O entendimento sedimentado, há muito, na Suprema Corte, é claro: se o agente é primário, tem bons antecedentes, não integra organização criminosa e não se dedica a atividade ilícita, deve ser reconhecido o tráfico privilegiado.
O tema foi objeto de julgamento pelo pleno do STF, no ARE 666.334/AM, em 2014, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, sob análise de matéria com repercussão geral, afirmando a jurisprudência de que "as circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena", sob pena de incidência do bis in idem.
De qual a fase que deve ser considerada para o cálculo, encontra-se no artigo 42, da Lei 11.343/2006, que determina: "o juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente". Portanto, há explícita determinação de que é na primeira fase a determinação individualizada da pena-base por conta de apreensões de grandes quantidades de entorpecentes.
Assim, das apreensões de cargas significativas, na primeira fase da dosimetria da pena, o magistrado deve considerar a quantidade e a natureza do entorpecente, determinando fundamentadamente a pena-base acima do mínimo, se assim o entender. Já, na terceira fase, onde se analisa o benefício do tráfico privilegiado, artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, a sua denegação deve ser fundamentadamente justificada visto tratar-se de um benefício concedido em lei que integra o direito subjetivo dos acusados.
A questão é que nunca tal determinação prevaleceu nos juízos e tribunais Brasil afora, e a ocorrência do bis in idem é a prática natural e predominante em busca de uma ampla discricionariedade judicial no imperativo da individualização da pena (mais severas, óbvio), mesmo perante a própria lei e a jurisprudência das altas cortes.
Por exemplo, neste caso revertido, Habeas Corpus 207.501/SP, apresenta-se o entendimento de que "a quantidade e natureza da droga são circunstâncias que, apesar de configurarem elementos determinantes na modulação da causa de diminuição de pena, por si sós, não são aptos a comprovar o envolvimento com o crime organizado ou a dedicação à atividade criminosa, devendo o juízo condenatório obter outros elementos hábeis a embasar tal afirmativa" [1]. Tais decisões vão de encontro à doutrina, em que "a habitualidade ou o pertencimento à organizações criminosas deverão ser comprovados, não valendo a simples presunção. Não havendo prova nesse sentido, o condenado fará jus à redução de pena" [2].
Isso é simples decorrência do ônus da prova: cabe à parte acusadora provar, com elementos corroborativos de prova, o descabimento do benefício. Da simples constatação da grande quantidade da carga, inferir que trata-se de uma organização criminosa, sem a apresentação de outros elementos no curso processual, constata-se um bis in idem exposto; pelo fato que tal circunstância judicial, encontra-se na primeira fase da dosimetria utilizado para individualizar a pena-base, por ordem da previsão legal do artigo 42, da referida lei.
A questão ora debatida é se, pode o julgador aplicar fração de redução menor (entre ⅔ a ⅙) quando a quantidade de drogas apreendida é significativamente grande. Ou seja, pode o julgador modular a fração de redução com base na quantidade das drogas? Caso a quantidade e natureza da droga tenham sido utilizadas na primeira fase da dosimetria, deve-se admitir, na terceira fase, sua utilização para modular a fração de redução, ainda que sejam os únicos elementos aferidos? Não seria obviamente apenas outro bis in idem?
Decisões do STF, como o Habeas Corpus 207.501/SP, "primariedade, bons antecedentes, não integração criminosa ou dedicação às atividades criminosas são condicionantes da incidência da causa de diminuição de pena, não elementos determinantes de sua modulação"; como o voto do eminente ministro João Otávio Noronha, no Habeas Corpus nº 725.534-SP (2022/0051301-0), "a redução da pena não é faculdade do juiz, mas direito subjetivo do agente que preencha os requisitos do § 4º do art. 33" [3], apontam para essa direção. Porém, há, como natural, pluralidade de direcionamentos decisórios.
Primeiro, no Habeas Corpus 207.501/SP, e RHC 192.643 AgR, ambos de 2021, e ambos de relatoria do ministro Gilmar Mendes, adota-se um entendimento quanto ao bis in idem, porém, determina ao juízo de origem que refaça a dosimetria com a aplicação do redutor previsto no artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, em fração a ser motivadamente determinada.
"Assim, a quantidade e natureza da droga são circunstâncias que, apesar de configurarem elementos determinantes na modulação da causa de diminuição de pena, por si sós, não são aptas a comprovar o envolvimento com o crime organizado ou a dedicação à atividade criminosa, devendo o juízo condenatório obter outros elementos hábeis a embasar tal afirmativa.
[...] Ante o exposto, com fundamento no art. 192 do RI/STF, concedo a ordem para determinar ao juízo de origem que proceda à nova dosimetria da pena imposta ao paciente e aplique a causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 em patamar a ser fixado motivadamente." (Habeas Corpus 207.501/SP, relator: Gilmar Mendes, julgado em 20/10/2021).
E o seguinte:
"Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus. 2. Penal e processual penal. 3. Tráfico de drogas. 4. Dosimetria e redutor por tráfico privilegiado. Quantidade e natureza da droga são circunstâncias que, apesar de configurarem elementos determinantes na modulação da causa de diminuição de pena, por si sós, não são aptas a comprovar o envolvimento com o crime organizado ou a dedicação à atividade criminosa. Precedentes. Ordem concedida para determinar ao Juízo de origem que refaça a dosimetria com a aplicação do redutor previsto no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, em fração a ser motivadamente determinada. 5. Argumentos incapazes de infirmar os fundamentos da decisão agravada. 6. Agravo regimental improvido." (RHC 192.643 AgR, relator: Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 24/5/2021, publicado 27/5/2021).
A fração a ser motivadamente determinada, por óbvio, encontra-se dentro dos parâmetros de determinação, do mais benéfico, descendendo, em ordem, para o menos benéfico, justificada pela determinação de outros elementos ou circunstâncias judiciais, que seriam prejudiciais ao réu. Assim, a lógica é, não havendo nenhum, ou sendo a "grande quantidade de drogas" a única circunstância judicial disponível ao caso, justificada a fração maior.
No STJ, na decisão do EResp 1.887.511/SP, de relatoria do ministro João Otávio de Noronha (9/6/2021), formulou-se no seu bojo as seguintes diretrizes para a aplicação do artigo 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, na forma de sua modulação:
"1 - a natureza e a quantidade das drogas apreendidas são fatores a serem necessariamente considerados na fixação da pena-base, nos termos do art. 42 da Lei nº 11.343/2006.
2 - Sua utilização supletiva na terceira fase da dosimetria da pena, para afastamento da diminuição de pena prevista no § 3º do art. 33 da Lei n. 11.343/2016, somente pode ocorrer quando esse vetor conjugado com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do agente à atividade criminosa ou a integração a organização criminosa.
3 - Podem ser utilizadas para modulação da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 quaisquer circunstâncias judiciais não preponderantes, previstas no art. 59 do Código Penal, desde que não utilizadas na primeira etapa, para fixação da pena-base."
Portanto, o modelo para a modulação da fração nos casos de grande apreensão, seria: a natureza e a quantidade de drogas aprendidas devem ser "necessariamente consideradas na fixação da pena-base", e podem ser utilizadas quaisquer outras circunstâncias judiciais não preponderante — as do artigo 59, CP — desde que não utilizadas na primeira etapa da dosimetria. Assim, à míngua de outras circunstâncias do caso concreto aptas a indicar a dedicação do acusado a atividades criminosas, o emprego isolado dos citados elementos — grande quantidade de entorpecente — não é idôneo para afastar ou modular aquela benesse. Aplica-se o benefício em sua forma majorada.
Deste estado de coisas, a divergência abre-se, ao exemplo de um julgado recente, Habeas Corpus nº 725.534-SP: neste, primeiro, o entendimento do ministro Ribeiro Dantas, que afasta-se, declaradamente, da proposta do uso apenas supletivo da quantidade e da natureza da droga na terceira fase da dosimetria, no intuito de não abaixar em demasia a imposição de pena na 3ª fase, buscando, assim, justificar a modulação na fração mínima prevista no § 4º do artigo 33, de 1/6, com o emprego isolado dos citados elementos — natureza e quantidade de drogas — para modular o benefício no mínimo possível. O ministro aponta a necessidade de maior repressão para casos com maior gravidade.
"Sob tal contexto, proponho mantermos o entendimento anterior desta Corte, acolhido em repercussão geral pelo STF, no julgamento do ARE 666.334/AM, sobre a possibilidade de valoração da quantidade e da natureza da droga apreendida, tanto para a fixação da pena-base quanto para a modulação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 — neste último caso ainda que sejam os únicos elementos aferidos —, desde que não tenha sido considerada na primeira fase do cálculo da pena."
No voto do ministro João Otávio Noronha, este aponta sua dissidência à proposta, tendo em vista que o REsp nº 1.887.511/SP, fixou o entendimento que, nos crimes de tráfico, na primeira etapa da dosimetria da pena, deve-se necessariamente considerar o elemento preponderante "natureza e quantidade do entorpecente apreendido" para fixação da pena-base, dado o princípio da especialidade, sendo assim, “preponderante, não deveria ser reservada para outras fases da dosimetria, onde o legislador não tenha previsto, de forma específica, sua utilização"[4].
Para o caso, o ministro concede a ordem de ofício, para fazer incidir a causa de diminuição da pena em favor do paciente, nos termos do artigo 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, porém na fração máxima de redução, 2/3, com a consequente alteração do regime inicial.
O ministro justifica que "a consideração desses vetores na primeira fase da dosimetria (e não na terceira) se traduz, normalmente, como mais benéfica ao acusado"; e que "o legislador poderia ter previsto uma agravante ou majorante para a conduta de tráfico de grande quantidade, porém não o fez" [5]; dessa forma, há preponderância do artigo 42 da Lei nº 11.343/2006, determinando que essa circunstância seja valorada na primeira fase da dosimetria, com primazia em relação às demais circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP.
Do papel do judiciário de garantidor dos direitos individuais, e da irracionalidade do papel do judiciário na guerra contra as drogas, justifica pelo que o tráfico privilegiado é instituto criado para beneficiar aquele que ainda não se encontra mergulhado nessa atividade ilícita, independentemente do tipo ou do volume de drogas apreendidas, ou mais que apropriadamente, não haja mitigações modulações através de ilações, presunções.
Tal entendimento encontra-se melhor amparado pelos precedentes do STF; como parâmetro para sedimentar o entendimento no STJ; e, sem maiores dúvidas, perante a doutrina e a própria lei.
Há, ainda, julgados que se encontram em um meio termo entre esses posicionamentos, que poderiam ser a justa medida para o caso recorrido, HC 177.766 AgR, relatora: Rosa Weber, que aplica a causa de diminuição em ¼; mas que se encaixam nos entendimentos favoráveis à ampla margem de discricionariedade judicial.; como do entendimento do ministro Ribeiro Dantas, no Habeas Corpus nº 725.534-SP, afastando-se da proposta do uso apenas supletivo da quantidade e da natureza da droga na terceira fase da dosimetria, e assim possibilitando justificar a modulação na fração mínima prevista no § 4º do artigo 33, de 1/6, com o emprego isolado dos citados elementos para modular o benefício no mínimo possível, o que se transfigura, claramente, no bis in idem.