O ANPP e o valor probatório da confissão: a posição do STJ
16 de
outubro de 2022, 6h09
A 6ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº 756.907/SP, realizado na sessão do último
dia 13 de setembro, e tendo como relator o ministro Rogerio Schietti, decidiu
que se a sentença condenatória reconheceu a autoria delitiva exclusivamente com
lastro em elementos produzidos na fase extrajudicial, especialmente na
confissão do acusado feita no acordo de não persecução penal (ANPP), não
confirmada durante a instrução criminal, impõe-se a absolvição do acusado.
Nos termos do voto do relator, "a assunção
extrajudicial de culpa no ANPP é similar ao conteúdo de confissão da prática da
infração penal perante autoridade policial ou ministerial, somente tendo valor
probatório como dado extrajudicial, e somente podendo ser utilizada para
subsidiar a denúncia 'caso exista descumprimento do acordo, levando o
Ministério Público a oferecer denúncia' (CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual
do Acordo de Não Persecução Penal à luz da Lei 13.963/2019 — Pacote Anticrime.
Salvador: JusPodivm, 2020. p. 113)".
Segundo o ministro Schietti, "por
ser uma prova extrajudicial, seria retratável em juízo e não tem standard
probatório para, exclusivamente, levar à condenação. Seja qual for a sua
clareza, deve ser confrontada com outros elementos que possam confirmá-la ou
contraditá-la, durante a instrução criminal. Se o celebrante do ANPP não figura
no polo passivo da ação penal e a confissão formal não pode ser utilizada
contra ele (na seara criminal) enquanto não descumprir o ato negocial, com
muito mais razão essa prova extrajudicial carece de aptidão probatória para,
per se, subsidiar a condenação de coautor do mesmo fato delituoso, atingido
pelas declarações".
Consta, ainda, do voto do
relator: "para que declaração do celebrante do ANPP possa
respaldar o decreto condenatório é imprescindível sua reprodução em juízo,
durante a ação penal, e a constatação de sua coerência com provas
judicializadas, submetidas ao
contraditório, de forma a conferir ao réu o direito fundamental de efetiva
participação na formação da decisão judicial, em dualidade com o Ministério
Público".
Assim, conclui o relator que,
deixando "de ser observada a garantia do ar. 5º, LV, da
Constituição Federal, a defesa não pôde refutar a prova produzida contra o
acusado durante a confissão extrajudicial que antecedeu o ANPP, não reproduzida
ao longo da instrução criminal. O Juiz deixou de ser assegurar à parte a
paridade de tratamento em relação ao Ministério Público. No mais, a sentença
faz referência a outros elementos informativos (depoimentos prestados ao Promotor
de Justiça e
no âmbito de inquérito policial, durante as investigações) que também não
possuem valor para formar a convicção judicial, demonstrando-se ofensa ao
artigo 155 do CPP, e impondo-se a absolvição do paciente nos termos do art.
386, VII, do CPP".
A decisão da 6ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça foi absolutamente correta e consentânea com o princípio do
devido processo legal (e seus consectários), merecendo aplausos e observância
como um importante precedente judicial a ser obrigatoriamente seguido, nos
termos do artigo 315, § 2º, VI, do Código de Processo Penal.
Como se sabe, com a promulgação da
Lei nº 13.964/19, que acrescentou ao Código de Processo Penal o
artigo 28-A, passamos a ter possibilidade de um acordo de não persecução penal,
a ser realizado entre o Ministério Público e o investigado.
Este acordo só poderá ocorrer
se não for o caso de arquivamento do procedimento investigatório, pois se
não houver justa causa ou faltarem os pressupostos processuais ou as condições
para o exercício da ação penal, deve ser promovido o arquivamento, nos termos
do artigo 28, Código de Processo Penal [1]. O
acordo pode ser feito com qualquer investigado em um procedimento formal de
natureza investigatória/criminal [2],
seja instaurado na polícia (federal, militar ou civil) ou no próprio Ministério
Público; a propósito, observa-se que a palavra utilizada no texto legal é
sempre "investigado", e não "indiciado".
O pressuposto para a formalização do acordo é que se trate da
investigação de uma infração penal (portanto, crime ou contravenção) praticada
sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a 4 anos. Logo,
não se admite tais acordos quando se trate de crime cuja pena mínima seja igual
ou superior a 4 anos, ou, ainda que não o seja, tenha sido praticada com
violência ou grave ameaça.
Segundo a lei, para aferição da pena mínima serão consideradas as causas
de aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto. Assim, poderá não ser
possível a formalização do acordo caso a pena mínima seja de três anos, mas
esteja prevista uma causa de aumento de pena de 1/3. Por outro lado, no crime
com pena mínima igual ou superior a 4 anos admite-se o acordo, caso haja uma
causa de diminuição de pena. Se a causa de aumento de pena é variável (de 1/3 a
2/3, por exemplo), deve-se levar em consideração o "aumento mínimo",
pois é a pena mínima o pressuposto para o acordo. Ao contrário, existindo causa
de diminuição de pena variável, aplicar-se-á o maior percentual, ou seja,
"a diminuição máxima" [3]. Em relação às
agravantes e às atenuantes, não devem ser levadas em consideração, pois são
circunstâncias genéricas, cujo quantum não vem estabelecido
aprioristicamente pela norma penal.
Além desse pressuposto, a lei exige alguns requisitos para a proposta de
acordo, dentre os quais a confissão circunstancial (e não circunstanciada!) do
investigado, e que esta confissão seja feita formalmente, ou seja, que esteja
expressamente esclarecida nas cláusulas do acordo, que deve ser feito por
escrito e na presença do defensor e do Ministério Público. A lei condiciona a
homologação do acordo à realização de uma audiência (que deverá ser, por óbvio,
pública e oral) na qual o Juiz deverá verificar a voluntariedade (não é
necessária a espontaneidade) da aceitação do acordo, devendo, para isso, ser
ouvido o investigado, na presença do seu defensor; nesta mesma audiência, o
magistrado verificará a sua legalidade, isto é, se está presente o pressuposto,
se estão preenchidos os requisitos legais e, finalmente, se as condições
acordadas estão conforme a lei.
Esta confissão deve ser feita também circunstancialmente (e não
circunstanciadamente!), atentando-se sempre para que tenha sido feita sem
coação de nenhuma natureza, conforme exige o artigo 8º, 3, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
Se o investigado praticou, supostamente, duas ou mais infrações penais,
tendo confessado apenas uma delas, o acordo somente poderá ser feito em relação
ao fato admitido, devendo ser oferecida denúncia (caso haja justa causa) no que
diz respeito ao outro fato.
Se o investigado confessa a autoria, mas indica fato que lhe favoreça
(como, por exemplo, excludentes de ilicitude ou de culpabilidade, ou mesmo
eximentes de pena), não há obstáculo legal para a formalização do acordo. Neste
sentido, observa-se que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a chamada
"confissão qualificada" deve ensejar a aplicação da atenuante
prevista no artigo 65, III, "d", do Código Penal. Ora, se ela serve
para atenuar a pena, porque não serviria para admitir o acordo [4]?
Pois bem.
A questão enfrentada na decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça diz respeito à validade jurídica dessa confissão como elemento de prova
para fundamentar uma sentença condenatória, caso o investigado, não tendo
cumprido o que foi acordado, venha a ser denunciado. A questão não é de fácil
solução, pois, nada obstante ter sido uma confissão feita fora dos autos do
processo, de toda maneira, foi ratificada perante o Juiz (das Garantias, quando
a norma contida no artigo 3º-B do CPP tiver eficácia), numa audiência pública,
oral, na presença do defensor (constituído, dativo ou Público) e do membro do
Ministério Público.
Nada obstante, entende-se que, não tendo havido ainda (quando foi feita
a confissão) uma acusação formal, tampouco instrução criminal, não pode aquela
confissão, em nenhuma hipótese, servir de base para uma sentença condenatória.
Em outras palavras: caso o investigado tenha confessado para fins do
acordo, ainda que formal e circunstancialmente (ratificando-a na audiência
prévia), mas, posteriormente, quando interrogado na audiência de instrução e
julgamento, não confirmou a confissão, o juiz não poderá utilizar aquela
confissão anterior como supedâneo para uma sentença condenatória; afinal, a
confissão não foi realizada no bojo de uma ação penal. Aliás, como se sabe, nem
mesmo a confissão feita durante o interrogatório é prova insofismável e
irrefutável da autoria do crime [5].
Ademais, conforme já referido, quem
tem competência para a homologação do acordo é o juiz das garantias (artigo
3º-B, XVII, Código de Processo Penal, ainda com a sua eficácia suspensa por
liminar concedida pelo ministro Luiz Fux) e, conforme estabelece o artigo 3º-C,
§ 3º. (idem), os autos que compõem as matérias de competência do juiz das
garantias não são apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução
e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas não repetíveis,
medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser
remetidos para apensamento em apartado. Tais autos ficarão acautelados na
secretaria do juízo das garantias à disposição do Ministério Público e da
Defesa.
[1] Sobre o novo
procedimento para o arquivamento de peças de informação, veja-se, por todos, o
artigo de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa (https://www.conjur.com.br/2020-jan-10/limite-penal-procede-arquivamento-modelo,
acessado em 11 de janeiro de 2020).
[2] A nova lei
também passou a permitir a celebração de acordo de não persecução cível (art.
17, § 1º, da Lei nº 8.429/92).
[3] Mutatis
mutandis, veja-se a Súmula 723 do Supremo Tribunal Federal: trata-se da
possibilidade de suspensão condicional do processo, cujo pressuposto também é a
pena mínima; sendo o caso de continuidade delitiva (que implica em um aumento
da pena de 1/6 a 2/3), a Suprema Corte determina a aplicação "do aumento
mínimo"; é o mesmo raciocínio.
[4] Agravo
Regimental no Recurso Especial nº. 1.198.354/ES. Neste julgado, ficou
consignado na ementa que "a jurisprudência do STJ admite que mesmo
a confissão dita qualificada enseje a aplicação da atenuante do art. 65, III,
d, do Código Penal" (relator ministro Jorge Mussi, 5ª Turma,
julgado em 16/10/2014, DJe 28/10/2014). Também, no mesmo sentido: "Nos
moldes da Súmula nº 545/STJ, a atenuante da confissão espontânea deve ser
reconhecida, ainda que tenha sido parcial ou qualificada, seja ela judicial ou
extrajudicial, e mesmo que o réu venha a dela se retratar, quando a
manifestação for utilizada para fundamentar a sua condenação, o que não ocorreu
no caso em análise". (Embargos de Declaração no Agravo Regimental
no Habeas Corpus nº 626.728/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma,
julgado em 25/5/2021, DJe 31/5/2021).
[5] A propósito,
um levantamento feito nos EUA pelo Innocence Project "revelou
que, de todos os prisioneiros libertados nos últimos anos com base em provas de
DNA, 25% foram presos porque se incriminaram, fizeram confissões por escrito ou
gravadas em fita cassete à polícia ou se declararam culpados. Estudos de casos
mostram que essas confissões não derivaram de conhecimento dos réus sobre o
caso, mas foram motivadas por influências externas" (disponível
em https://www.conjur.com.br/2012-set-08/instituicao-estuda-porque-pessoas-confessam-crimes-nao-cometeram.
Acesso em 19 de janeiro de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário