PARA USO PRÓPRIO, PODE
Turma recursal declara
inconstitucional artigo sobre porte de droga
13 de setembro de 2022, 18h05
A 1ª Turma Recursal Criminal de
Santos declarou de ofício e incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo
28 da Lei 11.343/2006 (porte de droga para uso próprio) e absolveu um jovem
detido com 16 gramas de maconha com base no artigo 386, inciso III, do Código
de Processo Penal (não constituir o fato infração penal).
"A criminalização da conduta de
portar droga para uso próprio, além de violar a autonomia e a autodeterminação
do indivíduo, decorrências lógicas da dignidade humana, equivaleria a
criminalizar a própria vítima", justificou o juiz Gustavo Henrichs Favero,
relator da apelação.
Os magistrados Wilson Julio Zanluqui
e Orlando Gonçalves de Castro Neto seguiram o relator. Nas 20 laudas de seu
voto, Favero defendeu o seu entendimento quanto a atipicidade da posse e do
porte de entorpecentes para consumo próprio, rechaçando argumentos de quem
sustenta o contrário.
Segundo o relator, a conduta
atribuída ao usuário carece de tipicidade material porque, "ao contrário
do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo artigo 28 da Lei 11.343/06 é a
‘integridade física’ e não a ‘incolumidade pública’, diante da ausência de
transcendência da conduta".
Favero citou os artigos 3º, inciso I,
e 5º, inciso X, que estabelecem como direito fundamental a liberdade da vida
privada, bem como a impossibilidade de penalização da autolesão sem efeitos a
terceiros. "Daí a razão pela qual não se pune criminalmente qualquer outra
forma de autolesão, sendo exemplo clássico o suicídio tentado".
O autor do voto também afastou a
alegação da corrente que defende a criminalização da conduta descrita no artigo
28, segundo a qual o consumidor de drogas financia o tráfico. "O usuário
de drogas não tem qualquer controle sobre o comportamento do traficante",
destacou Favero.
Conforme o acórdão, punir o
dependente ou consumidor eventual com a justificativa de combater o tráfico
seria responsabilizá-lo pelo ato do verdadeiro culpado pela violação à saúde
pública, no caso, o traficante. "Uma punição fundada na incapacidade do
Estado de controlar o verdadeiro comportamento danoso", frisou a decisão.
Discriminação
O uso da lei "para impor uma forma de pensamento" foi criticado
pelo relator, porque a legislação não pune a autolesão ou o consumo de drogas,
exceto se tais condutas atinjam ou possam atingir terceiros, como nos casos de
mutilação para fraudar seguro ou de direção de veículo automotor sob efeito de
álcool em concentração acima do permitido.
"O Estado só age para evitar que
a conduta de uma pessoa interfira na vida de outra, garantindo o exercício
harmônico das liberdades humanas. [...] É arbitrária, portanto, a punição de
alguém que apenas desejou ingerir algo, causando mal unicamente a si
próprio", concluiu Favero.
Com a ressalva de que não se trata de
apologia ou sequer aprovação ao uso de drogas, o acórdão classificou de
inadmissível a marginalização de pessoas em razão de hábitos condenados
por "parte" da população. Mencionou ainda o artigo 3º, inciso IV, da
Constituição Federal, que veda todas as formas de discriminação.
Por fim, segundo a decisão, por ser o
Direito Penal a última ratio do controle social, destinado aos
comportamentos mais graves, ele não pode ser usado para coibir comportamentos
praticados na esfera íntima do indivíduo, sob pena de atentar contra a
dignidade humana, a pluralidade, a intimidade e a isonomia previstas na
Constituição.
Sem bagatela
No caso concreto, policiais civis surpreenderam um jovem de 28 anos com um
pequeno tablete de maconha. A abordagem ocorreu em Guarujá, no dia 18 dezembro
de 2019, e rapaz alegou que o entorpecente seria para o seu uso. O Ministério
Público pediu a condenação pelo crime descrito no artigo 28 da Lei de Drogas.
O juiz Alexandre das Neves, do
Juizado Especial Criminal de Guarujá, condenou o réu à pena de prestação de
serviços à comunidade por três meses. Ele afastou a hipótese de delito de
bagatela, sob o fundamento de que a pequena quantidade de maconha apenas
serve para afastar o tráfico, e não como excludente de ilicitude ou
culpabilidade.
A sentença foi dada em 29 de novembro
de 2021. A defesa apelou para pedir a absolvição e, subsidiariamente, a imposição
de pena mais branda, como advertência. Ao declarar inconstitucional o artigo 28
e absolver o réu, a turma recursal ressalvou que a decisão se ateve ao aspecto
jurídico, sem discutir a política de repressão às drogas adotada no país.
Processo 1526757-06.2019.8.26.0223
Eduardo Velozo Fuccia é jornalista.
Revista Consultor Jurídico,
13 de setembro de 2022, 18h05
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