Para advogados, dever do MP de revelar provas à defesa reforça paridade de armas
18 de
abril de 2022, 20h26
O pedido feito pelos advogados de um
réu da "lava jato" para que o Supremo Tribunal Federal obrigue o
Ministério Público a revelar provas favoráveis à defesa privilegia o princípio
do devido processo legal e reforça a paridade de armas, segundo especialistas
ouvidos pela ConJur.
STF decidirá se o Ministério Público deve revelar provas favoráveis à
defesa
O empresário do ramo de petróleo e
gás Guilherme Esteves de Jesus pediu ao Supremo a
fixação da tese de que é dever constitucional do Ministério Público, sob pena
de nulidade absoluta, revelar ao réu a existência de provas essenciais à sua
defesa que tiverem sido produzidas em procedimentos investigativos ou judiciais
que lhe forem estranhos.
A defesa de Esteves, comandada pelos
advogados Fernanda Tórtima e Claudio Bidino,
requereu que o STF reconheça a repercussão geral do recurso extraordinário e
determine que o Ministério Público tem o dever de compartilhar com a defesa
provas que possam favorecer o acusado.
Os advogados questionam se o MP tem o
dever constitucional de revelar para os acusados as provas essenciais às suas
defesas que tiverem sido produzidas em outros procedimentos investigativos ou
mesmo judiciais que lhes sejam estranhos; quais são as consequências
processuais do descumprimento dessa obrigação por parte do MP; e se essas
consequências processuais podem ser relativizadas, por exemplo, se não ficar
provado que os promotores ou procuradores agiram com dolo e houver a
demonstração de que não havia obstáculos para o acesso dos réus a tais provas.
Esse também é o objetivo do Projeto
de Lei do Senado 5.852/2019, de autoria do jurista Lenio Streck e
do ex-senador Antônio Anastasia, atual ministro do Tribunal de
Contas da União. O PLS pretende alterar o
Código de Processo Penal para estabelecer a obrigatoriedade de o Ministério
Público buscar a verdade dos fatos. O objetivo é fazer com que o MP alargue a
investigação a todos os fatos pertinentes para a determinação da
responsabilidade criminal, independentemente de interessarem à acusação ou à
defesa.
O criminalista Alberto Zacharias
Toron concorda com o pedido e cita o filme "Em nome do pai",
que retrata a condenação de todos os membros de uma família irlandesa pela
prática de um atentado. "Naquele caso, o MP havia escondido provas que
inocentavam os réus. Isso é inadmissível", avalia ele.
Como representa o Estado, o
Ministério Público não pode selecionar ou ocultar provas, afirma o
advogado Fernando Augusto Fernandes. E caso o MP o faça, destaca
ele, o processo é nulo por cerceamento de defesa, e seus integrantes devem
responder por abuso de autoridade e prevaricação.
Segundo Fernandes, o dever de
preservação da cadeia de custódia, estabelecido pelo
Superior Tribunal de Justiça (HC 160.662), decorre da garantia de que a defesa
tenha acesso às mesmas provas que a acusação.
O Ministério Público é, acima de
tudo, uma agência de Estado fiscalizadora da lei — no processo penal, fiscal
das regras do jogo —, não um órgão de natureza eminentemente persecutória, diz
um criminalista. Por isso, prossegue ele, a regra deve ser a publicidade plena
da prova sob a custódia do Estado. Conforme o advogado, ocultar provas que
favorecem a defesa desnatura as funções institucionais do MP.
Já um integrante do Ministério
Público Federal considera que o tema merece atenção e pode suscitar um bom
debate no STF sobre o dever de fair play do MP no processo
penal.
Grandes operações
O advogado Gustavo Badaró, professor de Processo Penal da
Universidade de São Paulo, ressalta a importância de o STF fixar a tese de que
o MP deve compartilhar as provas com a defesa, especialmente em grandes
operações, como a "lava jato".
De acordo com ele, o modelo de
operação e fases "viola claramente as regras de conexão". Se os
crimes são conexos, é necessário ter um processo único, aponta o advogado. E
por isso se prorroga a competência. Contudo, a "lava jato" prorrogou
a competência (em Curitiba, da 13ª Vara Federal), mas não reuniu os processos.
Com isso, diz Badaró, os mesmos procuradores e um mesmo juiz tinham a visão do
todo.
"Se uma prova no processo A
favorecia a condenação de um réu no processo B, a acusação simplesmente pedia o
compartilhamento ou a juntada como prova emprestada. Mas se uma prova do
processo A ajudasse a absolvição de outro réu do processo B, sua defesa jamais
saberia, pois o processo A seria sigiloso para ela. Isso é uma brutal quebra da
paridade de armas", opina ele.
Além disso, destaca o professor, se a
verdade dos enunciados fáticos é uma condição necessária — embora insuficiente
— para uma decisão justa, "não se pode admitir que um agente estatal, no
caso o MP, possa ocultar uma prova que eventualmente prejudique sua
estratégia".
Especialmente no caso de provas
produzidas diretamente perante o órgão, como declarações de delatores, deve
haver um dever legal de revelação do conteúdo aos envolvidos, afirma Badaró.
Sistema
internacional
No caso Brady vs Maryland, de 1963, a Suprema Corte dos Estados
Unidos reconheceu o dever de compartilhamento, por parte da acusação, de todas
as provas, menciona o juiz e colunista da ConJur Alexandre Morais da
Rosa. Treze anos depois, o tribunal esclareceu que as provas devem ser
apresentadas pelo MP mesmo que não haja requerimento da defesa (United
States vs Agurs).
No entanto, a Suprema Corte, no
caso United States vs Ruiz (2002), decidiu que, na hipótese da
confissão e da homologação de acordo (plea bargaining), a "regra de
Brady" não pode ser invocada como fundamento do pedido de anulação posterior.
A diretriz mundial, prevista no
Estatuto de Roma (artigo 54), segue no caminho do dever de a acusação
apresentar tudo o que for apurado, evitando a manipulação seletiva de prova
tendente a suprimir ou dificultar o exercício amplo da defesa, explica Morais
da Rosa, que também é professor de Processo Penal da Universidade Federal de
Santa Catarina.
"São práticas vedadas a
surpresa, o trunfo e a omissão estratégica. O dever de boa-fé objetiva impede
que o acusador se valha da omissão, da destruição ou da omissão estratégica. A
conduta ativa ou passiva de agentes estatais oportunistas é contrária à
lealdade e transparência, fundamentos do Estado democrático de Direito. O
agente estatal que manipula ou omite provas (favoráveis ou desfavoráveis) à
defesa viola o fair disclosure e a regra de Brady, praticando
conduta capaz de contaminar a investigação e a condenação", declara o
juiz.
Revista Consultor Jurídico,
18 de abril de 2022, 20h26
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