MP-SC não pediu
absolvição de empresário com argumento de "estupro culposo"
3 de novembro de 2020, 21h43
Por Sérgio Rodas
O Ministério Público
de Santa Catarina afirmou, nesta terça-feira (3/11), que não requereu a
absolvição do empresário André de Camargo Aranha com base no argumento de que
ele praticou “estupro culposo” contra a influencer Mariana
Ferrer. Na alegações finais do processo, a promotoria também não usa o termo. O
pedido para que Aranha seja inocentado é fundamentado na falta de provas sobre
eventual dolo em sua conduta. Sem isso, não há o crime de estupro de
vulnerável (artigo 217-A, parágrafo 1º, do Código Penal).
A 3ª Vara Criminal de
Florianópolis absolveu Aranha, com
base no princípio in dubio pro reo, por entender que a acusação de
estupro só foi baseada nos relatos de Mariana e sua mãe. O juiz Rudson Marcos
afirmou que não ficou provado que a influencer estava
alcoolizada ou sob efeito de droga a ponto de ser considerada vulnerável e não
consentir com o ato sexual por não ter capacidade de oferecer resistência.
O site The
Intercept Brasil afirmou, em reportagem publicada nesta terça, que o
promotor do caso, Thiago Carriço de Oliveira, pediu, e o juiz aceitou, a
absolvição de Aranha pelo fato de ele ter cometido “estupro culposo”.
“Segundo o promotor
responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual,
que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo
portanto ‘intenção’ de estuprar. Por isso, o juiz aceitou a argumentação de que
ele cometeu ‘estupro culposo’, um ‘crime’ não previsto por lei. Como ninguém
pode ser condenado por um crime que não existe, Aranha foi absolvido”, disse o
texto do Intercept.
O MP-SC afirmou, em
nota, que “não é verdadeira a informação de que o promotor de Justiça
manifestou-se pela absolvição de réu por ter cometido estupro culposo, tipo
penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro”.
De acordo com o
MP-SC, não ficou demonstrado que houve “relação sexual sem que uma das partes
tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer
resistência [Mariana Ferrer], ou, ainda, que a outra parte [André Aranha]
tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de
crime”.
“Portanto, a
manifestação pela absolvição do acusado por parte do promotor de Justiça não
foi fundamentada na tese de ‘estupro culposo’, até porque tal tipo penal
inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na
Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável”,
destacou o MP-SC.
Expressão ausente
Nas alegações finais
do processo, oferecidas em 10 de agosto, o promotor Thiago Oliveira também não
pede a absolvição do empresário com base na alegação de que ele teria praticado
“estupro culposo”, e sim com o fundamentado de que não ficou provado que ele
agiu com dolo. Sem isso, não há crime, analisou.
O integrante do MP-SC
disse que Mariana Ferrer, logo antes do ato, “estava com vestes ajeitadas, de
pé, conseguia caminhar sem socorro, não apresentava troca de palavras e,
portanto, não aparentava estar incapaz de resistir ao interesse do acusado”.
Dessa maneira,
ressaltou Oliveira, não há indicação de que Aranha agiu com dolo — isto é,
com consciência de eventual vulnerabilidade da influencer.
Assim, destacou, não é razoável presumir que o empresário soubesse ou devesse
saber que a mulher não desejava a relação sexual.
Nesse cenário,
segundo o membro do MP-SC, deve ser aplicado o erro de tipo essencial (artigo
20 do Código Penal). Em tal situação, há a exclusão do dolo do agente, embora
exista a possibilidade de condenação por conduta culposa. No entanto, o estupro
de vulnerável só admite a modalidade dolosa, e não a culposa, apontou Oliveira.
Portanto, se o suspeito não agiu com dolo, não há crime.
Se houve recusa de
Mariana, foi após a relação, quando ela disse, em mensagem enviada para uma
amiga, que não queria “esse boy” ou quando, já em casa, disse não ter
consentido em praticar qualquer tipo de ato sexual, ponderou o promotor.
"Desse modo, não
obstante haja a comprovação da ocorrência de conjunção carnal e de atos
libidinosos, não há, nos autos, qualquer comprovação de que o acusado tinha
conhecimento ou deu origem à suposta incapacidade da vítima para resistir a sua
investida”.
Relatos de
testemunhas
O juiz Rudson Marcos
também não fundamentou a absolvição de André Aranha na tese de que ele cometeu
“estupro culposo”.
Na sentença, o
juiz afirmou que, para a
configuração do estupro de vulnerável, é necessário que a vítima não tenha
condições físicas ou psicológicas de oferecer resistência à investida sexual e
que haja dolo na conduta do agressor e ciência da vulnerabilidade do alvo.
O julgador mencionou
trecho do livro Direito Penal esquematizado, volume 3: parte especial,
artigos 213 ao 359-H (Método), de Cleber Masson. Na passagem, Masson
diz que a vulnerabilidade tem natureza objetiva. Dessa maneira, a pessoa é ou
não vulnerável se reunir ou não as peculiaridades indicadas pelo caput (ser
menor de 14 anos) ou pelo parágrafo 1º ("alguém que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato,
ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência") do
artigo 217-A do Código Penal.
Entretanto, Masson
deixa claro que nada impede a incidência, quanto a estupro de vulnerável, do
erro do tipo, descrito no artigo 20, caput, do Código Penal. O dispositivo tem
a seguinte redação: "O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de
crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em
lei". Para o especialista, o erro do tipo não se confunde com a existência
ou não da vulnerabilidade da vítima. "Como não foi prevista a modalidade
culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico", diz Masson na
passagem citada pelo juiz.
Rudson Marcos apontou
que não ficou provado que Mariana Ferrer estava alcoolizada ou sob efeito de
droga a ponto de ser considerada vulnerável e não consentir com o ato sexual
por não ter capacidade de oferecer resistência.
Marcos destacou que
os exames de alcoolemia e toxicológico apresentaram resultado negativo. O juiz
também citou que a única testemunha que corroborou a versão de Mariana foi a
sua mãe.
"Em que pesem
tais relatos, fato é que as testemunhas que estavam na companhia da vítima
afirmaram que esta estava consciente durante o período que tiveram contato com
a mesma, um 'pouco alegre', mas nada demais, nada que demonstrasse estado de
inconsciência ou incapacidade, nem mesmo foram alertados pela ofendida de que
havia sido violentada", avaliou o julgador.
Os relatos de Mariana
e sua mãe não permitem concluir que Aranha praticou estupro, avaliou o juiz. Em
sua visão, não há outras provas que embasem a versão de que ela não tinha
capacidade para consentir com o ato sexual.
"Sendo assim, a
meu sentir, o relato da vítima não se reveste de suficiente segurança ou
verossimilhança para autorizar a condenação do acusado. Em que pese seja de
sabença que a jurisprudência pátria é dominante no sentido de validar os
relatos da vítima, como prova preponderante para embasar a condenação em
delitos contra a dignidade sexual, nos quais a prova oral deve receber validade
maior, constata-se também que dito testemunho precisa ser corroborado por
outros elementos de prova, o que não se constata nos autos em tela, pois a
versão da vítima deixa dúvidas que não lograram ser dirimidas", analisou
Marcos.
Como as provas são
conflitantes, não há como impor ao acusado a responsabilidade penal, pois
"melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente", declarou
o juiz ao inocentar Aranha com base no artigo 386, VII, do Código de Processo
Penal ("não existir prova suficiente para a condenação").
Leia a nota do MP-SC:
A 23ª Promotoria de
Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a
prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia
criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade.
Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível
a comprovação da prática de crime por parte do acusado.
Cabe ao Ministério
Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais,
requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no
processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso, a prova
dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o
necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou,
ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para
a configuração de crime.
Portanto, a
manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não
foi fundamentada na tese de "estupro culposo", até porque tal tipo penal
inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na
Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável.
O Ministério Público
também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que
não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito
envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a
importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais
competentes.
Salienta-se, ainda,
que o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao
longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não
consta do trecho publicizado do vídeo.
O MP-SC lamenta a
difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a
sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência
de um réu com base num tipo penal inexistente.
Sérgio Rodas é correspondente da
revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor
Jurídico, 3 de novembro de 2020, 21h43