segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

 

Por falta de dolo, caminhoneiro que carregou drogas sem saber é absolvido

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Quando o magistrado constata que um fato não foi devidamente comprovado, deve ele suscitar a dúvida em favor do acusado. Além disso, a presunção de inocência é uma regra e precisa ser sempre seguida com rigor por quem julga. 
Homem foi preso com drogas, mas não ficou comprovado se ele sabia sobre a carga
Reprodução

O entendimento é da juíza Isadora Botti Bernaldo Montezano, da 1ª Vara de Osvaldo Cruz (SP). A magistrada absolveu um caminhoneiro acusado de tráfico de drogas. O homem foi pego transportando 514 tijolos de maconha. Entretanto, uma série de depoimentos e evidências colocaram dúvida sobre se ele sabia ou não da existência da droga. 

O réu afirma ter sido contratado para transferir uma carga de batatas, algo que foi corroborado por nota fiscal. O caminhão é registrado em nome de terceiro — uma pessoa jurídica, ao que indica a investigação —  e a droga estava em um fundo falso, encontrado por policiais durante averiguação. 

"O Ministério Público não demonstrou cabalmente que o réu tinha ciência de que transportava drogas. Assim, não sendo possível, no processo penal, a condenação com base apenas em indícios e suposições, impõe-se a absolvição", afirma a decisão. 

A magistrada também destacou que a prova de culpa repousa sobre a acusação. Assim, a inversão do ônus é incompatível com a presunção de inocência.

"No caso dos autos, exigir do réu a comprovação do modo em que saiu de casa, a realização de acompanhamento do carregamento do caminhão, a análise de toda a carroceria que aparentemente estava normal, entre outros, acaba impondo ao acusado a comprovação de sua inocência e revertendo a ordem jurídica", pontuou. 

"Deste modo", conclui, "a presunção de inocência deve ser vista como regra de julgamento, consubstanciada no in dubio pro reo e na atribuição do ônus da prova ao órgão acusador". 

Atuou no caso defendendo o caminhoneiro o advogado Juan Carlo de Siqueira

Processo 1500659-66.2020.8.26.0637

 

STF

Ministro determina realização de audiências de custódia para todos os casos de prisão no Estado do RJ

Por determinação do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), a Justiça do Estado do Rio de Janeiro deve realizar audiências de custódia para todas as modalidades prisionais, inclusive prisões temporárias, preventivas e definitivas, e não apenas para os casos de prisão em flagrante, no prazo de 24 horas da sua ocorrência. O ministro acolheu agravo regimental interposto pela Defensoria Pública do RJ e deferiu medida liminar na Reclamação (RCL) 29303, da qual é relator.

"Diante da plausibilidade jurídica do pedido nesta reclamação e da possibilidade de lesão irreparável a direito fundamental das pessoas levadas ao cárcere", o ministro Fachin reconsiderou decisão anterior que negava seguimento à ação e deferiu a medida liminar.

Estado de coisas inconstitucional

Na ação, a Defensoria Pública aponta que o Tribunal de Justiça do Rio, ao permitir a realização de audiências de custódia apenas para os casos de prisão em flagrante, estaria descumprindo decisão do STF tomada no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Nesse julgamento, a Corte caracterizou o sistema penitenciário nacional como "estado de coisas inconstitucional". Com isso, o STF determinou a liberação de verbas então contingenciadas para o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e a obrigação de juízes e tribunais realizarem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.

Para o relator, a medida não configura mera formalidade burocrática, mas "relevante ato processual instrumental à tutela de direitos fundamentais", necessário para a pronta aferição de circunstâncias pessoais do preso, como gravidez, doenças graves, idade avançada, imprescindibilidade aos cuidados de terceiros. Assim, por considerar inadequado o ato do TJ-RJ que limitou a realização das audiências de custódia apenas para os casos de prisão em flagrante e também considerando a recente regulamentação do tema na legislação processual penal, o ministro Edson Fachin deferiu, cautelarmente, a extensão da obrigatoriedade de audiência de custódia em relação às demais modalidades de prisão.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 

TRIBUNA DA DEFENSORIA

Reclamação nº 29.303 e audiências de custódia: todos os presos importam!

Por  e 


O processo penal humanitário segue as diretrizes constitucionais e convencionais, buscando sempre a máxima eficácia dos direitos humanos. A audiência de custódia, importante instrumento de combate às prisões ilegais, está prevista no artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e no artigo 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ambos ratificados pelo Brasil em 1992. Em que pese a incorporação destes tratados internacionais ao Direito interno, suas normas não eram aplicadas na atividade jurisdicional [1], o que se insere em uma longeva tradição de descumprimento de compromissos internacionalmente assumidos. Não por outra razão que se tem a origem do ditado popular "para inglês ver" [2]. Somente em 2015, por intermédio da Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça, esse importante direito foi implementando no sistema de Justiça brasileiro, e atualmente encontra-se regulamentado também no CPP, por força da Lei 13.964/19.

Todavia, afirmamos que alguns Estados brasileiros ainda não estão cumprindo integralmente o compromisso internacionalmente assumido pelo Estado, vez que as audiências de custódia apenas são realizadas em caso de prisão em flagrante. Essa limitação não tem razão de ser, afinal da mera leitura dos artigo 7.5 da CADH e artigo 9.3 do PIDCP conclui-se que tais normas tutelam todos os presos e não apenas aqueles detidos em flagrante.

O anseio pela efetivação das audiências de custódia a todos os presos ensejou a impetração da Reclamação Constitucional nº 29.303, cuja continuação do julgamento está prevista para esta quarta-feira (9/12). Esperamos que o STF determine a realização das custódias também para as prisões preventivas, temporárias e definitivas, afinal essa previsão encontra guarida nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, de forma que é obrigação do Estado efetivar os direitos ali consagradas.

Em que pese o fato de a Reclamação Constitucional nº 29.303 ter sido ajuizada para questionar a Resolução do TJ-RJ (artigo 2º, Resolução TJ-RJ nº 29/2015), impede pontuar que a restrição das audiências de custódia às prisões em flagrante não é um fenômeno tipicamente fluminense, podendo ser observado no cotidiano dos Poderes Judiciários de Pernambuco e do Ceará, o que somente engradece a importância do julgamento dessa ação constitucional.

A audiência de custódia consiste no direito que todo preso tem, sem demora, de ser entrevistado por um juiz, objetivando que: a) se verifique a eventual ocorrência de maus tratos e (ou) tortura; b) se analise a (i)legalidade; e c) (des)necessidade de sua prisão.

Sobre o objetivo de combater tortura e maus tratos, impende ressaltar que não pode mais vigorar um verdadeiro estado de negação com relação à violência policial, e, nesse ponto, salutar a atuação do STF ao conceder liminar (julgamento virtual concluído em 17/8/2020) nos autos da ADPF nº 635 (conhecida como "ADPF das Favelas pela Vida"), e decidir, entre outros pontos, pela proibição de operações policiais nas favelas do Estado do Rio de Janeiro, mais especificadamente em locais de escolas, creches, hospitais e postos de saúde, exceto em situações singulares, nas quais exige-se a fundamentação por escrito das circunstâncias autorizadoras da excepcionalidade e ainda comunicação no prazo de até vinte e quatro horas ao representante do Ministério Público. A ADPF nº 635 tem um objetivo em comum com a Reclamação Constitucional nº 29.303, qual seja, contribuir para o controle e diminuição da violência policial, que é uma consequência imediata da formação de um servidor público a partir do ethos do guerreiro [3]. Será que que não há possibilidade de tortura ou maus-tratos por ocasião do cumprimento de um mandando de prisão preventiva, temporária ou definitiva?

No que tange ao outro objetivo da audiência de custódia, consistente na análise da legalidade/necessidade da prisão, também lançamos alguns questionamentos: será que é legal uma prisão cujo mandado é cumprido quando o delito já se encontra prescrito? E nos casos em que o réu encontrava-se em lugar incerto e não sabido, e a prisão preventiva foi decretada juntamente com a suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 366 do CPP, questiona-se: após a localização do acusado, será que a sua liberdade não poderia ser prontamente restabelecida na audiência de custódia, após o fornecimento de seu endereço completo ou seria realmente necessário aguardar encarcerado vários dias enquanto a defesa técnica faz o requerimento, o promotor de Justiça apresenta parecer e o juiz decide? Essas indagações são apenas exemplificativas, mas ilustram bem a necessidade da realização de custódia para todos os presos.

Sem a implementação da audiência de custódia para todas as modalidades de prisão, os presos preventivos ou temporários não terão oportunidade de ficar "frente a frente" com o juiz para exercer o Direito Constitucional ao contraditório antes da ocorrência da primeira ou próxima audiência de instrução e julgamento que, na imensa maioria das vezes, ocorre meses após a prisão. Pensamos que isso configura um insofismável cerceamento de defesa.

Nessas situações, como pondera Caio Paiva:

"A finalidade da realização do ato será predominantemente prospectiva, voltada para o futuro, para verificar ou reavaliar a necessidade da prisão, notadamente os fundamentos que ensejaram a sua decretação" [4].

Em uma perspectiva de um Direito Processual Penal humanitário, a audiência de custódia goza de indiscutível importância, pois, além de servir como instrumento hábil para diminuir a quantidade de maus-tratos/ torturas sofridas pelos presos, evita prisões ilegais, o que não pode ser desconsiderado diante da reconhecida falência do sistema prisional materializada com o estado de coisas inconstitucional. Ademais, a audiência de custódia pode ser compreendida como um mecanismo para frear o processo de banalização das prisões preventivas e reduzir consideravelmente a (enorme) quantidade de presos provisórios no Brasil, o que implica ainda uma redução considerável nos gastos do Estado para manutenção do sistema penitenciário.

Ressaltamos ainda que a audiência de custódia não extermina a possibilidade de manutenção da prisão preventiva, temporária ou definitiva, mas apenas serve como filtro moderador para evitar prisões desnecessárias ou ilegais. Ou será que essa pecha é exclusiva das prisões em flagrantes?!

Outrossim, o STF decidiu pela constitucionalidade das audiências de custódia durante o julgamento da Ação Declaratória de Preceito Fundamental nº 347 e também da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.240, e, nesses julgados, em momento algum se restringiu a audiência de custódia à prisão em flagrante. 

Nesse momento, ratificamos o que já foi dito outrora por um dos autores deste texto:

"Diante desse mosaico normativo, é perfeitamente possível assinalar que a audiência de custódia, que possui a natureza de direito subjetivo da pessoa privada de liberdade, não pode ser limitada em razão do título prisional" [5].

Ora, não se pode pestanejar na assertiva, é preciso bradar com todos os pulmões: todos os presos importam!

A questão fere ainda o prisma constitucional da isonomia porque temos, injustificadamente, tratamento díspar entre, de um lado, os presos em situação de suposta flagrância e, de outra banda, os presos preventivos, temporários e definitivos. Colacionamos as palavras de Lenio Streck:

"Segundo o princípio da consideração igualitária, a comunidade política deve considerar de maneira equivalente a vida e os direitos de todos que estão sob a sua esfera de ação. A democracia, então, é um sistema sujeito a condições, por intermédio das quais se preserva a igualdade de status dos cidadãos" [6].

Por fim, entendemos que a restrição das audiências de custódia à prisão em flagrante viola a regra pro homine, que deve ser a baliza interpretativa das normas convencionais que versam sobre direitos humanos.

Quando o assunto é audiência de custódia, podemos dizer que tudo foi alcançado com muita luta. Primeiramente, as custódias foram efetivamente implementadas em nosso ordenamento jurídico interno em 2015, ou seja, após quase 23 anos das obrigações assumidas pelo Brasil ao se tornar signatário do CADH e do PIDCP. Nossa peleja agora, nos ditames da Reclamação Constitucional nº 29.303, é a extensão das audiências de custódia para os casos de prisão preventiva, temporária e definitiva. Destarte, acreditamos que o STF, pelas razões acima elencadas, julgará procedente essa ação constitucional, de forma a alinhar o processo penal brasileiro em uma perspectiva constitucional e convencional e também como forma de reafirmar o compromisso do Brasil com a efetivação dos direitos humanos. Não se pode esperar algo diferente de quem possui imprescindível papel na construção da democracia brasileira, tal como apontado por Lêda Boechat Rodrigues:

"(...) A democracia brasileira teria funcionado de modo ainda mais defeituoso sem o símbolo do Supremo Tribunal Federal e de sua capacidade de encarnar, em determinados momentos, o que existe de melhor na consciência nacional" [7].

Mais um desafio foi colocado diante para a Suprema Corte, os direitos fundamentais não esperam outra solução que não o fim da indevida restrição das audiências de custódia. Resta esperar agora como a história será escrita.

 


[1] O Brasil foi denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela ausência da implementação da audiência de custódia, tendo sido inclusive condenado, em março de 2004, por não ter assegurado o direito previsto convencionalmente ao preso Jailton Neri da Fonseca. Para a leitura completa da sentença, vide http://www.cidh.org/annualrep/2004sp/Brasil.11634.htm.

[2] "A Lei de 7 de novembro de 1831 foi a primeira lei nacional a proibir o tráfico de escravos. Conhecida vulgarmente como 'lei para inglês ver', por estar associada à pressão inglesa e também ao extenso contrabando das décadas seguintes, ela tem sido largamente pesquisada desde o início dos anos 2000. A legislação não só teve a intenção de enganar os ingleses, como foi pivô de vários embates políticos e jurídicos, e esteve no centro do debate sobre a legalidade da escravidão brasileira no século XIX". (MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti & GRINBERG, Keila. Lei de 1831. In: SCHWARCZ, Lilia M. & GOMES, Flávio (organizadores). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 285..

[3] "O discurso do guerreiro sobe, sorrateiramente, os fóruns judiciais. O ethos guerreiro, conceito desenvolvido por Norbert Elias ao analisar a sociedade alemã pré-nazismo, mas também perfeitamente adequado a outras sociedades ocidentais belicistas da época, como já eram (e são) os Estados Unidos, terminou sendo importado por aqui da matriz estadunidense durante a ditadura civil-militar, sendo introjetado enquanto habitus dos membros de nossas forças policiais". (SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano. A guerra ao crime e os crimes da guerra. Uma crítica descolonial às políticas beligerantes no sistema de Justiça criminal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 111).

[4] PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.85.

[5] NEWTON, Eduardo Januário. A Reclamação Constitucional nº29.303 merece ser decidida. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-09/eduardo-newton-reclamacao-constitucional-29303-merece-decidida.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Audiência de custódia para todos os presos é um direito constitucional. Disponível em:nhttps://www.conjur.com.br/2019-mar-11/streck-audiencia-custodia-todos-presos-direito-constitucional.

[7] RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I: 1891-1898 (defesa das liberdades civis). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 6.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

 

DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL

STJ vai pacificar divergência sobre retroação da lei "anticrime" em estelionato

Por 

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que é composta pelos ministros das duas turmas que julgam Direito Penal, terá a oportunidade de pacificar a questão sobre até que ponto o chamado pacote "anticrime" — que, entre outras coisas, promoveu mudanças no crime de estelionato — pode retroagir.

Ministro Nefi Cordeiro propôs afetação do HC à 3ª Seção para dirimir divergência
Rafael Luz/STJ

Em julgamento nesta segunda-feira (7/12), a 6ª Turma decidiu afetar um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo para que a 3ª Seção pacifique a matéria. Conforme publicou a ConJur, a mudança legislativa abriu divergência entre o colegiado e a 5ª Turma.

A Lei 13.964/2020 entrou em vigor em 24 de janeiro e transformou a ação referente ao crime do artigo 171 do Código Penal de pública incondicionada para pública condicionada à representação — com algumas exceções descritas nos incisos do parágrafo 5º (conduta praticada contra administração pública, direta ou indireta; contra criança ou adolescente; e contra maior de 70 anos ou incapaz).

Para a 5ª Turma, a exigência de representação da vítima só retroage até o momento da denúncia, independentemente do momento da prática da infração penal. A exigência da representação seria condição de procedibilidade da representação e não de prosseguibilidade da ação penal.

Esse entendimento é o mesmo apontado na única decisão colegiada tomada pelo Supremo Tribunal Federal até agora. Em outubro, a 1ª Turma do STF entendeu que é inaplicável a inovação legislativa em todas as ações penais já iniciadas antes da entrada em vigor do pacote “anticrime”.

No STF, com voto do minsitro Alexandre de Moraes, 1ª Turma adotou posição parecida com a da 5ª Turma do STJ
Nelson Jr./SCO/STF

Para a 6ª Turma, a norma retroage até o trânsito em julgado da ação por estelionato, mas não leva à imediata extinção da punibilidade. O colegiado entendeu que, na hipótese, a vítima deveria ser intimada para manifestar o interesse na continuação da persecução penal, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência.

No caso afetado à 3ª Seção, a Defensoria Pública defende uma terceira linha, mais benéfica ao réu do que a posição da 6ª Turma. A mudança legislativa ocorreu após o julgamento da apelação que manteve a condenação por estelionato. O processo não teve representação da vítima.

Para a Defensoria Pública, não há condição de procedibilidade da ação penal, devendo ser reconhecida a decadência, nos termos do artigo 107, inciso IV, do Código Penal.

HC 610.201

 

Sanção disciplinar a preso não depende de trânsito em julgado, diz STF

Consultor Jurídico - Por 

Quando alguém já preso é acusado de crime doloso, não há motivos para condicionar a aplicação de falta grave ao trânsito em julgado da condenação oriunda do juízo criminal. Basta a sentença condenatória, desde que observados o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

Voto do ministro Fachin foi seguido à unanimidade pelo Plenário virtual do STF
Carlos Humberto/SCO/STF

Essa foi a conclusão do Plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, ao analisar o caso de um homem no Rio Grande do Sul que, no curso da execução da pena, foi preso em flagrante por tentativa de roubo. As instâncias ordinárias condicionaram a apuração da falta grave em processo administrativo disciplinar ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

A Lei de Execução Penal define a prática de crime doloso como falta grave em seu artigo 52. Sua ocorrência sujeita o apenado ao regime disciplinar diferenciado, com normas mais estritas tais como recolhimento em cela individual e também restrição para banho de sol e visitação.

A prática do fato definido como crime doloso ou falta grave também leva à regressão do regime de cumprimento de pena, ao semiaberto ou fechado, de acordo com o artigo 118 da mesma lei.

Ao analisar o caso, o ministro Luiz Edson Fachin apontou que essas normas regem esfera distinta e independente do processo de conhecimento, de modo que não há incompatibilidade entre estes e a norma do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Condicionar falta grave ao trânsito em julgado faria norma da execução letra morta, disse o ministro Alexandre de Moraes
Carlos Moura/SCO/STF

Assim, ainda que o próprio Supremo tenha afastado a execução da pena antes do trânsito em julgado, não há razão para levar essa lógica ao reconhecimento de falta grave consistente na prática de crime doloso.

"A independência entre as esferas apuratórias e sancionatórias não é absoluta: há pontos de contato entre elas. Por outro lado, a prolação de sentença criminal pressupõe o término de uma fase instrutória em que foram franqueadas ao sentenciado/acusado todas as garantias decorrentes do contraditório e da ampla defesa, ou seja, a observância de todas as exigências aplicáveis à apuração de falta grave", apontou o relator.

Para o ministro Alexandre de Moraes, isso é possível porque a reprimenda decorrente do reconhecimento da falta grave não tem natureza de pena criminal. Além disso, obrigar o juízo da execução a aguardar o trânsito em julgado da sentença criminal levaria ao esvaziamento dos propósitos da lei.

"A própria lei faz referência à 'prática' de crime doloso e não à 'condenação' por crime doloso”, concordou o ministro Ricardo Lewandowski. A sanção, portanto, tem cunho administrativo, uma vez que são aplicadas em decorrência do exercício do controle estatal sobre pessoa já definitivamente condenada.

A tese aprovada pelo Plenário virtual foi: o reconhecimento de falta grave consistente na prática de fato definido como crime doloso no curso da execução penal dispensa o trânsito em julgado da condenação criminal no juízo do conhecimento, desde que a apuração do ilícito disciplinar ocorra com observância do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, podendo a instrução em sede executiva ser suprida por sentença criminal condenatória que verse sobre a materialidade, a autoria e as circunstâncias do crime correspondente à falta grave.

Clique aqui para ler o voto do ministro Luiz Edson Fachin
Clique aqui para ler o voto do ministro Alexandre de Moraes
Clique aqui para ler o voto do ministro Ricardo Lewandowski
RE 776.823

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

STJ pugna, liminarmente, pela suspensão do andamento da ação penal, para análise do possível ANPP.

 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

HABEAS CORPUS Nº 597632 - SP (2020/0174943-0) 

RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ 

IMPETRANTE : CARLOS GIANFARDONI ADVOGADO : CARLOS GIANFARDONI 

IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO 

PACIENTE : ANA CAROLINA MONTEIRO GALIASSI 

INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO 

DECISÃO ANA CAROLINA MONTEIRO GALIASSI alega sofrer coação ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Apelação Criminal n. 0009770-16.2018.8.26.0348). Nesta Corte, sustenta a defesa, em síntese, que a ré preenche todos os requisitos para a recepção do acordo de não persecução penal pelo órgão ministerial. Alude, ainda, à retroatividade do disposto no art. 28-A, inserido ao Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/2019 (?Pacote anticrime?), por se tratar de norma penal mais benéfica. Pugna, liminarmente, pela suspensão do andamento da ação penal, até o julgamento definitivo do habeas corpus. 

No mérito, requer se oportunize à paciente a confissão e, em seguida, se disponibilize ao membro do Ministério Público estadual a oferta do acordo de não persecução penal à acusada. Manifestou-se o Parquet Federal pela concessão da ordem (fls. 47-54). Decido. De início, saliento que este mandamus, juntamente com outros 345, foi protocolado no Superior Tribunal de Justiça durante as férias coletivas de julho e distribuído à Presidência. No entanto, assim como os demais, foi encaminhado a este relator, no dia 3/8/2020, sem a observância da providência indicada no art. 21, XIII, "c" do Regimento Interno do STJ. Expõem os autos que a paciente foi condenada pela prática do crime previsto no art. 155, § 4º, II, do Código Penal, ao cumprimento de 2 anos de reclusão, inicialmente em regime aberto, e ao pagamento de multa. Pelo Juízo da Comarca de Mauá, SP, a pena privativa de liberdade foi substituída por duas restritivas de direito, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Em sede de apelação, a 1ª Câmara de Direito Criminal da Corte paulista permutou a prestação pecuniária por 10 dias-multa, no valor mínimo. 

Em consulta ao sítio eletrônico do Tribunal a quo, verificou o gabinete que a sentença não transitou em julgado. Nada obstante, constatou-se que, no dia 6/11/2020 (DJe 17/11/2020), o Presidente da Seção Criminal não admitiu o recurso extraordinário defensivo. Dessarte, muito embora o habeas corpus esteja pronto para julgamento, noto a presença do risco ao perecimento do direito da acusada, diante da iminência de execução do julgado. Confiram-se estes excertos do parecer da Subprocuradoria da República, que opinou pela concessão da ordem à ré (fls. 52-54, grifei).

Na presente hipótese, o Tribunal a quo, em sede de apelação defensiva, indeferiu o pleito da defesa de baixa do processo à origem para análise da viabilidade do Acordo de não Persecução Penal, por entender que ele não poderia ser deferido na fase de apelação e que, ainda que fosse possível, faltar-lhe-ia requisito indispensável, relacionado à ausência de confissão formal e circunstanciada por parte da ré (e-STJ fl. 23). 

Contudo, o acórdão incorreu em flagrante ilegalidade, pois sendo norma de natureza mista, o art. 28-A do CPP admite aplicação retroativa, sendo que os requisitos para a sua aplicação, em especial a quantidade de pena aplicada ao crime de furto qualificado, mostram-se, ao menos em tese, presentes no caso concreto. Cumpre esclarecer, ainda, que a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (área Criminal) recentemente editou o enunciado número 98, o qual prevê a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução criminal a qualquer tempo, desde que ocorra antes do trânsito em julgado da ação criminal. 

Vejamos: Enunciado nº 98. É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A da Lei n° 13.964/19, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei 13964/2019, conforme precedentes. (Alterado na 184ª Sessão Virtual de Coordenação, de 09/06/2020).

 Quanto ao óbice relacionado à confissão formal e qualificada, embora não tenha sido constatada durante a instrução criminal, poderá ser sanado no caso de eventual formalização do acordo, a cargo do Ministério Público atuante. Por tais razões, opina a Procuradoria-Geral da República pelo não conhecimento do habeas corpus, concedendo-se a ordem de ofício, a fim de que os autos sejam baixados à origem para que o Membro do Ministério Público oficiante se manifeste acerca da possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A do CPP. À vista da plausibilidade dos arrazoados defensivos, dos termos do parecer ministerial e do risco efetivo ao perecimento do direito da paciente, defiro a liminar, para determinar a suspensão imediata da Ação Penal n. 0009770- 16.2018.8.26.0348, até o julgamento definitivo deste writ. Comunique-se a decisão, com urgência, ao Magistrado de primeiro grau e à autoridade apontada como coatora. Em seguida, voltem-me os autos conclusos. Brasília (DF), 02 de dezembro de 2020. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ Relator

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Senado aprova alteração na definição do crime de denunciação caluniosa

O Plenário do Senado aprovou nesta quarta-feira (2), por votação simbólica, projeto que altera a descrição, contida no Código Penal, do crime cometido por quem faz denúncias falsas contra pessoas sabidamente inocentes, a chamada denunciação caluniosa. O texto prevê punição para acusações falsas de infrações disciplinares e atos ímprobos e torna a definição do crime mais objetiva. Esse projeto de lei (PL 2.810/2020) segue para a sanção do presidente da República.

A denunciação caluniosa é um dos crimes contra a administração da Justiça. A pena prevista é de reclusão, de 2 a 8 anos, e multa. O projeto retira do Código Penal a punição por denúncias que levem à “investigação administrativa”, expressão considerada genérica e subjetiva. O crime será configurado, de acordo com a proposta, quando denúncias falsas levem efetivamente à instauração de processos, ações ou investigações policiais contra quem foi injustamente denunciado.

“Não é mais todo e qualquer expediente administrativo, como uma notícia de fato ou sindicância, que pode ser enquadrado como ‘investigação’ para fins de caracterização da denunciação caluniosa. Agora será necessário que o procedimento, o processo, a ação instaurada em decorrência da denúncia falsa tenha caráter sancionador e acusatório, e não meramente investigativo”, esclareceu em seu parecer o relator da matéria, Angelo Coronel (PSD-BA).

O senador recomendou a aprovação do texto como veio da Câmara. Os deputados federais compatibilizaram o Código Penal com a Lei de Abuso de Autoridade para que denúncias falsas de infrações éticas e disciplinares também possam ser consideradas crime de denunciação caluniosa se resultarem em processos.

Para o relator, o projeto aperfeiçoa o sistema penal contra a crescente onda de denúncias falsas e perseguições por parte da administração pública. Ele avalia que a nova lei é necessária para “restaurar um padrão ético fundado na boa-fé”.

— O crime de denunciação caluniosa reflete o mais alto grau de um fenômeno cada vez mais presente em nossa sociedade: a mentira como instrumento de pressão, de política corrompida e até mesmo de práticas negociais descabidas. Se temos sofrido com as chamadas fake news contaminando o ambiente público, é ainda mais perigosa a conduta de quem sabe da inocência alheia e promove procedimento acusatório baseado em falsidades — ressaltou Angelo Coronel.