar a necessidade de tratamento pode receber salvo-conduto para cultivar a erva sem risco de ser criminalizado.

Óleo canabidiol importado pode ser comprado em farmácias pelo Brasil

A posição, que estava pacificada nas duas turmas que julgam temas criminais, foi confirmada nesta quarta-feira (13/9) e serve para garantir o direito à saúde das pessoas que, por algum motivo, não têm acesso ao medicamento, cuja importação é autorizada pela Anvisa, mas é de alto custo.

O canabidiol que se busca nessas ações é o óleo com propriedades reconhecidamente medicinais extraído da maconha. Ele não contém o princípio ativo entorpecente, mas não pode ser produzido legalmente no país.

Com o salvo-conduto, os beneficiários desses Habeas Corpus podem produzir o óleo de maneira caseira sem correr o risco de ser processados e condenados por tráfico de drogas. As decisões, em regra, trazem limitações de quantidade de plantas e obrigação de se submeter a fiscalização e análise do produto.

A 3ª Seção, que reúne os integrantes das 5ª e 6ª Turmas, se debruçou sobre o tema porque o ministro Messod Azulay, que não participou da formação dos precedentes anteriores porque tomou posse no cargo em dezembro de 2022, propôs uma revisão de entendimento firmado nove meses antes.

Em sua análise, não há motivos para concessão de salvo-conduto. O canabidiol pode ser importado, enquanto a importação de cannabis sativa (maconha) in natura segue proibida. Se o problema é a urgência ou o alto custo do medicamento, a alternativa mais plausível seria recorrer ao Judiciário para obrigar o Estado a custear rapidamente o medicamento.

O ministro Azulay destacou, ainda, que a via do Habeas Corpus preventivo não é adequada para permitir o exercício de uma atividade potencialmente ilegal, sob pena de ativismo judicial ao substituir os órgãos habilitados para definir o assunto. Foi acompanhado pelo desembargador convocado João Batista Moreira.

Em voto-vista nesta quarta, o desembargador convocado Jesuíno Rissato divergiu para evitar a revisão jurisprudencial. Destacou a evolução do tratamento do tema pelo Judiciário e concluiu que não seria oportuno, nem conveniente dar "uma marcha ré" em uma posição recentemente fixada.

"Isso causaria até uma certa perplexidade nos aplicadores do Direito, que seguem a jurisprudência da Corte. Viria em prejuízo da segurança jurídica. Então, não seria o momento de se reiniciar uma discussão sobre uma matéria tão recentemente pacificada nas turmas", disse.

Ministro Messod Azulay propôs revisão da posição do STJ e alertou para a ocorrência de ativismo judicial 

Pelas mesmas razões, votaram com a divergência os ministros Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior, Rogerio Schietti, Reynaldo Soares da Fonseca e Antonio Saldanha Palheiro. Não votou o ministro Joel Ilan Paciornik porque não esteve presente no dia em que foram feitas sustentações orais.

Evolução em pauta
A posição que permite o salvo-conduto representou uma lenta e evolução jurisprudencial do STJ, a partir do tratamento dado ao tema no Judiciário.

Juízos de primeiro grau, de juizados especiais e até Tribunais de Justiça com posicionamento penalmente rigoroso, como o de São Paulo, passaram a entender que não cabe a persecução penal quando o plantio de maconha, nos limites da lei e sob fiscalização de órgãos sanitários, destina-se à extração do óleo.

Também se somaram ao avanço paulatino do canabidiol no Brasil decisões judiciais que, por exemplo, determinaram que planos de saúde fornecessem de medicamentos à base de canabidiol e que autorizaram farmácias de manipulação a comercializar esse tipo de produto.

Essa cenário foi citado pelos ministros que acompanharam a divergência. Ao votar, o ministro Rogerio Schietti propôs uma reflexão: “Enquanto o STF caminha a passos largos para reconhecer a inconstitucionalidade do crime de portar maconha para consumo pessoal recreativo, é de se indagar: é razoável que compactuemos com a responsabilização penal do paciente por pretender o cultivo da cannabis com finalidade exclusivamente medicinal e amparado em prescrição médica?”

HC 802.866
HC 783.717

 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

 

CORREÇÃO DE ROTA

Motivado pelo Supremo, STJ defere execução imediata de condenação pelo júri

Por 

Permanecendo válida e vigente a lei que autoriza a execução provisória da pena no caso de condenação pelo Tribunal do Júri, cabe ao Superior Tribunal de Justiça aplicá-la até que o Supremo Tribunal Federal chegue a uma conclusão sobre sua constitucionalidade .

STJ vinha afastando execução antecipada
da pena decorrente de condenação pelo júri, por ofensa à presunção de inocência
fongbeerredhot/freepik

Baseadas nesse entendimento, as turmas de Direito Penal do STJ têm derrubado acórdãos anteriores em que entenderam ser indevida a execução antecipada da pena no caso de pessoas condenadas por crimes contra a vida, antes do trânsito em julgado das condenações.

O caso mais recente e contundente foi julgado nesta terça-feira (12/9), quando a 5ª Turma autorizou a execução da pena dos condenados pela "chacina de Unaí", em que fiscais do trabalho foram assassinados durante fiscalização em fazendas da cidade mineira, em 2004.

No ano passado, quando confirmou a condenação, o colegiado vetou a execução antecipada da pena e aplicou a jurisprudência segundo a qual prevalece, também nos casos do Tribunal do Júri, a presunção de inocência garantida pela Constituição até o trânsito em julgado da condenação.

Em suma, os ministros do STJ entendiam que o princípio da presunção de inocência, que levou o Supremo a proibir a execução antecipada da pena em 2019, deveria prevalecer sobre o princípio da soberania dos vereditos do júri popular.

Com isso, o STJ estava afastando a aplicação do artigo 492, inciso I, alínea "e", do Código de Processo Penal, segundo o qual, após a condenação pelo júri, o juiz deve determinar a execução provisória no caso de pena igual ou superior a 15 anos de reclusão.

Acórdãos das turmas do STJ com essa posição levaram os órgãos responsáveis por esses casos no Ministério Público a ajuizar reclamação constitucional no STF, sob alegação de ofensa à Súmula 10 da corte.

O enunciado dessa súmula diz que "viola a cláusula de reserva de plenário a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte".

Ou seja, ao não aplicar o artigo 492, inciso I, alínea "e", do CPP, o STJ estaria violando a regra da Constituição Federal segundo a qual somente pelo voto da maioria absoluta dos membros de seu órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei.

Em duas decisões, ministros do STF deram razão ao MP. Eles mandaram devolver o caso às turmas criminais do STJ com duas opções: aplicar a lei ou enviar o caso à Corte Especial, onde seria instaurado um incidente de inconstitucionalidade.

Melhor deixar estar
Tanto para a 5ª quanto para a 6ª Turmas do STJ, é inviável, neste momento, discutir na Corte Especial a constitucionalidade da norma do CPP. Isso porque o próprio STF está com o tema em julgamento, com repercussão geral reconhecida e andamento avançado.

Para ministro Ribeiro Dantas, suscitar inconstitucionalidade do artigo 492 do CPP no STJ causaria insegurança jurídica
Lucas Pricken/STJ

O RE 1.235.340 já tinha maioria formada para permitir a execução antecipada da pena — com uma divergência quanto à necessidade de observar o mínimo de 15 anos de pena, como previu o pacote "anticrime" — quando o ministro Gilmar Mendes pediu destaque para reiniciar o julgamento no Plenário presencial.

Relator do recurso do caso de Unaí na 5ª Turma, o ministro Ribeiro Dantas destacou que é forçoso concluir que a regra do artigo 492 do CPP permanece vigente e com constitucionalidade presumida até o momento.

De acordo com o magistrado, se houvesse qualquer indício de invalidade da previsão de execução provisória da pena imposta por condenação do Tribunal do Júri, o STF teria suspendido a norma ou, no mínimo, o ministro Alexandre de Moraes não teria julgado procedente a reclamação no caso.

"Deflagrar aqui o rito da declaração de inconstitucionalidade traria mais insegurança jurídica, criando uma orientação jurisprudencial potencialmente instável e sujeita a modificação em um futuro muito próximo", afirmou o relator. "Aos que dizem que o Supremo pode mudar essa orientação: que mude. Nós, não. Ao Supremo compete a guarda da Constituição", acrescentou ele.

A 6ª Turma enfrentou o tema no HC 737.749, em que inicialmente havia deferido liminar para afastar a execução antecipada da pena de um homem condenado por homicídio qualificado. Contra esse caso, o ministro do STF Ricardo Lewandowski, hoje aposentado, julgou procedente uma reclamação ajuizada pelo MP de Minas Gerais.

Ao receber de volta o caso, a 6ª Turma enxergou uma saída processual: o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) já havia julgado o Habeas Corpus originário, o que levou à perda do objeto do caso julgado no STJ.

"Não há utilidade em provocar a arguição de inconstitucionalidade perante a Corte Especial. Primeiro, porque o Habeas Corpus perdeu seu objeto. Segundo, porque a matéria teve a repercussão geral reconhecida e avança-se para o seu julgamento em precedente obrigatório", destacou o relator, ministro Rogerio Schietti.

REsp 1.973.397
HC 737.749

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

 DEBATE ENCERRADO

Juiz das garantias é constitucional e deve ser implantado em até 2 anos, decide STF

23 de agosto de 2023, 18h56

Por Tiago Angelo

O juiz das garantias assegura o respeito aos direitos fundamentais dos investigados, em concordância com o que foi consagrado pela Constituição Federal, e reduz o risco de parcialidade nos julgamentos. Sua criação é uma legítima opção feita pelo Congresso e deve ser implementada em todo o território brasileiro de forma obrigatória.

Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade do juiz das garantias
Fellipe Sampaio/STF

Com base nesse entendimento, o Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quarta-feira (23/8) pela implantação obrigatória do juiz das garantias em até 12 meses, com a possibilidade de uma única prorrogação por igual período. Na prática, portanto, a novidade deve funcionar em todo o país em no máximo dois anos.

Após dez sessões de discussão sobre o tema, venceu a divergência aberta pelo ministro Dias Toffoli. O relator do caso, ministro Luiz Fux, entendeu que cada tribunal pode optar por criar ou não a figura do juiz das garantias, mas não foi acompanhado por nenhum colega quanto a esse ponto, embora tenha vencido em outros. O resultado será proclamado na sessão desta quinta (24/8), já que falta a definição de alguns pontos. 

"A instituição do juiz das garantias veio a reforçar o modelo de processo penal preconizado pela Constituição de 1988. A nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido prioritariamente como veículo de aplicação da sanção penal, mas que se transformasse em instrumento de garantias do indivíduo em face do Estado", disse Toffoli em seu voto. 

"Mostra-se formalmente legítima, sob a ótica constitucional, a opção do legislador por instituir no sistema processual penal brasileiro a figura do juiz das garantias. Trata-se de uma legítima opção feita pelo Congresso Nacional no exercício de sua liberdade de conformação, que, sancionada pelo presidente da República, de modo algum afeta o necessário combate à criminalidade", prosseguiu o magistrado.

O tribunal também analisou outros pontos da lei "anticrime" (Lei 13.964/2019). Os ministros entenderam, por exemplo, que a competência do juiz das garantias acaba no oferecimento da denúncia, e não em sua recepção, ao contrário do que foi estabelecido na norma analisada.

O Plenário estabeleceu ainda a necessidade de o Ministério Público informar ao juiz competente sobre a existência de todo tipo de investigação criminal, e também o entendimento de que o juiz das garantias deve atuar junto em casos criminais de competência da Justiça Eleitoral.

Os magistrados também decidiram pela inconstitucionalidade da previsão segundo a qual, em comarcas com apenas um juiz, os tribunais deveriam criar um sistema de rodízio entre magistrados, para que juízes que atuam na fase pré-processual não atuem no julgamento, e vice-versa. Para os ministros, o trecho violou o poder de auto-organização dos tribunais.

Ao propor o prazo de 12 meses para a implantação da novidade, a contar da data de publicação da ata do julgamento, e conforme diretrizes do Conselho Nacional de Justiça, Toffoli afirmou que a possibilidade de prorrogação depende de haver justificativa por parte dos tribunais, e que ela seja aceita pelo CNJ. 

As decisões foram construídas em intensos diálogos entre os ministros. Fux e Toffoli, por exemplo, ajustaram ou alteraram diversos pontos de seus votos durante o julgamento, a partir de posicionamentos levantados por outros colegas no decorrer de suas manifestações.

A atuação do juiz das garantias em processos criminais de competência da Justiça Eleitoral, por exemplo, foi um ponto levantado pelo ministro Alexandre de Moraes e posteriormente incluído nos votos dos demais magistrados.

O mesmo ocorreu com o prazo de 12 meses, proposto por Toffoli. De início, Alexandre, por exemplo, propôs o prazo de 18 meses. Posteriormente, acabou acompanhando Toffoli. 

Ao criar o juiz das garantias, a lei "anticrime" buscou reduzir o risco de parcialidade nos julgamentos. Com a medida, esse magistrado fica responsável pela fase investigatória.

Entre as suas atribuições está decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar e sobre a homologação de acordo de colaboração premiada.

Voto do relator

O caso começou a ser analisado pelo Plenário do Supremo em 22 de junho, antes do recesso, portanto. A conclusão do voto do relator, no entanto, só ocorreu no dia 28 daquele mês. Na ocasião, Fux se manifestou pela inconstitucionalidade do juiz das garantias.

Para ele, o modelo presume, sem base empírica, a parcialidade do magistrado que atuou durante a investigação para julgar a ação penal. Dessa maneira, viola o princípio da proporcionalidade. Além disso, o mecanismo interfere na estrutura do Judiciário e sua criação só poderia ter sido proposta por tal poder.

Sob o prisma formal, o ministro afirmou que a criação do mecanismo violou o pacto federativo. Segundo ele, o inquérito tem natureza jurídica de procedimento, não de processo penal. Assim, é matéria de competência concorrente da União e dos estados, conforme o artigo 24, XI, da Constituição Federal.

Ao regular extensivamente a aplicação do instituto, diz o ministro, a lei "anticrime" invadiu a competência dos estados para dispor sobre suas Justiças, sem atenção às diferenças regionais e de tecnologia. 

O magistrado também entendeu que a norma desrespeitou a reserva de iniciativa do Judiciário para dispor sobre a competência e o funcionamento dos órgãos jurisdicionais e a criação de novas varas (artigo 96, I, "a" e "d", da Constituição). 

Tal regra busca proteger o princípio da separação dos poderes, ressaltou Fux. Com esse fundamento, mencionou ele, o STF barrou a Emenda Constitucional 73/2013, que criava quatro Tribunais Regionais Federais.

Imparcialidade
Na sessão desta quarta-feira, votaram os ministros Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber, presidente da corte. Para Barroso, apesar de o juiz das garantias não ser, em sua opinião, a solução para os problemas do sistema penal brasileiro, é uma alternativa legítima do Legislativo.

"Gostando ou não, foi uma decisão legítima do Poder Legislativo, de modo que, não havendo incompatibilidade com a Constituição Federal, o nosso papel é acatar a vontade do legislador", afirmou ele.

Cármen Lúcia disse que o instituto é benéfico, no sentido de que "busca o aperfeiçoamento de um processo que precisa ser aperfeiçoado e tem de se colocar ao aperfeiçoamento permanente". 

Gilmar Mendes citou o conluio entre procuradores da "lava jato" de Curitiba e o ex-juiz Sergio Moro ao defender o juiz das garantias. Também falou da "operação ouvidos moucos", que levou ao suicídio do ex-reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier. 

"Quem acha que tudo isso é normal e que não são necessárias reformas estruturantes para evitar a repetição desses escândalos, certamente não está lendo a Constituição e nem conhece o nosso Código de Processo Penal", afirmou o decano do STF.

Ainda segundo o ministro, a criação do juiz das garantias assegura "mecanismos indutores da imparcialidade do magistrado, favorecendo a paridade de armas, a presunção da inocência, o controle da ilegalidade dos atos investigativos invasivos, contribuindo para uma maior integridade do sistema de Justiça". 

ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305

 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

SEQUÊNCIA ILEGÍTIMA

TJ-SP tranca ação penal de tráfico por série de ilegalidades em abordagem

20 de agosto de 2023, 17h59

Por Renan Xavier

O ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto.

Réu apresentou versão diferente da que foi contada pelos policiais militares

Esse entendimento foi utilizado pela 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para trancar a ação penal contra um homem preso por tráfico de drogas.

De acordo com os autos, os policiais militares que abordaram e prenderam o acusado agiram motivados, a princípio, por denúncia anônima de que ele estava vendendo drogas. Na chegada dos agentes ao local, o réu teria tentado fugir, sendo alcançado quando tentava entrar em casa. 

Nada de ilícito foi encontrado com o homem na primeira revista feita pelos policiais, mas ele teria confirmado que estava traficando drogas. Segundo o que consta no boletim de ocorrência, o réu teria autorizado os policiais a entrarem em sua casa para buscarem drogas que estariam no local, e ele mesmo teria indicado onde estaria um pacote com crack.

Na delegacia, no entanto, o homem negou tudo. Ele alegou que os policiais invadiram sua casa enquanto estava dormindo e que foi coagido a entregar uma arma aos militares, objeto não confirmado nos autos.

Testemunha ignorada

Relator do caso, o desembargador Heitor Donizete de Oliveira destacou que a mulher do réu, que estava no local no momento da abordagem policial, sequer foi ouvida como testemunha. "Ou seja, não consta a comprovação de qualquer autorização de algum morador para entrada dos policiais na residência do paciente. Embora a materialidade delitiva venha demonstrada nos autos, é certo que a prova produzida nos autos principais se encontra eivada de ilegalidade inicial e, por isso, não serve para sustentar uma prisão preventiva, ou sequer uma prisão em flagrante."

O magistrado destacou que os policiais não comprovaram que o suposto tráfico acontecia no local da abordagem. Para o relator, se as informações relativas à traficância feita pelo réu fossem tão relevantes, haveria fundadas suspeitas suficientes para o pedido de um mandado de busca e apreensão para aquele local. Segundo o magistrado, o ponto fundamental que desestabiliza e enfraquece a diligência policial foi a ausência inicial de autorização de entrada na residência.

"O que deve ser salientado é que 'denúncias ou notícias anônimas' de 'colaboradores anônimos', e os pormenores constantes nos depoimentos dos agentes públicos, sem outras comprovações, ainda que indiciárias, não podem ser considerados como atos ou circunstâncias de permissão para uma abordagem, quanto menos uma invasão de domicílio", disse o relator.

O magistrado afirmou que a pedra de toque do caso foi o primeiro ato da atuação policial, que causou a nulidade da invasão de domicílio do réu. "É certo que há uma sutileza na dinâmica do evento, mas tal circunstância é crucial para o reconhecimento da ilegalidade do ato. Ou seja, não podemos descartar a hipótese de que os policiais entraram na casa quando o paciente já estava dentro do imóvel; e ele, ainda que tenha sido abordado entrando na casa, nesse momento, não foi visto praticando nenhum ato de possível mercancia de entorpecentes, e nada de ilícito foi encontrado em sua posse."

Para o relator, toda a diligência policial que se seguiu se mostrou "contaminada e despicienda". "Como inobservada garantia constitucional e disposição legal contidas na lei processual penal, tudo o que se seguiu ao ingresso ilegal no interior da residência do paciente não pode ser considerado, pois estamos diante de prova ilícita, tendo aplicabilidade na hipótese a teoria dos frutos da árvore envenenada."

O relator lembrou que, com a invalidação da prisão em flagrante em razão da ilegalidade da ação, as provas e os atos processuais decorrentes também ficam invalidados. Isso enseja, também, o trancamento da ação penal. O réu foi representado na ação pelo advogado Lucas Hernandes Lopes.


HC 2170049-40.2023.8.26.0000

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

 

PROVAS INSUFICIENTES

Má gerência não se confunde com dolo e 11 são absolvidos no Porto de Santos

Por 

A má gerência de órgão público justifica uma criteriosa investigação e a responsabilização dos gestores na esfera cível-administrativa, mas é insuficiente para puni-los criminalmente sem a comprovação de que tiveram intenção de lesar o erário para benefício próprio ou de terceiros.

Com essa ponderação, o juiz Roberto Lemos dos Santos Filho, da 5ª Vara Federal de Santos, absolveu 11 pessoas denunciadas pelos crimes de fraude a licitação e peculato. Oito réus integravam a alta cúpula da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), atual Autoridade Portuária de Santos.

Divulgação

"Na seara criminal, a falta de zelo, prudência ou mesmo a omissão de um dever funcional não são suficientes, per si, para demonstração do dolo. Com efeito, o elemento subjetivo do tipo nunca pode ser presumido, mas sim efetivamente demonstrado, sob pena de afrontar ao próprio princípio da presunção de inocência", sentenciou o julgador.

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou todos os 11 réus por peculato, porque a condição de funcionários públicos dos ex-integrantes da Codesp, por se tratar de elementar do crime, se comunica com os demais acusados, ligados a uma empresa privada que venceu a licitação supostamente viciada.

Os acusados vinculados à estatal também responderam pelo delito do artigo 90 da Lei 8.666/1993 (fraudar procedimento licitatório com o intuito de obter vantagem decorrente do seu objeto). A empresa Vert venceu o certame e celebrou contrato para monitorar com drones o Porto de Santos, durante 12 meses, pelo valor de R$ 2,7 milhões.

Segundo o MPF, os réus teriam desviado valores referentes a pagamentos por serviços que não chegaram a ser prestados pela vencedora da licitação, causando prejuízos à Administração Pública. Codesp e Vert assinaram o contrato em maio de 2018, sendo a denúncia oferecida em julho de 2021. A sentença é da última quinta-feira (10/8).

A inicial acusatória teve por base investigação da Polícia Federal no curso da operação tritão. De acordo com Roberto Lemos, embora os elementos indiciários colhidos na fase de inquérito evidenciem supostas ações ilícitas, elas não foram provadas. "Isso porque não emerge dos autos, com a clareza necessária, terem os acusados agido com dolo".

O juiz federal observou que “defeitos no certame”, por si só, não podem ser atribuídos de forma objetiva a uma suposta intenção dos acusados de frustrarem o caráter competitivo da licitação. Além disso, não há prova de enriquecimento ilícito e não ficou demonstrado conluio entre o grupo da Codesp e o trio da empresa de monitoramento por drones.

"Assumir que os réus estavam revestidos do elemento subjetivo específico do tipo meramente por ocuparem posições de direção e não terem pedido esclarecimentos adicionais aos setores técnicos da empresa é admitir a responsabilização penal objetiva, o que é vedado em nosso ordenamento", justificou Lemos.

Quanto aos valores que teriam sido desviados, o julgador apontou que não há comprovação de prejuízo para a Codesp, até porque a Controladoria-Geral da União e a auditoria da própria estatal, realizada após a gestão dos denunciados, não auferiram o impacto econômico das irregularidades narradas na denúncia.

Também sem culpa
Embora o crime de peculato preveja a modalidade culposa (artigo 312, parágrafo 2º, do Código Penal), a condenação exige que o réu concorra culposamente para o delito de outrem. "No caso concreto, o dolo de nenhum dos réus foi demonstrado, inviabilizando, portanto, a condenação de qualquer outro por culpa", assinalou Lemos.

Ao absolver os 11 acusados sob o fundamento de insuficiência de provas, o magistrado ressaltou que, "diante da incerteza, a dúvida deve sempre militar em favor dos acusados, em obediência ao princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, consagrado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal".

A sentença considerou "plausível", entre outras, a tese sustentada pelas defesas dos réus de que a homologação da licitação se baseou em pareceres técnicos de outros funcionários da Codesp. Os autores desses estudos de viabilidade não chegaram a ser denunciados pelo MPF.

No caso específico de um dos diretores da empresa ganhadora do certame, o advogado Rodrigo Barboza Delgado acrescentou que, conforme a prova testemunhal, o contrato com a estatal foi executado de acordo com as cláusulas, revelando-se útil à Codesp. O defensor frisou ainda que o cliente não obteve qualquer vantagem indevida.

O advogado Jonatas de Sousa Nascimento defende outro suposto diretor da empresa privada e sustentou que cliente sequer integra a pessoa jurídica. "O único 'delito' que recai sobre ele é o fato de ser irmão de um dos corréus. Mas o MPF não demonstrou a sua participação em desvio de verba pública, que também sequer foi comprovada."

Defensor do superintendente jurídico da Codesp à época dos fatos, o advogado Eugênio Malavasi frisou que o cliente não integrava a diretoria executiva da estatal e, portanto, não detinha poder decisório, tampouco a atribuição para adjudicar o objeto da licitação. "Ele não agiu com dolo, tendo apenas cumprido seu dever funcional."

Processo nº 5004303-36.2021.4.03.6104


 

REALIDADE NUA E CRUA

"Achar que presídio é solução e que o preso não voltará ao convívio é um erro"

Por  e 

A sociedade brasileira, seus representantes políticos e seu Poder Judiciário convivem nos dias atuais com um grande dilema: como fazer com que seu sistema prisional, que opera em reconhecido estado de coisas inconstitucional, ofereça a pacificação social que o Direito Penal promete. Na visão de Sebastião Reis Júnior, a correção de rumos passa pela necessidade de conhecer de fato como os reeducandos são tratados presídios adentro e as consequências disso.

A opinião é de um ex-advogado que, na função de consultor jurídico do Ministério da Integração Nacional, teve a oportunidade de viajar o país e conhecer as realidades mais distintas, que serviram para formar seu entendimento. Desde 2011, quando foi empossado ministro do STJ e passou a integrar uma das turmas criminais, buscou reproduzir essa experiência para saber melhor os impactos de seus julgamentos.

As visitas a presídios e entidades como a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs) deram a Reis Júnior a certeza de que é um erro achar que prisão é solução e que os presos não voltarão ao convívio social. Ele entende que a falta de um tratamento digno a quem comete crimes é o que prejudica a ressocialização e potencializa a chance de retorno à criminalidade. E se diz incomodado pelo fato de magistrados, membros do Ministério Público e advogados não saberem disso.

"É muito bonito dizer que processo não tem cara, mas tem uma vida ali. O processo no papel já era frio, agora, digitalizado, é mais frio ainda. Daí a importância de visitar presídios, de conviver. O magistrado tem que sair da casinha dele, tem que viver a vida e sentir as coisas. Tem que conhecer a realidade do estado, porque são situações que aparecerão”, defendeu, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

As experiências no sistema penal brasileiro ainda permitiram ao ministro publicar o livro Translucida, obra que reúne fotos de sua autoria de pessoas transgênero recolhidas em estabelecimentos penais e reflexões sobre o tema, em formatos variados — contos, estudos técnicos e poemas. A obra foi lançada na sede do STJ em junho e confere visibilidade a uma parcela dessa população que, cedo ou tarde, retornará possivelmente mais marginalizada.

Para o ministro Sebastião, a noção quanto a essa realidade também pode permitir que juízes entendam melhor a necessidade de dar alguma coerência jurisprudencial aos julgados, o risco de isso aumentar ainda mais as tensões no sistema carcerário e até a forma de encarar temas profundamente impactados por moralismo, como o do juiz das garantias.

Leia a entrevista:

ConJur — Como surgiu a ideia do livro Translúcida?
Sebastião Reis Júnior — A ideia surgiu após uma visita às presas, há quatro anos, e também por influência do livro Ausência, da fotógrafa Nana Moraes, que mostrou o abandono dessas pessoas. Então procurei a direção do presídio e as presas para saber se elas estariam dispostas a participar do projeto, inicialmente previsto para ser um ensaio fotográfico.

ConJur — E quando essa ideia inicial mudou?
Sebastião Reis Júnior — Fizemos uma primeira apresentação das fotos no congresso internacional anual do IBCCrim. A coisa foi crescendo a partir daí e se transformou no livro. Mas eu queria algo diferente, que não fosse focado apenas em doutrina jurídica. Então também procurei pessoas de áreas distantes do Direito, como artistas plásticos e chargistas.

ConJur — Qual é sua avaliação do tratamento dado pelo Estado às presas transexuais?
Sebastião Reis Júnior — A visão que tenho é a de uma realidade que elas me passaram. No presídio que visitei, elas disseram se sentir respeitadas. Tinham direito, por exemplo, a ter cabelo comprido, sutiã, calcinha. Por outro lado, elas tinham que interromper o tratamento hormonal por falta de acompanhamento médico, o que é um problema muito sério. Mas, mesmo com a superlotação, o presídio era limpo, destoando do caos encontrado nas inspeções feitas pelo CNJ.

ConJur  Que é o que impera no sistema prisional, correto?
Sebastião Reis Júnior — Ouvi das presas que a gestão de outras unidades prisionais as tratam como homens, cortando seus cabelos e não garantindo uma ala diferenciada, apenas um conjunto de celas no da ala masculina.

ConJur — Qual é o motivo do descaso histórico com o sistema prisional?
Sebastião Reis Júnior — Nosso grande erro é achar que presídio é a solução, que os presos não voltarão para o convívio social. Enquanto continuarmos com essa ideia, não vamos evoluir. Essas pessoas vão ficar lá cinco, sete, dez anos e vão sair. E se não as tratarmos com dignidade e não dermos perspectiva de vida, a possibilidade de retorno ao crime é enorme. Isso porque elas estarão revoltadas e numa situação de vida muito pior do que aquela em que viviam quando foram encarceradas, pois a chance de arrumar emprego é mínima. Essa é a mentalidade que ainda prevalece numa parcela do Judiciário e em boa parte da sociedade. Na pandemia, com o isolamento, eu realmente achei que a sociedade ia pensar um pouco melhor.

ConJur — Mas piorou.
Sebastião Reis Júnior — Quando se está enclausurado em casa, com todos os confortos, já é enlouquecedor, imagina enjaulado. E o cenário piora quando se trata de uma mulher encarcerada, por conta do abandono familiar. Ao contrário do homem preso, que recebe visita da mãe, da companheira. Incomoda saber que boa parte da magistratura não tem noção disso. Há muitos juízes que visitaram presídios apenas quando eram estudantes, quando algum professor teve a sensibilidade de levá-los ao presídio.

ConJur — O desconhecimento é tamanho que ainda discutimos o fornecimento de absorventes em presídios.
Sebastião Reis Júnior — É algo inimaginável achar absorvente supérfluo. Se discutimos o acesso a absorventes fora da penitenciária, imagina intramuros. As pessoas criticam a preocupação do tribunal com direitos individuais porque não é com elas. O dia em que for, vão exigir todas as garantias constitucionais. Pessoas que até pouco tempo eram acusadores passaram a gritar por direito de defesa quando se viram no papel de acusados. Nós temos que mudar essa mentalidade de que não é preciso se preocupar com algo enquanto só acontece com o outro.

ConJur — Não é sintomático que a parte que não defende o bom trato do preso no sistema penitenciário não tenha relação com o tema, com o Direito Penal?
Sebastião Reis Júnior — É o reflexo do que as pessoas pensam. E o Judiciário é reflexo da nossa sociedade, assim como os outros Poderes. Se temos um Congresso, hoje, majoritariamente conservador é porque a sociedade, em sua maioria, é conservadora. Essa é a realidade e não tem como fugir.

ConJur — Como é o histórico das visitas do senhor a essas instituições?
Sebastião Reis Júnior — A primeira vez que fui foi essa, a convite do IDDD. Depois, tive a iniciativa de visitar novamente. Aí eu provoquei o pessoal de Minas Gerais para conhecer as Apacs. Sempre tinha ouvido falar, mas nunca tinha tido oportunidade de conhecer. Visitei as unidades de Santa Luzia, São João Del Rey e Belo Horizonte. No fim de junho, fui no conhecer o presídio feminino no Rio. Devo voltar no segundo semestre. Também fui à Papuda, aqui em Brasília, a todos os presídios de segurança máxima. Sempre que tem uma oportunidade, acho interessante conhecer e ver como é que funciona, até para ter uma ideia do que você está fazendo com a pessoa. Quero transformar isso numa rotina, fazendo essas visitas pelo menos uma ou duas vezes por semestre.

ConJur — Mas não há uma ‘maquiagem’ porque o ministro vai visitar?
Sebastião Reis Júnior — Você pode esconder algumas coisas, mas não tudo. É claro que o próprio preso pode ter medo de falar, mas é possível perceber, pelo quadro geral, qual é a realidade. Por exemplo, na Colmeia [Penitenciária Feminina do DF], quando visitamos, eles sortearam quais presas conversaríamos, para não dizer que eram pessoas previamente selecionadas por eles. E as conversas ocorriam sem a presença da gestão do presídio. Tivemos plena liberdade para conversar com as pessoas. Em outra visita, em São Paulo, quando passávamos pelas celas masculinas, vários presos reclamavam sobre problemas na execução penal, da qualidade da comida.

ConJur — Como o senhor avalia a importância de magistrados, integrantes do Ministério Público e advogados conhecerem a realidade prisional?
Sebastião Reis Júnior — É fundamental, até porque isso ajuda a entender que ali estão pessoas. Algumas erraram, outras não. Tem gente ali que nem sabe se errou, porque todo dia descobrimos erros judiciários. É muito bonito dizer que processo não tem cara, mas tem uma vida ali. O processo no papel já era frio, agora, digitalizado, é mais frio ainda. Daí a importância de visitar presídios, de conviver. O magistrado tem que sair da casinha dele, tem que viver a vida e sentir as coisas. Tem que conhecer a realidade do estado, porque são situações que aparecerão. Fui consultor jurídico do Ministério da Integração, o que me permitiu conhecer realidades de todo o Brasil; vi a dificuldade de prefeituras pequenas. Quando vou examinar um processo que questiona a responsabilidade de um prefeito, por exemplo, é preciso se atentar a essas nuances.

ConJur — Em uma palestra recente o senhor falou que as pessoas não entendem a gravidade que há em ter duas pessoas condenadas pelo mesmo crime com tratamento desigual. Qual é o risco?
Sebastião Reis Júnior — Isso vira o presídio [gíria usada no sistema prisional para falar de rebelião]. Imagine o efeito da diferença de tratamento, pelo Judiciário, para duas pessoas que cometeram o mesmo crime e dividem uma cela? O preso já está no limiar do limiar, então tudo é motivo para iniciar uma confusão dentro da penitenciária. A lei não prevê a uniformização, cada juiz aplica o que considera correto e o tribunal vai direcionando. O papel do Judiciário também é o de ter essa sensibilidade. Por um lado, a lei não pode ser muito rígida, porque isso promoveria injustiças e impediria a correção nos casos individuais. Por outro, é preciso ter uma coerência na aplicação da lei.

ConJur — A quantidade de recursos que chegam ao STJ influencia?
Sebastião Reis Júnior — Há dias em que chegam 40, 45 habeas corpus. Isso dificulta a análise das diversas questões, como aplicação do redutor no tráfico ou a quantidade de droga, sem haver discrepância. Não sei qual seria a solução, mas ajudaria se os tribunais firmarem o máximo possível de teses e fazerem valer esses entendimentos. A partir do momento que se diminui o volume processual, julgando uniformemente, o cenário melhora. Houve um julgamento recente aqui, sobre a necessidade de cumprir o início da pena em regime fechado, em que o juiz aplicou um dispositivo declarado inconstitucional pelo Supremo há 10 anos. Isso não é questão de interpretação, não é uma discussão subjetiva. Há casos onde a lei realmente garante espaço para interpretação, mas há outros em que as questões são objetivas. Nesses, é preciso respeitar os precedentes. Do contrário, o sistema não funciona, entra em colapso. Digo sempre que, para mim, já entrou em colapso.

ConJur — O julgamento sobre descriminalização do porte de drogas para consumo pode ajudar a reduzir o número de processos e a população carcerária?
Sebastião Reis Júnior — A questão é saber se a magistratura, o Ministério Público e a polícia não forçarão a barra para achar elementos que justifiquem a presença do tráfico. A tese vai ser firmada, mas teremos boa vontade para compreendê-la, para garantir o efeito almejado? É muito fácil fugir da jurisprudência.

ConJur — É o que acontece com a tese da invasão de domicílio.
Sebastião Reis Júnior — É o caso do “eu vi por cima do muro”, do “senti o cheiro de maconha”, entre outros argumentos. Antes, a invasão sem autorização judicial era justificada só com denúncia anônima. Quando perceberam que não funcionava mais, mudaram de argumento. Sempre haverá uma forma de tentar burlar a jurisprudência.

ConJur — Em 2016, o STF declarou o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário. Sete anos se passaram e nada mudou. O Estado ignorou a decisão?
Sebastião Reis Júnior — Não adianta fixar determinada linha de ação sem definir sanção. A verdade é essa. O Supremo fez o que podia, que era declarar e atestar a situação. Mas é preciso haver vontade do Estado, que é quem tem poder e condições para modificar esse estado de coisas inconstitucional. Porém, não dá voto reformar ou construir presídio e mudar política pública de combate à criminalidade.

ConJur — É o mesmo que ocorre com o juiz de garantias?
Sebastião Reis Júnior — Não entendo a AMB combatendo tanto o juízo de garantias, dizendo que vai aumentar gasto, que será difícil implementar. É a mesma rejeição que a magistratura teve com as audiências de custódia. Até acho que a lei que criou o juiz de garantias errou ao usar esse nome, pois juiz da instrução facilitaria a compreensão, e ao determinar prazo inviável de 90 dias para iniciar a implantação no Judiciário. Mas o ministro Dias Toffoli prorrogou esse prazo, além de a lei não impor a implantação imediata, respeitando a capacidade de cada estado. Mesmo assim, a AMB é contra, a Associação Nacional do Ministério Público é contra e a sociedade como um todo é contra por achar que vai ajudar bandido.

ConJur — Critica enquanto não é alvo da Justiça...
Sebastião Reis Júnior — Isso muda quando o cidadão passa a ser acusado de um crime, porque qualquer um de nós pode passar por isso, não precisa ter intenção de matar. Você pode estar dirigindo um carro, espirrar, fazer uma manobra brusca e matar alguém. Aí eu quero ver se não vai pedir por um juiz imparcial, por respeito ao direito de defesa.

ConJur — O juiz de garantias vai trazer algum resultado efetivo? O juiz de execução penal também foi criado para aumentar o distanciamento entre apenado e o magistrado que o condenou, mas pouco mudou.
Sebastião Reis Júnior — É um passo, até porque o Judiciário é conservador. A questão do juiz de garantias é você dar independência. Imagine um juiz determinar a prisão da pessoa, que fica anos encarcerada, e, quando vai julgar, percebe que deve absolver esse réu. Como que vai conviver com esse fato? Um outro magistrado fica muito mais livre para isso. Esse novo modelo só funcionará se houver uma mudança de mentalidade. Se o juiz pensar que uma decisão contrária vai desrespeitar o colega, não vai funcionar. Há juízos de execução penal que são maravilhosos. O Luiz Cláudio, por exemplo, que é o juiz da vara de execução em Belo Horizonte. Fui visitar as Apacs com ele e pude ver que o relacionamento dele com os presos é bom. Ele conhece os presos. Também existem bons no Amazonas.

ConJur — A questão do nome é sintomática, né?
Sebastião Reis Júnior — Naquele momento em que surgiu a ideia do juiz de garantias, durante o embate sobre a “lava jato”, criou-se a impressão de que essa nova figura jurídica teria o objetivo de soltar as pessoas. Ainda há pessoas falando isso. Vi uma declaração de um promotor de São Paulo falando que “vamos ter que soltar um bando de gente”. É o mesmo discurso usado quando se discutiu o fim da prisão em segunda instância. São falácias repetidas à exaustão e que as pessoas acreditam.

ConJur — O Estado brasileiro perdeu o controle das suas penitenciárias, do muro pra dentro?
Sebastião Reis Júnior — Em algumas situações, sim. E até que ponto há vontade do Estado em resolver esse problema? Não se soluciona isso sem investimento. A população é contra diminuir a população carcerária. Mas, sem essa redução, só resta construir presídios. Houve uma pesquisa que mostrou que quase 60% dos presídios brasileiros estão superlotados. Em alguns é possível controlar isso, mas em outros, não. É uma pessoa pendurada sobre a outra, o cara que chega mais novo vai dormir do lado do vaso.


quinta-feira, 3 de agosto de 2023

PRESUNÇÕES E CONJECTURAS

 

Reunião de duas ou mais pessoas não configura associação para o tráfico

Por 

O crime de associação para o tráfico de drogas é caracterizado quando existe dolo de associar com estabilidade e permanência. A reunião de duas pessoas ou mais sem propósito associativo não pode ser enquadrada neste tipo penal.

Mera reunião de duas ou mais pessoas não comprova crime de associação para o tráfico
dolgachov

Esse foi o entendimento do desembargador convocado para o Superior Tribunal de Justiça, Jesuíno Cardoso, para absolver um homem condenado pelo crime de tráfico de drogas. 

A decisão foi dada em pedido de Habeas Corpus. No recurso, a Defensoria Público do Rio de Janeiro sustentou que a condenação por associação ao tráfico foi baseada no depoimento de policiais, que "não trouxeram qualquer dado indicativo sobre a existência de ânimo associativo".

Ao decidir, o magistrado apontou que o réu foi absolvido no crime em primeira instância, mas que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu provimento a recurso do Ministério Público pela condenação. O MP utilizou como argumento a quantidade de drogas, a confissão quanto ao crime de tráfico e a identificação das drogas com a inscrição CV (Comando Vermelho). 

"Evidente, portanto, que a condenação pelo delito de associação teve como fundamento presunções e conjecturas, além de referências genéricas à configuração do tipo previsto no art. 35 da Lei 11.343/2006, como vínculo subjetivo entre o paciente e os corréus como crime autônomo, o que não é suficiente para ensejar a condenação, que exige um contingente mínimo pelo menos razoável da autoria", registrou o julgador. 

Diante disso, ele decidiu absolver o réu do crime de associação para o tráfico, com extensão aos outros corréus da ação penal. 

O HC foi impetrado pelo defensor público do Rio de Janeiro, Eduardo Newton.

HC 823.265

AÇÃO ILEGAL

 Juiz absolve réu condenado com base em provas obtidas pós-denúncia anônima

31 de julho de 2023, 7h50

Por Renan Xavier

O ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas é legítimo, a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno, quando amparado em fundadas razões, devidamente justificado pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem ocorrer, no interior da casa, situação de flagrante delito.

Magistrado lembrou também a teoria dos frutos da árvore envenenada

Com esse entendimento, a 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude de Piumhi (MG) anulou provas colhidas após denúncia anônima e absolveu um réu condenado por tráfico de drogas.

Em abril de 2021, policiais militares abordaram o réu em uma rodovia após receberem uma informação contra ele de forma sigilosa. A denúncia era que ele, em parceria com o filho, comercializavam drogas em Capitólio. Enquanto o homem estava sob o poder dos agentes, outro grupo foi até a casa dele onde seguiram com as buscas à procura de provas.

Ao analisar o caso, o juiz Mateus Leite Xavier lembrou o artigo 5º da Constituição Federal, que consagra o direito fundamental à inviolabilidade domiciliar.

O magistrado destacou o entendimento firmado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal que diz que a fundada suspeita prevista no artigo 244 do Código de Processo Penal não pode se fundar em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa.

"Com olhos no caso concreto, após a colheita de provas e tudo que foi produzido nos autos, restou suficientemente claro que a busca pessoal procedida nos denunciados foi motivada por 'denúncias anônimas', e entre o período que sucedeu a referida denúncia e precedeu a busca, não consta nos autos registros de investigações preliminares ou diligências realizadas", declarou.

Baseado nos depoimentos de policiais militares que participaram da ação, o juiz destacou que não havia diligência específica para corroborar as denúncias anônimas, como exige a lei. "E, à luz da fundamentação alhures e das particularidades do caso concreto, tenho que não existia situação de fundada suspeita, tampouco elementos concretos que indiquem a necessidade da busca pessoal, o que a torna ilegal."

O magistrado lembrou as consequências da teoria do fruto da árvore envenenada, que se faz presente no artigo 157 do Código de Processo Penal. "As provas obtidas por meios ilícitos contaminam as que delas derivam, como consequência da prova ilícita por derivação."

O réu foi representado na ação pelo advogado Antônio Marcos de Sousa Terra, sócio do escritório Santos Terra Sociedade de Advogados.


Processo 0006729-80.2021.8.13.0515