segunda-feira, 17 de outubro de 2022

OPINIÃO

 O ANPP e o valor probatório da confissão: a posição do STJ

16 de outubro de 2022, 6h09  

Por Rômulo de Andrade Moreira

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº 756.907/SP, realizado na sessão do último dia 13 de setembro, e tendo como relator o ministro Rogerio Schietti, decidiu que se a sentença condenatória reconheceu a autoria delitiva exclusivamente com lastro em elementos produzidos na fase extrajudicial, especialmente na confissão do acusado feita no acordo de não persecução penal (ANPP), não confirmada durante a instrução criminal, impõe-se a absolvição do acusado.

Nos termos do voto do relator, "a assunção extrajudicial de culpa no ANPP é similar ao conteúdo de confissão da prática da infração penal perante autoridade policial ou ministerial, somente tendo valor probatório como dado extrajudicial, e somente podendo ser utilizada para subsidiar a denúncia 'caso exista descumprimento do acordo, levando o Ministério Público a oferecer denúncia' (CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal à luz da Lei 13.963/2019 — Pacote Anticrime. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 113)".

Segundo o ministro Schietti, "por ser uma prova extrajudicial, seria retratável em juízo e não tem standard probatório para, exclusivamente, levar à condenação. Seja qual for a sua clareza, deve ser confrontada com outros elementos que possam confirmá-la ou contraditá-la, durante a instrução criminal. Se o celebrante do ANPP não figura no polo passivo da ação penal e a confissão formal não pode ser utilizada contra ele (na seara criminal) enquanto não descumprir o ato negocial, com muito mais razão essa prova extrajudicial carece de aptidão probatória para, per se, subsidiar a condenação de coautor do mesmo fato delituoso, atingido pelas declarações".

Consta, ainda, do voto do relator: "para que declaração do celebrante do ANPP possa respaldar o decreto condenatório é imprescindível sua reprodução em juízo, durante a ação penal, e a constatação de sua coerência com provas judicializadas, submetidas ao
contraditório, de forma a conferir ao réu o direito fundamental de efetiva
participação na formação da decisão judicial, em dualidade com o Ministério Público"
.

Assim, conclui o relator que, deixando "de ser observada a garantia do ar. 5º, LV, da Constituição Federal, a defesa não pôde refutar a prova produzida contra o acusado durante a confissão extrajudicial que antecedeu o ANPP, não reproduzida ao longo da instrução criminal. O Juiz deixou de ser assegurar à parte a paridade de tratamento em relação ao Ministério Público. No mais, a sentença faz referência a outros elementos informativos (depoimentos prestados ao Promotor de Justiça e
no âmbito de inquérito policial, durante as investigações) que também não
possuem valor para formar a convicção judicial, demonstrando-se ofensa ao artigo 155 do CPP, e impondo-se a absolvição do paciente nos termos do art. 386, VII, do CPP"
.

A decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça foi absolutamente correta e consentânea com o princípio do devido processo legal (e seus consectários), merecendo aplausos e observância como um importante precedente judicial a ser obrigatoriamente seguido, nos termos do artigo 315, § 2º, VI, do Código de Processo Penal.

Como se sabe, com a promulgação da Lei nº 13.964/19, que acrescentou ao Código de Processo Penal o artigo 28-A, passamos a ter possibilidade de um acordo de não persecução penal, a ser realizado entre o Ministério Público e o investigado.

Este acordo só poderá ocorrer se não for o caso de arquivamento do procedimento investigatório, pois se não houver justa causa ou faltarem os pressupostos processuais ou as condições para o exercício da ação penal, deve ser promovido o arquivamento, nos termos do artigo 28, Código de Processo Penal [1]. O acordo pode ser feito com qualquer investigado em um procedimento formal de natureza investigatória/criminal [2], seja instaurado na polícia (federal, militar ou civil) ou no próprio Ministério Público; a propósito, observa-se que a palavra utilizada no texto legal é sempre "investigado", e não "indiciado".

O pressuposto para a formalização do acordo é que se trate da investigação de uma infração penal (portanto, crime ou contravenção) praticada sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a 4 anos. Logo, não se admite tais acordos quando se trate de crime cuja pena mínima seja igual ou superior a 4 anos, ou, ainda que não o seja, tenha sido praticada com violência ou grave ameaça.

Segundo a lei, para aferição da pena mínima serão consideradas as causas de aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto. Assim, poderá não ser possível a formalização do acordo caso a pena mínima seja de três anos, mas esteja prevista uma causa de aumento de pena de 1/3. Por outro lado, no crime com pena mínima igual ou superior a 4 anos admite-se o acordo, caso haja uma causa de diminuição de pena. Se a causa de aumento de pena é variável (de 1/3 a 2/3, por exemplo), deve-se levar em consideração o "aumento mínimo", pois é a pena mínima o pressuposto para o acordo. Ao contrário, existindo causa de diminuição de pena variável, aplicar-se-á o maior percentual, ou seja, "a diminuição máxima" [3]. Em relação às agravantes e às atenuantes, não devem ser levadas em consideração, pois são circunstâncias genéricas, cujo quantum não vem estabelecido aprioristicamente pela norma penal.

Além desse pressuposto, a lei exige alguns requisitos para a proposta de acordo, dentre os quais a confissão circunstancial (e não circunstanciada!) do investigado, e que esta confissão seja feita formalmente, ou seja, que esteja expressamente esclarecida nas cláusulas do acordo, que deve ser feito por escrito e na presença do defensor e do Ministério Público. A lei condiciona a homologação do acordo à realização de uma audiência (que deverá ser, por óbvio, pública e oral) na qual o Juiz deverá verificar a voluntariedade (não é necessária a espontaneidade) da aceitação do acordo, devendo, para isso, ser ouvido o investigado, na presença do seu defensor; nesta mesma audiência, o magistrado verificará a sua legalidade, isto é, se está presente o pressuposto, se estão preenchidos os requisitos legais e, finalmente, se as condições acordadas estão conforme a lei.

Esta confissão deve ser feita também circunstancialmente (e não circunstanciadamente!), atentando-se sempre para que tenha sido feita sem coação de nenhuma natureza, conforme exige o artigo 8º, 3, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Se o investigado praticou, supostamente, duas ou mais infrações penais, tendo confessado apenas uma delas, o acordo somente poderá ser feito em relação ao fato admitido, devendo ser oferecida denúncia (caso haja justa causa) no que diz respeito ao outro fato.

Se o investigado confessa a autoria, mas indica fato que lhe favoreça (como, por exemplo, excludentes de ilicitude ou de culpabilidade, ou mesmo eximentes de pena), não há obstáculo legal para a formalização do acordo. Neste sentido, observa-se que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a chamada "confissão qualificada" deve ensejar a aplicação da atenuante prevista no artigo 65, III, "d", do Código Penal. Ora, se ela serve para atenuar a pena, porque não serviria para admitir o acordo [4]?

Pois bem.

A questão enfrentada na decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça diz respeito à validade jurídica dessa confissão como elemento de prova para fundamentar uma sentença condenatória, caso o investigado, não tendo cumprido o que foi acordado, venha a ser denunciado. A questão não é de fácil solução, pois, nada obstante ter sido uma confissão feita fora dos autos do processo, de toda maneira, foi ratificada perante o Juiz (das Garantias, quando a norma contida no artigo 3º-B do CPP tiver eficácia), numa audiência pública, oral, na presença do defensor (constituído, dativo ou Público) e do membro do Ministério Público.

Nada obstante, entende-se que, não tendo havido ainda (quando foi feita a confissão) uma acusação formal, tampouco instrução criminal, não pode aquela confissão, em nenhuma hipótese, servir de base para uma sentença condenatória.

Em outras palavras: caso o investigado tenha confessado para fins do acordo, ainda que formal e circunstancialmente (ratificando-a na audiência prévia), mas, posteriormente, quando interrogado na audiência de instrução e julgamento, não confirmou a confissão, o juiz não poderá utilizar aquela confissão anterior como supedâneo para uma sentença condenatória; afinal, a confissão não foi realizada no bojo de uma ação penal. Aliás, como se sabe, nem mesmo a confissão feita durante o interrogatório é prova insofismável e irrefutável da autoria do crime [5].

Ademais, conforme já referido, quem tem competência para a homologação do acordo é o juiz das garantias (artigo 3º-B, XVII, Código de Processo Penal, ainda com a sua eficácia suspensa por liminar concedida pelo ministro Luiz Fux) e, conforme estabelece o artigo 3º-C, § 3º. (idem), os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias não são apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas não repetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. Tais autos ficarão acautelados na secretaria do juízo das garantias à disposição do Ministério Público e da Defesa.



[1] Sobre o novo procedimento para o arquivamento de peças de informação, veja-se, por todos, o artigo de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa (https://www.conjur.com.br/2020-jan-10/limite-penal-procede-arquivamento-modelo, acessado em 11 de janeiro de 2020).

[2] A nova lei também passou a permitir a celebração de acordo de não persecução cível (art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92).

[3] Mutatis mutandis, veja-se a Súmula 723 do Supremo Tribunal Federal: trata-se da possibilidade de suspensão condicional do processo, cujo pressuposto também é a pena mínima; sendo o caso de continuidade delitiva (que implica em um aumento da pena de 1/6 a 2/3), a Suprema Corte determina a aplicação "do aumento mínimo"; é o mesmo raciocínio.

[4] Agravo Regimental no Recurso Especial nº. 1.198.354/ES. Neste julgado, ficou consignado na ementa que "a jurisprudência do STJ admite que mesmo a confissão dita qualificada enseje a aplicação da atenuante do art. 65, III, d, do Código Penal" (relator ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 16/10/2014, DJe 28/10/2014). Também, no mesmo sentido: "Nos moldes da Súmula nº 545/STJ, a atenuante da confissão espontânea deve ser reconhecida, ainda que tenha sido parcial ou qualificada, seja ela judicial ou extrajudicial, e mesmo que o réu venha a dela se retratar, quando a manifestação for utilizada para fundamentar a sua condenação, o que não ocorreu no caso em análise". (Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 626.728/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, julgado em 25/5/2021, DJe 31/5/2021).

[5] A propósito, um levantamento feito nos EUA pelo Innocence Project "revelou que, de todos os prisioneiros libertados nos últimos anos com base em provas de DNA, 25% foram presos porque se incriminaram, fizeram confissões por escrito ou gravadas em fita cassete à polícia ou se declararam culpados. Estudos de casos mostram que essas confissões não derivaram de conhecimento dos réus sobre o caso, mas foram motivadas por influências externas" (disponível em https://www.conjur.com.br/2012-set-08/instituicao-estuda-porque-pessoas-confessam-crimes-nao-cometeram. Acesso em 19 de janeiro de 2018.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

PARTICIPAÇÃO PONTUAL

 TRF-3 aplica tráfico privilegiado a casal acusado de ser "mula" em cruzeiro

12 de outubro de 2022, 7h31

Por Eduardo Velozo Fuccia

A função das "mulas" do tráfico é necessária para o êxito da cadeia logística do transporte de drogas, principalmente quando o destino dos entorpecentes for o exterior. Porém, isso nem sempre significa que elas integram a organização criminosa supostamente responsável pela remessa ilícita, sendo cabível o reconhecimento do tráfico privilegiado. 

A 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) adotou esse entendimento por unanimidade ao dar provimento ao recurso de apelação da defesa de um casal de argentinos. Os réus foram condenados por tráfico internacional, sem a aplicação da minorante do parágrafo 4º, do artigo 33, da Lei 11.343/2006.

Com a decisão, o colegiado reduziu a pena dos recorrentes de cinco anos, oito meses e um dia de reclusão para quatro anos, dez meses e dez dias. A diminuição da sanção refletiu no abrandamento do regime inicial de cumprimento da sanção, também requerido no recurso defensivo (indo do fechado para o semiaberto).

O advogado Diego dos Anjos Elias Antônio sustentou em seu recurso que os clientes fazem jus à diminuição da pena, de um sexto a dois terços, por preencherem os requisitos previstos na Lei de Drogas: ser primário, possuir bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas e nem integrar organização criminosa.

"Os réus são primários, não registram maus antecedentes e não há provas de que se dediquem a atividades criminosas, não se podendo afirmar que integrem, ainda que circunstancialmente, organização criminosa voltada ao tráfico transnacional de drogas. Trata-se de situação de 'mula' do tráfico", analisou o desembargador Nino Toldo.

Relator da apelação, Toldo classificou como imprescindível o papel das "mulas" na cadeia delitiva de uma organização criminosa. "Contudo, não se pode dizer que toda 'mula' integra tal organização, devendo haver análise caso a caso". Para o relator, na hipótese dos autos, tudo indica que o envolvimento dos réus tenha sido pontual.

O desembargador também ressalvou que, embora tenham importância na logística criminosa, as "mulas" são contratadas apenas para levar o tóxico, "sem ter nenhum poder de ingerência sobre como realizarão esse transporte, nem onde e de quem receberão a droga, cabendo-lhes obedecer a ordens e seguir roteiro previamente estabelecido".

Cruzeiro europeu
Com 5,5 quilos de cocaína presos com fita adesiva ao corpo, o casal tentou embarcar no navio MSC Preziosa, no terminal de passageiros do Porto de Santos, para um cruzeiro com destino final à Espanha, em abril. A droga foi descoberta durante fiscalização de rotina, sendo os apelantes presos em flagrante pela Polícia Federal.

Ao condenar o casal, no dia 6 de julho, o juiz Roberto Lemos dos Santos Filho, da 5ª Vara Federal de Santos, não reconheceu o tráfico privilegiado, "em razão da conduta ter se concretizado, por certo, em ação orquestrada e executada pelos acusados e terceiros não identificados, em ações próprias às desenvolvidas por organizações criminosas".

Segundo o advogado Diego Elias, não há prova nos autos de que os acusados se dediquem a atividades criminosas e integrem organização criminosa internacional, sendo “sensível e atenta” a análise do relator. "Os apelantes apenas foram contratados como 'mulas', sem maiores detalhes sobre o transporte e cabendo-lhes somente cumprir ordens prévias".

O argentino admitiu em juízo que ganharia US$ 1 mil (cerca de R$ 5,2 mil na cotação atual) para levar o entorpecente à Europa. Informou ter recebido a droga em Santos de um homem que identificou apenas por "Leandro". Ainda segundo ele, a sua namorada soube do transporte ilícito que faria apenas no momento da entrega da cocaína.

O réu alegou que aceitou a proposta de transportar a droga porque precisava de dinheiro para pagar a pensão alimentícia dos filhos. A acusada confirmou a versão do namorado e disse que aceitou participar do esquema "por amor". O homem e a mulher traziam presos aos corpos, respectivamente, 2,8 e 2,7 quilos de cocaína.


Processo 5002078-09.2022.4.03.6104

MARCO INTERRUPTIVO

 STJ reconhece prescrição de pena ao julgar embargos de declaração

13 de outubro de 2022, 14h49

Por Eduardo Reina

Acórdão que julga os embargos de declaração dotados de efeito integrativo deve ser considerado marco interruptivo da prescrição, decidiu o Superior Tribunal de Justiça. O ministro João Otávio de Noronha, da 5ª Turma do STJ, deu provimento ao agravo para conceder de ofício a ordem de Habeas Corpus para redimensionar a pena imposta ao réu e reconhecer a prescrição da pretensão punitiva. No julgamento, Noronha foi acompanhado pela maioria dos integrantes da 5ª Turma.  

No caso, a defesa patrocinada pelo advogado Alexandre Pacheco Martins argumentou que o acórdão da sentença penal condenatória apenas se tornou completo e apto a produzir efeitos após reconhecimento de omissão pelos embargos de declaração.

"O acórdão que julga os embargos de declaração, dotado de efeito integrativo, deve ser considerado o marco interruptivo da prescrição da pretensão punitiva estatal, garantindo-se interpretação mais benéfica ao réu", interpretou o ministro.

Segundo o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do AgRg no HC n. 197.018/PR, o acórdão que julga os embargos de declaração, dotado de efeito integrativo, deve ser considerado o marco interruptivo da prescrição.

A defesa do réu insistiu na incidência da atenuante da confissão espontânea e na configuração da prescrição da pretensão punitiva estatal em relação ao crime do art. 302, caput, da Lei n. 9.503/1997. A tese foi acatada.

No julgamento, então, foi firmada interpretação, de que é possível deslocar o marco interruptivo da sentença condenatória para a data do julgamento dos embargos de declaração, na hipótese de um acórdão vir a ser reconhecido como omisso em sede de embargos. Tal interpretação já havia sido usada pelo Supremo Tribunal Federal.

"No caso concreto, não obstante a má técnica jurídica, tem-se que os embargos na verdade forma acolhidos sem efeitos infringentes, tornando perfeitamente admissível o deslocamento do marco interruptivo da sentença condenatória para a data do julgamento dos embargos de declaração. Precedente desta Corte e do STF", escreveu o ministro em seu voto.

Pela prática do artigo 302, caput, da Lei n. 9.503/1997, a pena do réu foi redimensionada para três anos, cinco meses e 19 dias de detenção em regime semiaberto. Conforme o artigo 44 do CP, Noronha substituiu a reprimenda corporal por duas restritivas de direitos, consistentes na prestação de serviços à comunidade, pelo mesmo prazo da pena privativa de liberdade, e pela pena pecuniária de 180 salários mínimos, a ser revertida aos sucessores da vítima. Por fim, nos termos do artigo 107, IV, c/c os artigos 109, IV, e 115, todos do CP, foi reconhecida a prescrição da pretensão punitiva estatal.

"O julgamento sedimentou duas questões importantes, a primeira diz respeito à obrigatoriedade do juiz considerar a atenuante da confissão quando os jurados, no Tribunal do Júri, acatam a tese defensiva que abarca a confissão e a segunda diz respeito aos embargos de declaração, que quando agregam fundamentação não constante no acórdão, mesmo que não modifiquem o resultado do julgamento, deslocam e atraem para si o marco interruptivo da prescrição que originalmente seria do acórdão da apelação. Dessa forma, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento importante na garantia da interpretação mais benéfica ao réu", afirma o advogado Alexandre Pacheco Martins.

AgRg no HC nº 729789 /SP 

ATÉ O FIM

Supremo nega aborto de gêmeos siameses que não têm chance de sobreviver

13 de outubro de 2022, 21h12

Por Karen Couto

Não cabe Habeas Corpus em corte superior se o tribunal de origem ainda não julgou o mérito do requerimento. Foi com esse entendimento que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal negou o pedido de uma mulher do Rio Grande do Sul que busca interromper a gravidez de gêmeos siameses que não têm chance de sobreviver ao parto. O colegiado considerou que o mérito do caso não foi apreciado pelas instâncias inferiores e que o conhecimento do HC caracterizaria dupla supressão de instância.

A gestante está no quinto mês de gravidez. Os bebês têm malformação e não têm chance de vida extrauterina. E ela alega haver risco de morte em caso da manutenção da gestação.

A Defensoria Pública do Rio Grande do Sul sustenta que "embora a condição de gêmeos siameses não autorize, por si só, a interrupção da gravidez, a hipótese assemelha-se aos casos de aborto de fetos com anencefalia" — que já foi permitido pelo STF na ADPF 54.

De acordo com os autos, o juízo de primeiro grau indeferiu o pedido de interrupção da gravidez. Por isso, a gestante impetrou Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que não foi conhecido em decisão monocrática. Posteriormente, o caso foi levado ao Superior Tribuna de Justiça, onde o HC foi negado monocraticamente pelo ministro Jorge Mussi, que considerou que "não houve o necessário exaurimento da instância antecedente".

Em seguida, o caso foi levado ao STF, sob relatoria de André Mendonça. Também em decisão monocrática, o relator negou seguimento ao Habeas Corpus. Com o ajuizamento de agravo regimental, o caso foi levado para análise da 2ª Turma.

Voto do relator

De acordo com André Mendonça, a parte recorrente não trouxe argumentos suficientes para modificar a decisão agravada.

"O presente Habeas Corpus volta-se contra decisão individual de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Inexistindo pronunciamento colegiado do STJ, não compete ao Supremo Tribunal Federal examinar a questão de direito versada na impetração. O caso, portanto, é de Habeas Corpus substitutivo de agravo regimental, cabível na origem", argumentou Mendonça.

O relator reiterou que a escolha errada da via processual impossibilita a apreciação da demanda. "Verificada a inadequação da via eleita, da análise das peças que instruíram a impetração e pela reiteração dos argumentos trazidos neste recurso, no entanto, em que pesem os contornos relevantes do presente caso, bem assim sua sensibilidade e peculiaridades, não vislumbro coação ilegal a autorizar a prestação jurisdicional pretendida."

Por fim, Mendonça argumentou que, como o mérito não foi apreciado, não há como auferir a probabilidade de sobrevivência dos gêmeos e, desse modo, estaria o Judiciário em vias de cometer um crime.

O relator foi acompanhado pelo ministro Nunes Marques, que destacou que "considerando que as alegações da paciente, ora agravante, sequer tiveram o mérito apreciado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e pelo Superior Tribunal de Justiça, o conhecimento originário da matéria pelo Supremo Tribunal Federal caracterizaria, na espécie, dupla supressão de instância".

Os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes acompanharam Mendonça com ressalvas, no sentido de determinar que o agravo interposto perante o STJ seja julgado na primeira sessão subsequente à comunicação do resultado desse julgamento.

Divergência
O ministro Luiz Edson Fachin foi o único a divergir. Para ele, não cabe ao STF criar um rol de doenças, situações limítrofes e riscos à saúde de fetos e gestantes, "julgando ações abstratas sobre todas elas, pois, antes e acima de tudo, a corte estabeleceu definição constitucional atinente à laicidade, dignidade humana, autodeterminação e saúde das mulheres no país".

"Com esteio nesses fundamentos e nas circunstâncias fáticas especiais aqui delineadas, ao analisar a ratio decidendi da ADPF nº 54, considero que esta alberga a pretensão da parte impetrante e que tutela, in casu, a interrupção terapêutica da gestação, necessária para que seja resguardada a vida e a dignidade da paciente."

Por fim, Fachin destacou que, no caso em análise, a vida da gestante corre risco em face das barreiras processuais.

"Registro, por derradeiro, que a paciente procurou o sistema de Justiça não apenas pela inviabilidade da vida extrauterina do feto que carrega, mas, sobretudo para que, em exercício de defesa da sua própria vida, ora sob grave risco, não venha sofrer criminalização, persecução penal e dificuldades para obter assistência médica. A preponderância de questões e barreiras processuais, nesse cenário, possui carga simbólica capaz de gerar uma segunda vitimização de quem, pelas próprias circunstâncias, acha-se em profunda vulnerabilidade e sofrimento."

HC 220.431

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

ACADEMIA DE POLÍCIA

O estelionato amoroso ou sentimental: terminologias, subsunção e peculiaridades

4 de outubro de 2022, 8h00

Por Adriano Sousa Costa, Aline Lopes e Fernanda Moretzsohn

Contextualização
O "estelionato amoroso ou sentimental" é uma expressão que vem sendo cada vez mais utilizada no mundo jurídico, mas nem sempre na acepção que realmente deveria sê-lo.

O desvirtuamento de tal expressão para contextos em que não há um verdadeiro crime como pano de fundo cria a falsa percepção de que os órgãos policiais deveriam atuar nesses casos, transportando situações cíveis para o debate na senda criminal.

O primeiro bom exemplo do uso desvirtuado da nomenclatura "estelionato" pelos próprios tribunais superiores dá-se em face do famigerado "estelionato judicial". Ainda que prevalentemente tal fraude processual não seja considerada típica (HC 664.970/PR — STJ), tal terminologia continua sendo utilizada.

Mas o principal exemplo do emprego inadequado da expressão é no estelionato amoroso. Não é incomum que pessoas procurem a delegacia de polícia pois são levadas a crer, pela própria expressão de regência do instituto, que há um crime a se apurar. O equívoco é catalisado pelo próprio sistema persecutório, vez que é nele que se consagram e se replicam esse tipo de expressões atécnicas, transpassando a mensagem equivocada para a população de que a persecução penal pode ocorrer nesses casos.

O termo "estelionato sentimental" deriva, na maioria das vezes, do anseio de reparação de uma das partes envolvidas em um relacionamento, vínculo este que pode ter lhe feito suportar ônus econômico assimétrico na manutenção do núcleo amoroso.

É razoável que, ao se doarem financeiramente pelo companheiro, após o término frustrante do relacionamento, as "vítimas" busquem por algum tipo de reparação do ex-parceiro pela quebra de expectativa de vida derivada do rompimento do relacionamento.

Não se deslegitima a busca por reparação pecuniária daquele que se sente lesado, até mesmo em homenagem ao princípio da boa-fé e da vedação ao enriquecimento ilícito. Principalmente quando se percebe que há promessa futura de algum tipo de retribuição para aquele que, atualmente, aporta recursos na manutenção da qualidade de vida do outro. Mas daí pressupor de que isso também permite a imputação criminal do estelionato parece um exagero.

"PROCESSO CIVIL. TÉRMINO DE RELACIONAMENTO AMOROSO. DANOS MATERIAIS COMPROVADOS. RESSARCIMENTO. VEDAÇÃO AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. ABUSO DO DIREITO. BOA FÉ OBJETIVA. PROBIDADE. SENTENÇA MANTIDA. 1. [...] depreendendo-se que a autora/ apelada efetuou continuadas transferências ao réu; fez pagamentos de dívidas em instituições financeiras em nome do apelado/réu; adquiriu bens móveis tais como roupas, calcados e aparelho de telefonia celular; efetuou o pagamento de contas telefônicas e assumiu o pagamento de diversas despesas por ele realizadas, assim agindo embalada na esperança de manter o relacionamento amoroso que existia entre a ora demandante. Corrobora-se, ainda e no mesmo sentido, as promessas realizadas pelo varão-réu no sentido de que, assim que voltasse a ter estabilidade financeira, ressarciria os valores que obteve de sua vítima, no curso da relação. 2. Ao prometer devolução dos préstimos obtidos, criou-se para a vítima a justa expectativa de que receberia de volta referidos valores. A restituição imposta pela sentença tem o condão de afastar o enriquecimento sem causa, sendo tal fenômeno repudiado pelo direito e pela norma […]." (TJ-DF. Acórdão n.866800, 20130110467950APC, relator: CARLOS RODRIGUES, revisor: ANGELO CANDUCCI PASSARELI, 5ª Turma Cível, data de julgamento: 8/4/2015, publicado no DJE: 19/5/2015. P. 317).

Por isso é que, a nosso ver, a expressão estelionato amoroso ou sentimental deveria ficar restrita às situações de o autor do fato se aproximar insidiosamente da vítima, valendo-se do meio virtual e de uma eventual vulnerabilidade emocional da vítima, conquistando sua confiança e, após, solicitar-lhe ou exigir dela presentes e favores financeiros.

O Direito Penal é a extrema ratio de qualquer sistema jurídico. A ele cabe a intervenção quando as demais sendas do Direito se mostrarem aprioristicamente insuficientes para garantir a tutela dos bens jurídicos mais caros da sociedade. Para isso conta com ferramentas gravosas, inclusive o encarceramento cautelar.

E o Direito Penal sempre está um passo atrás das mudanças da sociedade. O legislador só atua no sentido de incriminar uma determinada conduta quando, percebendo-a na sociedade, vislumbra o risco social nela incrustado.

Talvez seja essa a razão para que o estelionato amoroso não tenha sido contemplado expressamente em nenhum diploma legal. Seja porque não possui suficiente magnitude lesiva aos bens jurídicos protegidos, seja porque o legislador, ainda que tenha percebido a sua relevância, não tenha decidido concretizar tal conduta em um tipo penal incriminador próprio.

A abrangência do artigo 171 do Código Penal
De uma ou de outra forma, o estelionato sempre requer do autor do fato a vontade e a consciência dirigidas à causação de prejuízo econômico para a vítima e, por corolário, a obtenção de vantagem indevida.

Daí, por ser um bem disponível, o patrimônio dado pela vítima como moeda de troca em um relacionamento amoroso não perfaz o tipo de prejuízo e de vantagem que o artigo 171 do Código Penal requer para a consumação, ou seja, os de natureza ilícita.

"Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícitaem prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis." (Código Penal)

Há quem transacione licitamente bens jurídicos disponíveis pela manutenção da boa qualidade de vida, a exemplo das práticas típicas das sugar babies, sugar daddies, sugar mommies, sugar boys etc.. Relacionamentos por conveniência não são criminalizados em face do princípio da alteridade, ainda que fujam a um padrão ortodoxo de condutas moralmente desejáveis pela sociedade.

Existem outras formas de se proteger alguns grupos de pessoas mais vulneráveis a trocas assimétricas, inclusive. Por exemplo, a fixação de regimes de bens necessários para o casamento de pessoas com mais de 70 anos (artigo 1.641, inciso II do Código Civil). E tal temática, inclusive, está na pendência de decisão definitiva do STF acerca da constitucionalidade do referido artigo do Código Civil (ARE 1.309.642).

Fato é que não se está aqui propagando a impunidade ou fechando os olhos para práticas ilícitas corriqueiras e imorais. Apenas advoga-se que a reparação ao bem jurídico violado, no caso o patrimônio, seria mais eficaz se buscada no âmbito civil.

É que não pode o Direito Penal servir como vingança privada de uma vítima que teve seu sentimento ferido e se sentiu enganada por ter contribuído financeiramente de forma maior do que o companheiro.

Do crime de estelionato de fundo amoroso
É importante diferenciar o que realmente é um estelionato com fundo amoroso da costumeira e banalizada conceituação de estelionato sentimental.

No estelionato com fundo amoroso o criminoso se utiliza de ferramentas de persuasão amorosa para se aproximar da vítima e, então, obter vantagem ilícita atual ou futura.

Geralmente, a fraude se consubstancia pelo falso interesse amoroso do estelionatário (motivação fraudulenta presente desde antes do início da relação) e pela intenção deliberada do agente de drenar o máximo de vantagens da vítima, causando-lhe prejuízo patrimonial em favor de seu locupletamento ilícito.

E não é só o repasse de dinheiro que os parasitas amorosos podem almejar. No caso de relacionamentos que perdurem por tempo maior, buscam a contemplação em testamentos ou mesmo a transferência de bens para seu nome, simulando inclusive contratos de compra-e-venda e inserção em holdings patrimoniais. Tudo em prol do binômio vantagem e prejuízo econômicos ilícitos.

Golpes do falso marido, golpe do soldado americano etc. são bons exemplos dos fake lovers. Nestes casos, inclusive, pode ser que a vítima sequer encontre pessoalmente com seu algoz, sendo mais comum a manutenção de relativamente duradouro relacionamento virtual.

Do projeto de lei
Diante do aumento exponencial de casos semelhantes, e pelas idiossincrasias que tais contextos trazem a reboque, a Câmara dos Deputados, em 4/8/2022, aprovou a subemenda substitutiva ao projeto de Lei n° 4.229/2015, que traz a nomenclatura "estelionato emocional", prevendo pena superior para para o crime de estelionato cometido em relações amorosas e contra pessoas idosas e vulneráveis, e estabelece punições para quem utilizar as redes sociais para aplicar o golpe.

Nos termos da proposta que segue para aprovação do Senado Federal, a conduta daquele que induzir a vítima, com a promessa de constituição de relação afetiva, a entregar bens ou valores para si ou para outrem, será tipificada como estelionato sentimental, cuja pena, de reclusão, de dois a seis anos, poderá ser triplicada, em se tratando de vítima idosa ou vulnerável, e ainda, ser aumentada de ⅓ até a metade caso seja vultoso o prejuízo causado à vítima em consequência do crime.

Conforme consta da exposição de motivos do texto aprovado, "cresce a cada dia o número de estelionatos praticados por pessoas que se aproximam de outra com a finalidade de se apropriar de seus bens, aproveitando-se de uma possível vulnerabilidade emocional e amorosa".

Segundo o relator do projeto, o avanço da internet e das redes sociais potencializou os casos de estelionato. "O criminoso utiliza-se da facilidade do meio virtual para enganar suas vítimas, o que enseja um agravamento da reprimenda a ser imposta nesses casos".

Da tipologia criminal aplicável ao caso concreto
Se a conduta for tipificada como estelionato, o bem jurídico tutelado deverá ser somente o patrimônio. E essa não parece ser a realidade.

Afinal, mais do que o patrimônio, a incolumidade psíquica da vítima e a sua própria dignidade sexual podem ser abaladas neste tipo de golpe amoroso. Por isso é tão importante analisar adequadamente o contexto para apurar qual a melhor capitulação aplicável ao caso concreto.

Não se descarta que haja a ocorrência de violência psicológica contra a mulher, ainda que o estelionato sentimental não se restrinja a vítimas do sexo feminino. Entretanto acreditamos que dificilmente haverá a incidência do artigo 147-B do Código Penal (violência psicológica contra a mulher), pois tal infração penal é expressamente subsidiária.

Ou seja, se a regra é que o criminoso almeja a atingir o patrimônio da vítima, normalmente o crime em tela vai ceder espaço para tal crime de valor. Os elementos constitutivos do artigo 147-B do Código Penal, lembre-se, voltam-se para a preservação exclusiva da integridade psicológica da mulher:

"Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave." (Código Penal)

Além disso, a dignidade sexual pode ser vulnerada como pano de fundo para a lesão patrimonial desejada. Não é incomum que, pela conexão sexual, os criminosos busquem reduzir a resistência da vítima, drenando com maior facilidade o seu patrimônio.

Nesta senda, merece destaque o crime do artigo 215 do Código Penal, o qual é costumeiramente conhecido como "estelionato sexual". A nosso ver, se visualizado pelo espectro do parágrafo único do referido tipo penal, esse sim seria o verdadeiro estelionato amoroso. Veja:

"Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa." (Código Penal)

O artigo 215, parágrafo único, do Código Penal contempla perfeitamente o que, via de regra, é utilizado pelos autores de crimes como estratégia principal de enganação: o envolvimento sexual com a vítima voltado para facilitar a consecução das vantagens econômicas espúrias. No caso, esta é a tipologia que melhor se amolda a boa parte dos casos concretos, e não a de estelionato (artigo 171 do Código Penal). Até mesmo porque a pena daquela infração é maior do que a do estelionato, o que nos parece absolutamente proporcional em face da existência de lesão a vários bens jurídicos (patrimônio, integridade psicológica e dignidade sexual da vítima).

De toda sorte, se o golpe for perpetrado pela internet, sem ter havido qualquer contato pessoal (e sexual) entre as partes, há que se restringir a incidência ao artigo 171 do Código Penal. Não se pode descartar a subsunção à modalidade de fraude eletrônica, principalmente quando o criminoso vai coletando informações da vítima para criar um história fraudulenta ainda mais envolvente.

"Art. 171. § 2º-A. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo." (Código Penal).

Por fim, é possível também a ocorrência de extorsões com fundo amoroso (artigo 158 do Código Penal). Comum é que vítimas sejam envolvidas sentimentalmente por criminosos e convencidas a encaminharem fotografias sensuais para o fake lover, o qual se utiliza de intermediário para realizar extorsões posteriores (sextorsão). Essa infração é muito grave, tanto é que as penas deste crime são de 4 a 10 anos, e multa. Exemplo dessa incidência mais gravosa está no HC 216.924 / SP, de 29/6/2022, o ministro GILMAR MENDES. Vejamos:

"Dentre os crimes praticados por essa organização e investigados no curso do presente procedimento, destacam-se os crimes de estelionato sentimental, extorsão e lavagem de dinheiro.[…] Para a prática do crime de estelionato, o indivíduo integrante do grupo cuja função é conhecida como 'fake lover' cria um perfil falso, em um site de relacionamento ou rede social, e inicia contato com a vítima por meio deste mesmo site ou da rede social. Há perfis falsos masculinos e femininos, mas, normalmente, o 'fake lover' é um homem. No início do relacionamento, o criminoso se identifica como um militar americano em missão fora do país ou como pessoa estrangeira bem sucedida, que almeja vir morar no Brasil. Após algum tempo de contato e já mantendo um falso namoro virtual, inclusive com o envio de fotos, documentos e dados pessoais falsos, o criminoso informa que deseja enviar algo muito valioso para o Brasil, como por exemplo, uma mala de dinheiro que recebeu como recompensa da ONU e que ao chegar ao país iria casar com a vítima e viver com o respectivo dinheiro. Aí se inicia o golpe. Após aceitar receber a mala, a vítima recebe uma ligação informando que a encomenda chegou e que é necessário pagar uma taxa para liberação na alfândega. Assim que o pagamento é feito, são inventadas novas histórias para retirar mais dinheiro da vítima, como, por exemplo que o pagamento deveria ser em dólar, ou que há necessidade de pagamento da transportadora e depois que há necessidade de pagamento de escolta, pois o produto é valioso demais, enfim, são criadas diversos entraves e que para solucioná-lo a vítima deveria efetuar mais um pagamento. Após retirar o máximo de dinheiro das vítimas, apenas com falsas narrativas, em muitos casos, quando a vítima se nega a enviar mais dinheiro, ela passa a ser extorquida, com ameaças de prisão, por ter aceitado receber encomenda ilegal. Em outros casos, após o período de namoro virtual e o envio de fotos íntimas, as vítimas são extorquidas a efetuar o pagamento de valores para que as fotos não sejam vazadas na internet."

Em resumo, é preciso se atentar para as nuances concretas de cada golpe perpetrado para buscar a melhor capitulação legal. Mas isso já indica que o uso indiscriminado da terminologia estelionato sentimental pode conduzir a dois equívocos interpretativos graves: 1- todo benefício econômico assimétrico alcançado por uma das partes no relacionamento amoroso será considerado estelionato; 2- só o estelionato (artigo 171 do Código Penal) pode incidir no caso concreto, quando for a conduta realmente criminosa.

Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito e doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.

Aline Lopes é delegada de Polícia Civil de Goiás e professora de cursos preparatórios.

Fernanda Moretzsohn é delegada de Polícia Civil no estado do Paraná, pós-graduada em Direito Público e pós-graduada em Direito LGBTQIA+, autora pela editora Umanos, colunista Conjur (Questão de Gênero), professora da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e diretora jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná (Adepol-PR).

 

 

 

CARTA NA MANGA Supremo valida apreensão de 695 quilos de cocaína sem mandado judicial

Supremo valida apreensão de 695 quilos de cocaína sem mandado judicial

4 de outubro de 2022, 21h59

Por avaliar que as fundadas suspeitas da prática de crime de natureza permanente (no caso, tráfico internacional de drogas) justificaram a medida, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, considerou válida a apreensão de 695 quilos de cocaína em um galpão no Porto de Itaguaí (RJ) sem mandado de busca e apreensão. A decisão foi tomada na sessão virtual encerrada no último dia 30, em agravo em recurso extraordinário.

De acordo com os autos, policiais federais vigiavam o local para verificar a procedência de denúncia anônima e de informações sobre tráfico de entorpecentes. A Polícia Civil, em uma investigação autônoma, entrou no galpão e, em seguida, os policiais federais fizeram o mesmo. Na ação, foi apreendida quantidade expressiva de cocaína, parte dela escondida dentro de mangas que eram preparadas para a exportação.

Em agosto, o relator, ministro Edson Fachin, havia negado seguimento ao RE interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) contra decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que havia considerado a apreensão ilegal em razão da violação de domicílio. O fundamento foi a impossibilidade de reanalisar provas em sede de RE (Súmula 279). O MPF, então, apresentou o agravo julgado pela 2ª Turma.

Tráfico internacional
Prevaleceu, no julgamento, o voto divergente do ministro Nunes Marques, que entendeu que há elementos que justificam o ingresso dos agentes públicos no galpão. Entre outros pontos, ele observou que a Polícia Federal fazia vigília em frente ao local e que havia indícios da prática do crime de tráfico internacional de drogas, de natureza permanente.

Segundo ele, os setores de inteligência das Polícias Federal e Civil do Rio de Janeiro detectaram movimentação atípica nas proximidades do galpão.

Nunes Marques lembrou que o STF, no julgamento do RE 603.616 (Tema 280), firmou a tese de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas posteriormente, que indiquem que, dentro da casa, ocorre situação de flagrante delito, como no caso. Acompanharam a divergência os ministros Ricardo Lewandowski e André Mendonça.

Ao votar pelo desprovimento do agravo, o ministro Edson Fachin reiterou os fundamentos de sua decisão monocrática, segundo a qual, para o TRF-2, os policiais federais não conseguiram justificar de maneira concreta e objetiva que estavam diante de situação de flagrante delito que justificasse a relativização do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio.

De acordo com Fachin, para decidir de forma diversa do TRF-2 seria necessário o reexame de provas, o que não é permitido em RE. O ministro Gilmar Mendes acompanhou esse entendimento. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

RE 1.393.423

REPARAÇÃO À VÍTIMA Valor da fiança não deve ser restituído em caso de condenação, diz TJ-SP

 Valor da fiança não deve ser restituído em caso de condenação, diz TJ-SP

4 de outubro de 2022, 18h51

Por Tábata Viapiana

A restituição do valor recolhido a título de fiança só é possível no caso de absolvição ou extinção da punibilidade. Com esse entendimento, a 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo negou um pedido de restituição da fiança paga por um homem condenado por tentativa de homicídio.

O acusado foi preso em flagrante e, após o recebimento da denúncia, foi solto mediante o pagamento de fiança de R$ 100 mil. Ele foi condenado a um ano e quatro meses de prisão, em regime inicial aberto. O trânsito em julgado se deu em janeiro de 2021. A defesa, então, alegou que a fiança, por ter natureza cautelar, deveria ser restituída após a extinção da ação penal.

O argumento não convenceu o relator, desembargador Camilo Léllis, que manteve a decisão de primeira instância contra a devolução do valor. Ele disse que a natureza acautelatória da fiança extrapola a vinculação do agente aos atos processuais, "espargindo sobre seus deveres de arcar com as eventuais custas, sobre a reparação do dano e até mesmo sobre possível prestação pecuniária e multa".

"A despeito de inexistir no âmbito do presente processo criminal a fixação de valor mínimo para a reparação dos danos causados ao ofendido, na dicção do artigo 387, IV, do Código de Processo Penal, o fato é que a sentença penal condenatória transitada em julgado constitui, por si só, título executivo judicial, tornando certa a obrigação de reparar os danos, conforme artigo 63, do codex", afirmou.

Conforme o relator, é "razoável" a manutenção da retenção da fiança, a fim de garantir à vítima a efetivação de seu direito à reparação do dano. "A restituição do valor recolhido a título de fiança somente tem lugar, à luz da conjugação entre os artigos 336 e 337, ambos do Diploma Processual Penal, no caso de absolvição ou extinção da punibilidade, hipóteses não verificadas in casu", completou Léllis.

Por fim, ele afastou o argumento da defesa de que, uma vez transitada em julgado a sentença penal condenatória, não caberia mais a instauração de medida assecuratória por parte da vítima. Segundo o relator, o trânsito em julgado não impede a instauração do incidente, pois "a própria legislação processual penal autoriza tais medidas de ofício e em qualquer fase do processo". A decisão foi unânime.

Processo 0000911-68.2017.8.26.0599