sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

OPINIÃO

 Histórico do delito de estupro no ordenamento jurídico brasileiro

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Em virtude dos movimentos feministas, atualmente muito se discute a respeito dos direitos das mulheres e, por consequência, os crimes tipificados para protegê-las. A despeito da efetividade ou ausência desta, imprescindível analisar o histórico legislativo referente ao crime de estupro para refletir sobre os meios legais de proteção dos corpos femininos.

Embora as mulheres não sejam as únicas vítimas de tais crimes, não há como negar que tal assunto seja um medo frequente em seus cotidianos, tendo em vista que se trata de um crime abarcado por preceitos de cunho moral, em virtude da objetificação feminina e da cultura do estupro que assola a sociedade, assim como se reverberam no Poder Legislativo e Judiciário ao averiguarem as demandas sociais de repressão e prevenção a tal crime.

O presente artigo buscou analisar, a partir da metodologia de revisão bibliográfica, o histórico legislativo que garantiu uma maior proteção às vítimas, sendo que ao fim, realizou-se uma análise das perspectivas futuras de crimes ainda não tipificados, tendo em vista os novos meios de coação, além de uma avaliação no sistema do judiciário brasileiro no que tange à aplicação dos crimes já previstos em lei.

Ordenações Filipinas
No Brasil, as Ordenações Filipinas vigoraram entre os anos de 1603 até 1830, e o contexto histórico prevalecente à época da colonização confundia o Direito com a Religião, fazendo prevalecer o interesse da Igreja.

Em virtude desse fato, o texto trazia duas previsões a tal delito, uma delas consistia na pena de morte ao homem que se deitava com uma mulher virgem contra a sua vontade de forma violenta. Ressalta-se que apesar da pena ser a capital, isto é, o enforcamento, estamos diante de um contexto em que as penas consistiam em severidades muitas vezes maiores do que os próprios crimes e esse não era o caso da pena aos estupradores, uma vez que, na época, a pena da forca era considerada como uma pena comum (FERNANDES, 2013, p. 8-9).

No mais, as ordenações previam uma sanção mais benéfica ao estuprador que se casasse com a vítima ou, se assim não desejasse, estaria perdoado se pagasse um dote ao pai da vítima. Entretanto, destaca-se que essa possibilidade só era cabível quando as vítimas eram virgens ou viúvas honestas e se o estupro não resultasse em morte (JÚNIOR e XAVIER, 2020, p. 27).

Código criminal do Império do Brasil
Em meados 1830, entrou em vigência o Código Penal do Império do Brasil e este foi o primeiro diploma que utilizou a denominação "estupro" e distinguiu tal crime do estupro. Cabe apontar novamente a previsão de se obter uma pena mais benéfica por meio do casamento, conforme preconizava os artigos 225 e 219 (MARTINS, 2015, p.104).

No mais, a diferença ainda prevalecia no tratamento da "mulher honesta" e da "prostituta" ao analisarmos as penas impostas em que uma é seis vezes mais severa do que a outra. Portanto, resta mais do que evidenciado que o bem da vida a ser protegido nunca fora a dignidade sexual, mas sim a moralidade.

Por fim, é imperioso apontar que, ao contrário senso, quando se lê tais artigos, verifica-se que a mulher honesta não era aquela que deixava de ser prostituta, mas sim a que não tornava sua vida pública, ou seja, aquela que não laborava fora de seu lar, remanescendo assim, a integralidade de seu tempo em casa.

Código penal da República
Os pontos que merecem destaque no Código Penal de 1890, Capítulo I, consistem na restrição da tipificação do estupro apenas ao ato cometido com cópula violenta. Além das desigualdades nos tratamentos entre as mulheres consideradas como puras e as que não se enquadravam nesse quesito, ou seja, a mulher pública ou prostituta, que se mantiveram. Ademais, em relação aos Códigos pretéritos, este foi o que previu a pena da forma mais branda (MARTINS, 2015, p.105).

Código Penal de 1940
Nesse período, em países como Estados Unidos e Reino Unido, ascendiam as primeiras feministas que reivindicavam, especialmente, a igualdade jurídica entre os gêneros.

Frisa-se que o nome do título em que se encontravam os crimes sexuais passou a se denominar "Crimes Contra os Costumes", salientando o que já era evidenciado nos ordenamentos anteriores, isto é, que o objeto jurídico a ser protegido com tal tipificação era aquilo tido como moral para a sociedade e ao pátrio-poder, restando assim esclarecido que a mulher deveria submeter suas escolhas e confiar na proteção do que era tido como certo e errado por uma sociedade ainda muito influenciada pelo catolicismo (FERNANDES, 2013, p. 16).

Constituição de 1988
Após um período marcado pela ditadura, o Brasil se encontrava em uma fase de redemocratização e, devido à fragilidade que a sociedade passava, a nova Constituição visou solucionar os anseios por mudanças, sendo, para esse efeito, denominada como Constituição Cidadã. 

Um dos artigos que merece ênfase é o artigo 1º, inciso III, que consagrou como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana.

Um outro exemplo de mudança significativa foi a promulgação da igualdade formal entre homens e mulheres que acarretou, entre outras coisas, na construção doutrinária e jurisprudencial da não aceitação da tese do débito conjugal que possuía origem no direito canônico (SCUSSEL, 2021).

Em suma, este dever legalizava, de certa forma, a ocorrência do estupro marital, ou seja, o estupro cometido dentro da sociedade conjugal. Salienta-se que a lei civil jamais previu que o sexo seria uma obrigação, todavia, previa que o descumprimento de um dos deveres do casamento poderia embasar um pedido de anulação ou de divórcio, algo que era extremamente malvisto para as mulheres naquela época (ARAÚJO, 2020, p. 87).

Lei nº 11.106/2005
O ano de 2005 é considerado um marco histórico na luta feminista, em razão de ter sido revogada a causa de extinção da punibilidade para os crimes sexuais quando o agressor se casava com a vítima.

Além disso, foi retirado o termo "mulher honesta" do Código Penal, assim, restou garantida uma equiparação formal no modo de tratamento entre as vítimas, entretanto, tal diferenciação ainda ocorre de forma implícita.

Por fim, destaca-se que com esta lei também foi revogada a tipificação de alguns tipos penais, como por exemplo, os polêmicos crimes de sedução (artigo 217) e rapto (artigos 219 e 222) (CRUZ, 2016).

Lei nº 12.015/2009
É cabível afirmar que a Lei nº 12.015/2009 trouxe outras significativas mudanças ao contexto jurídico e social no que tange aos crimes sexuais, primordialmente, o nome do capítulo "Crimes contra os Costumes" foi alterado para "Crimes contra a Dignidade Sexual" (JÚNIOR e XAVIER, 2020, p. 31).

Outras mudanças que merecem destaque consistem na alteração da natureza da ação penal do delito de estupro que, anteriormente, era de ação penal privada, isto é, o Ministério Público participava como mero custos legis.  Com a vigência da referida lei, o crime passou a ser de ação penal pública condicionada a representação, portanto, o Ministério Público ofereceria denúncia se a vítima assim desejasse, no prazo decadencial de seis meses, a partir do conhecimento da autoria do fato.

Porém, desde 1984, o Supremo Tribunal Federal havia editado a Súmula 608, em que afirmava que na hipótese de o estupro resultar em violência real, a ação pública seria incondicionada.

Ademais, foi introduzido o crime de violência sexual mediante fraude, prevista no artigo 215 do Código Penal. Com o propósito de punir aqueles que enganavam as vítimas, fazendo-as acreditar que se encontravam em uma situação que não se demonstrava verídica, a fim de que fosse consentida a prática sexual (GOMES, 2017).

Além disso, foi revogado o crime de atentado violento ao pudor, unificando os tipos penais em um só delito, ou seja, o crime de estupro. Assim, o sujeito passivo deixara de ser "mulher", passando-se a ser "alguém", portanto, esta lei trouxe a possibilidade de homens configurarem como vítimas em crimes sexuais.

Destaca-se a criação do tipo penal do estupro de vulnerável em que a vulnerabilidade era presumida quando o agressor, ainda que de forma consentida, mantivesse relações íntimas com menores de quatorze anos. Outrossim, também foi tipificada a conduta de manter relações sexuais com alguém que não possa vir a oferecer resistência, de forma temporária ou permanente, ao ato (JÚNIOR e XAVIER, 2020, p. 87).

Lei nº 13.718/2018
A alteração legislativa significativa mais recente no que tange aos crimes sexuais foi a Lei nº 13.718/2018. Tal diploma introduziu um novo tipo penal denominado como importunação sexual (artigo 2215-A), com o intuito de tipificar, de forma proporcional, os casos que estavam tendo ampla repercussão midiática na época, ou seja, situações em que os abusadores ejaculavam em suas vítimas nos transportes públicos (REGIA, 2021).

No mais, a inserção do artigo 225 do Código Penal, tornou todos os crimes previstos no capítulo de ação pública incondicionada. Ressalta-se que há críticas a respeito dessa alteração na doutrina, pois existe uma posição que defende que, ao publicizar tais fatos, sem o consentimento da vítima, acarretaria um aumento no sofrimento dela. (JÚNIOR e XAVIER, 2020, p. 116).

Todavia, o estupro é um crime com um enorme índice de subnotificação, logo, há de se salientar a importância que tal alteração trouxe ao retirar o prazo que a vítima teria para decidir se desejava levar ao conhecimento das autoridades os fatos ou não.  No mais, destaca-se que o artigo 234-B do Código Penal determina que os crimes sexuais devam tramitar em segredo de justiça.

Considerações finais
Conforme visto, muitas previsões normativas foram revogadas expressamente, tendo como paradigma a Constituição Federal de 1988, uma vez que esta positivou a igualdade entre os gêneros.

No entanto, ainda impera na sociedade brasileiro valores morais que repercutem na psique dos operadores do direito, propagando a chamada violência institucional enviesada pela cultura do estupro. Logo, afirma-se que, embora a igualdade formal tenha sido instituída, ainda há prematuridade no que se refere à igualdade material, tanto entre os gêneros, quanto em relação às próprias mulheres, uma vez que algumas, em decorrência de seu comportamento social, recebem um tratamento mais acolhedor do que outras.

A despeito do Brasil ter evoluído juridicamente nas últimas décadas, deve-se levar em consideração a delonga, sempre presente, comparada ao direito alienígena e, em razão disso, averiguar as mudanças já ocorridas para entender o contexto social da época, a fim de aplicar novas mudanças no país. Ressalta-se que a violência simbólica de gênero remanesce presente, de forma velada ou não, no cotidiano do legislativo brasileiro, devendo esse cenário ser alterado de forma efetiva.

A sociedade muda, não apenas no aspecto social, como também no tecnológico, e, em razão disso, novas condutas são tipificadas e, algumas delas, causam resistência, tendo em vista que muitos indivíduos as consideram como desnecessárias, cita-se como exemplo o Projeto de Lei tramitando na Câmara dos Deputados, com o objetivo de punir aquele que retira o preservativo sem o consentimento da vítima, embora o ato sexual tenha sido consentido.

 Tal fato ocorre, uma vez que, apesar das do conceito "mulher honesta" ter sido superado no texto legal, ainda há quem compreenda que o bem jurídico a ser tutelado em crimes como esse, é a moralidade e não a dignidade da pessoa humana.

Por essa razão, o estudo histórico é primordial para entendermos de onde viemos e projetarmos para onde vamos, agindo de forma militante e compreendendo a importância do movimento feminista em tais conquistas. Sempre possuindo em mente que tais previsões, que hoje causam repulsa em muitos, era aceita, logo, não se pode afirmar que as necessidades atuais são banais.

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