MP NO DEBATE
No Tribunal do Júri, o feminicídio e a soberania dos veredictos
Em julgamento de Habeas Corpus [1] realizado no Supremo Tribunal Federal, no final do ano passado, a 1ª Turma decidiu, por maioria [2], que o Ministério Público não pode recorrer das decisões do Tribunal do Júri se o réu tiver sido absolvido, diante da norma constitucional que prevê a soberania dos veredictos. Uma vez absolvido, estará absolvido e ponto final, mesmo que esse réu tenha matado uma pessoa ou tentado matar, e não haja nenhuma dúvida quanto a isso.
Com a alegação de que o veredicto dos jurados é soberano, impediram o Ministério Público de requerer um novo julgamento sob o argumento de que a decisão dos jurados era injusta e estava em contradição evidente às provas do processo.
A Justiça é perfeita ou precisa de mecanismos de correção e revisão? Os jurados, por serem escolhidos na sociedade, não estão sujeitos a erros? Suas decisões devem ser mantidas sempre, mesmo que estejam em contradição com as provas?
É óbvio que não. Infelizmente, na vida, muita vez, é preciso demonstrar o óbvio.
Os órgãos de imprensa publicam quaisquer textos ou notícias sem passar por um revisor ou editor? A indústria automobilística coloca seus carros à venda sem passar por controle de qualidade? A indústria farmacêutica pode vender seus medicamentos sem antes testá-los? É claro que não. E por quais razões esses cuidados? Para que o resultado seja o melhor possível, para que erros graves não ocorram ou possam ser corrigidos.
Afinal, sempre que se realiza um serviço importante ou bens relevantes estão em situação de risco é preciso tomar extremo cuidado para que não pereçam. Esse cuidado exige obrigatoriamente a fixação de protocolos definidos, a partir da experiência acumulada, para evitar erros, ao menos, erros graves. Isso implica na criação de mecanismos de revisão ou substituição, se necessário.
O duplo grau de jurisdição, de que muitos ouvem falar, mas não sabem bem do que se trata, nada mais é que um sistema de revisão das decisões no sistema de Justiça. Um sistema de controle de qualidade. O juiz julga, mas suas decisões estão sujeitas a revisão de outro juiz (em regra, mais experiente) ou de um colegiado de juízes (as turmas dos tribunais).
Claro, nada garante que o juiz revisor ou a turma de juízes não possam errar. Afinal, a perfeição é um objetivo almejado, mas nem sempre alcançado.
Na eterna busca por decisões justas e tecnicamente perfeitas, o sistema de Justiça e o Direito foram criando inúmeros protocolos, inúmeros procedimentos a serem observados para que o objetivo ideal seja alcançado. Claro, o melhor ou pior desempenho sempre dependerá, em parte, dos profissionais envolvidos.
Bons juízes, bons promotores, bons advogados, asseguram uma Justiça de qualidade superior. Maus profissionais sempre irão comprometer o resultado do processo, as chances de injustiça crescem assombrosamente.
Na tentativa de assegurar padrão mínimo de qualidade, o sistema de Justiça criou o duplo grau de jurisdição, ou seja, a possibilidade de que um julgamento possa ser revisto sempre que tiver desobedecido os protocolos (nulidades processuais) ou sempre que a decisão for injusta, isto é, o mérito da decisão estiver em desacordo com as provas ou em desacordo com o direito e os valores sociais consagrados na Constituição Federal.
Estabelece o Código de Processo Penal faz muitas décadas:
Não é apenas o duplo grau de jurisdição que garante uma Justiça de qualidade superior, mas esse princípio é um elemento importante nessa busca pela decisão correta, que esteja de acordo com os fatos e com o Direito.
Existem inúmeras outras regras estabelecidas pela legislação visando a atingir esse objetivo de processo justo, chamado de devido processo legal. Entre outras exigências, é necessário haver imparcialidade do julgador (não estar impedido, nem ser suspeito); o contraditório e a ampla defesa, inclusive com assistência de defesa técnica (advogado); a possibilidade de produção e conhecimento das provas; e muitas outras exigências, inclusive a possibilidade de recorrer de decisões errôneas, injustas ou equivocadas, o que gera a necessidade do duplo grau de jurisdição. O Brasil, em matéria de processo criminal, chega a conhecer terceiro e quarto graus de jurisdição, representados por Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, que fundamentalmente foram criados para garantir a unidade de interpretação das leis e da Constituição; mas, nos casos criminais, foram transformados em novos graus de jurisdição através dos recursos especiais e extraordinários, sem considerar os Habeas Corpus.
Ao longo da história, a humanidade foi criando uma série de procedimentos visando a assegurar resultados melhores na vida em sociedade, isso se reflete nas diversas áreas do conhecimento, seja na saúde, nas engenharias, nas ciências exatas ou sociais, inclusive no Direito.
Não dá para querer ficar reinventando a roda, a cada nova geração; embora muitos, por vezes, tentem fazê-lo.
Pois bem, o que estão sustentando recentemente, sob a falácia da soberania dos veredictos, é o julgamento único pelo Tribunal do Júri, querem abolir o duplo grau de jurisdição nos julgamentos do tribunal popular, mas com um detalhe relevante, apenas quando o réu for absolvido. Se for condenado, aí tem a possibilidade de novo julgamento. Ou seja, o advogado pode recorrer das decisões dos jurados para obter um novo julgamento no caso de ter ocorrido uma injustiça; mas o promotor não poderá recorrer nessas mesmas circunstâncias.
Dois pesos, duas medidas, duas Justiças. Para os réus tudo, para as vítimas nada, pois os promotores, nos julgamentos do júri, falam em nome das vítimas.
Vão dizer que é melhor "um culpado solto que um inocente preso", um slogan de propaganda muito usado para assegurar privilégios aos acusados. Culpado solto e inocente preso são duas injustiças que cumpre corrigir obrigatoriamente, ou haverá apenas ficção de Justiça.
A defesa do acusado já leva inúmeras vantagens processuais em relação ao Ministério Público, vou citar apenas algumas delas, existem outras: Habeas Corpus (ação exclusiva da defesa contra prisões ilegais, a qual pode ser impetrada inúmeras vezes), ação revisional (outra ação exclusiva da defesa contra decisão final injusta ou ilegal), isso sem contar os inúmeros recursos permitidos ao longo do processo: recurso em sentido estrito, recurso de apelação, embargos infringentes, recursos especiais e extraordinários. Em suma, as possibilidades de revisão de decisão injusta para o réu e a defesa são inúmeras. Agora, para a vítima e para o Ministério Público não querem permitir nenhuma possibilidade, nem a apelação quando a decisão é manifestamente contrária às provas do processo. Ou seja, nem quando a decisão é aberrante, nem assim querem permitir à promotoria a possibilidade de um segundo julgamento. Não é o direito assegurado ao segundo julgamento, é apenas a possibilidade de segundo julgamento se presentes os pressupostos legais.
Em suma, se a decisão for a favor do réu, a favor do acusado, a favor da defesa, mesmo que seja um homicida, mesmo que seja um assassino confesso, mesmo que seja um homem que tenha matado uma mulher indefesa, nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, essa decisão não será revista, nunca.
Foi isso que a 1ª Turma do STF decidiu no processo em que o marido tentou matar a mulher, com diversos golpes de faca, mas foi absolvido pelos jurados, numa decisão absolutamente contrária às provas do processo.
Esse recurso de apelação pelo Ministério Público é permitido pela legislação brasileira faz décadas, pois, está previsto num artigo do Código de Processo Penal, cuja redação data de 1948, mas estão querendo mudar as regras do jogo.
Se fosse permitido fazer uma analogia com as competições esportivas, diríamos que na decisão do campeonato o Ministério Público teria direito de fazer um único arremesso em direção à cesta ou chutar um única vez em direção ao gol, só uma oportunidade, um júri; já para o acusado e seu defensor (advogado) seriam permitidas diversas oportunidades: o júri, a apelação, o segundo júri, o recurso especial, o recurso extraordinário, a revisão; isso sem falar nos Habeas Corpus e outros recursos. A desproporção é evidente e fora de qualquer razoabilidade.
Aprendemos em Filosofia do Direito que um dos critérios de justiça é o princípio da igualdade. Se a solução do problema é igual para todos, ela é considerada justa. É óbvio que esse não é o único critério e que há casos em que é preciso tratar de forma desigual, mas as desigualdades precisam ser justificadas pelos fatos, pelas circunstâncias, e serem razoáveis.
No caso do recurso de apelação, nos processos julgados erroneamente pelos jurados, não há nenhum motivo que justifique o tratamento desigual entre as partes no que tange à possibilidade de um segundo julgamento. Decisão injusta precisa ser corrigida, revista, refeita. E o sistema jurídico sempre permitiu isso. Não há motivo para retroceder nesse ponto.
Não há violação da soberania dos veredictos porque o segundo julgamento também é realizado pelo Tribunal do Júri (CPP, artigo 593 § 3º), haverá um segundo veredicto que se sobrepõe, substitui ao primeiro. Quando o 2º Grau julga procedente à apelação do Ministério Público contra o julgamento dos jurados, o tribunal não condena o réu que fora absolvido injustamente; o tribunal apenas anula o julgamento injusto e manda fazer de novo: determina a realização de novo júri. Assim, preserva-se plenamente a soberania dos veredictos.
Estabelece o artigo 593 do Código de Processo Penal, no seu:
"3º. Se a apelação se fundar no nº III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação". (Incluído pela Lei nº 263, de 23.2.1948).
Isso quer dizer que se o erro for repetido ele se tornará incorrigível, pois, "não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação" (§ 3º do artigo593 do CPP); mas, ao menos, será possível tentar corrigir o erro. Desistir de fazê-lo antecipadamente, é uma péssima solução, um péssimo exemplo, e transmite a sociedade a impressão de que matar outra pessoa pode não ser proibido.
Cumpre registrar, ainda, que a recente decisão do Supremo Tribunal proibindo a utilização da tese da legítima defesa da honra, nos julgamentos do tribunal popular, não resolve esse problema conforme demonstrado por Valderez Deusdedit Abbud, no artigo "Supremo Tribunal Federal, Feminicídio e legítima defesa da honra" [3]. Aliás, é da essência do sistema jurídico: todo direito precisa de uma garantia, um instrumento processual que assegure sua eficácia, do contrário, não terá como ser exigido.
Observo, também, que a própria 1ª Turma tinha decisão anterior em sentido contrário:
"Ressalte-se, portanto, que essa possibilidade não é incompatível com a Constituição Federal, pois não conflita com o princípio constitucional da soberania dos veredictos, uma vez que a nova decisão também será dada, obrigatoriamente, pelo Tribunal do Júri, em que pese, por um novo Conselho de Sentença" (Alexandre de Moraes, RHC 170.559-MT [4]).
Esperemos, pois, que em julgamento pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, com a participação de todos os ministros, seja corrigida essa grave distorção do sistema processual penal brasileiro provocada no julgamento da 1ª Turma. Afinal, "a soberania do Tribunal do Júri não implica necessariamente um único Conselho de Sentença" (voto vencido do ministro Alexandre de Moraes, HC 178.777-MG).
[1] HC 178.777-MG, julgado em 29.09.2020, e acórdão publicado em 14/12/2020, Rel. Min. Marco Aurélio.
[2] Votos vencedores dos ministros Marco Aurélio (relator), Dias Toffoli e Rosa Weber. Votaram vencidos os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso.
[3] https://www.conjur.com.br/2021-mar-22/mp-debate-supremo-tribunal-federal-feminicidio-legitima-defesa-honra.
[4] Votos vencedores dos ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. Vencidos nesta ocasião os ministros Marco Aurélio e Rosa Weber.
ustiça aposentado, presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático e professor de Direito com mestrado em Processo Penal. Foi promotor do júri por uma década, tendo atuado no 1º Tribunal do Júri de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2021, 17h18
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