terça-feira, 19 de abril de 2022

 Para advogados, dever do MP de revelar provas à defesa reforça paridade de armas

18 de abril de 2022, 20h26

Por Sérgio Rodas

O pedido feito pelos advogados de um réu da "lava jato" para que o Supremo Tribunal Federal obrigue o Ministério Público a revelar provas favoráveis à defesa privilegia o princípio do devido processo legal e reforça a paridade de armas, segundo especialistas ouvidos pela ConJur.

STF decidirá se o Ministério Público deve revelar provas favoráveis à defesa

O empresário do ramo de petróleo e gás Guilherme Esteves de Jesus pediu ao Supremo a fixação da tese de que é dever constitucional do Ministério Público, sob pena de nulidade absoluta, revelar ao réu a existência de provas essenciais à sua defesa que tiverem sido produzidas em procedimentos investigativos ou judiciais que lhe forem estranhos.

A defesa de Esteves, comandada pelos advogados Fernanda Tórtima e Claudio Bidino, requereu que o STF reconheça a repercussão geral do recurso extraordinário e determine que o Ministério Público tem o dever de compartilhar com a defesa provas que possam favorecer o acusado.

Os advogados questionam se o MP tem o dever constitucional de revelar para os acusados as provas essenciais às suas defesas que tiverem sido produzidas em outros procedimentos investigativos ou mesmo judiciais que lhes sejam estranhos; quais são as consequências processuais do descumprimento dessa obrigação por parte do MP; e se essas consequências processuais podem ser relativizadas, por exemplo, se não ficar provado que os promotores ou procuradores agiram com dolo e houver a demonstração de que não havia obstáculos para o acesso dos réus a tais provas.

Esse também é o objetivo do Projeto de Lei do Senado 5.852/2019, de autoria do jurista Lenio Streck e do ex-senador Antônio Anastasia, atual ministro do Tribunal de Contas da União. O PLS pretende alterar o Código de Processo Penal para estabelecer a obrigatoriedade de o Ministério Público buscar a verdade dos fatos. O objetivo é fazer com que o MP alargue a investigação a todos os fatos pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, independentemente de interessarem à acusação ou à defesa.

O criminalista Alberto Zacharias Toron concorda com o pedido e cita o filme "Em nome do pai", que retrata a condenação de todos os membros de uma família irlandesa pela prática de um atentado. "Naquele caso, o MP havia escondido provas que inocentavam os réus. Isso é inadmissível", avalia ele.

Como representa o Estado, o Ministério Público não pode selecionar ou ocultar provas, afirma o advogado Fernando Augusto Fernandes. E caso o MP o faça, destaca ele, o processo é nulo por cerceamento de defesa, e seus integrantes devem responder por abuso de autoridade e prevaricação.

Segundo Fernandes, o dever de preservação da cadeia de custódia, estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça (HC 160.662), decorre da garantia de que a defesa tenha acesso às mesmas provas que a acusação.

O Ministério Público é, acima de tudo, uma agência de Estado fiscalizadora da lei — no processo penal, fiscal das regras do jogo —, não um órgão de natureza eminentemente persecutória, diz um criminalista. Por isso, prossegue ele, a regra deve ser a publicidade plena da prova sob a custódia do Estado. Conforme o advogado, ocultar provas que favorecem a defesa desnatura as funções institucionais do MP.

Já um integrante do Ministério Público Federal considera que o tema merece atenção e pode suscitar um bom debate no STF sobre o dever de fair play do MP no processo penal.

Grandes operações
O advogado Gustavo Badaró, professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo, ressalta a importância de o STF fixar a tese de que o MP deve compartilhar as provas com a defesa, especialmente em grandes operações, como a "lava jato".

De acordo com ele, o modelo de operação e fases "viola claramente as regras de conexão". Se os crimes são conexos, é necessário ter um processo único, aponta o advogado. E por isso se prorroga a competência. Contudo, a "lava jato" prorrogou a competência (em Curitiba, da 13ª Vara Federal), mas não reuniu os processos. Com isso, diz Badaró, os mesmos procuradores e um mesmo juiz tinham a visão do todo.

"Se uma prova no processo A favorecia a condenação de um réu no processo B, a acusação simplesmente pedia o compartilhamento ou a juntada como prova emprestada. Mas se uma prova do processo A ajudasse a absolvição de outro réu do processo B, sua defesa jamais saberia, pois o processo A seria sigiloso para ela. Isso é uma brutal quebra da paridade de armas", opina ele.

Além disso, destaca o professor, se a verdade dos enunciados fáticos é uma condição necessária — embora insuficiente — para uma decisão justa, "não se pode admitir que um agente estatal, no caso o MP, possa ocultar uma prova que eventualmente prejudique sua estratégia".

Especialmente no caso de provas produzidas diretamente perante o órgão, como declarações de delatores, deve haver um dever legal de revelação do conteúdo aos envolvidos, afirma Badaró.

Sistema internacional
No caso Brady vs Maryland, de 1963, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o dever de compartilhamento, por parte da acusação, de todas as provas, menciona o juiz e colunista da ConJur Alexandre Morais da Rosa. Treze anos depois, o tribunal esclareceu que as provas devem ser apresentadas pelo MP mesmo que não haja requerimento da defesa (United States vs Agurs).

No entanto, a Suprema Corte, no caso United States vs Ruiz (2002), decidiu que, na hipótese da confissão e da homologação de acordo (plea bargaining), a "regra de Brady" não pode ser invocada como fundamento do pedido de anulação posterior.

A diretriz mundial, prevista no Estatuto de Roma (artigo 54), segue no caminho do dever de a acusação apresentar tudo o que for apurado, evitando a manipulação seletiva de prova tendente a suprimir ou dificultar o exercício amplo da defesa, explica Morais da Rosa, que também é professor de Processo Penal da Universidade Federal de Santa Catarina.

"São práticas vedadas a surpresa, o trunfo e a omissão estratégica. O dever de boa-fé objetiva impede que o acusador se valha da omissão, da destruição ou da omissão estratégica. A conduta ativa ou passiva de agentes estatais oportunistas é contrária à lealdade e transparência, fundamentos do Estado democrático de Direito. O agente estatal que manipula ou omite provas (favoráveis ou desfavoráveis) à defesa viola o fair disclosure e a regra de Brady, praticando conduta capaz de contaminar a investigação e a condenação", declara o juiz.

Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2022, 20h26

 

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