Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette
Primeiros comentários à Lei 14.064/20 que introduz
qualificadora no crime de Maus - Tratos contra animais.
Autores: EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE, Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Ética e Direitos Fundamentais do Unisal e BIANCA CRISTINE PIRES DOS SANTOS CABETTE, Advogada, Pós – graduada em Direito Público e Pós – graduanda em Direito Civil e Processo Civil.
1-INTRODUÇÃO
O crime de maus –
tratos a animais, previsto no artigo 32 da Lei Ambiental (Lei 9.605/98) vinha
sendo objeto de muitas críticas devido à brandura das penas ali
previstas, que o classificavam, em qualquer caso, como infração de menor
potencial ofensivo.
Em atendimento a essa
reação crítica da sociedade diante da subestimação de certos atos crudelíssimos
perpetrados contra animais por pessoas aparentemente despidas de qualquer
sentimento de empatia ou piedade, o Congresso Nacional aprovou e o Presidente
da República sancionou a Lei 14.064/20 para criar uma forma qualificada dessa
infração penal, com previsão de pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos,
multa e proibição da guarda de animais.
Como de costume, um
caso rumoroso foi o estopim para a aprovação do texto. Conforme expõe Leitão
Júnior, a Lei 14.064/20 ganhou a denominação de “Lei Sansão”, tendo em vista o
episódio ocorrido em Confins – MG, no qual um cachorro da raça pitbull “teve as
patas traseiras decepadas”, gerando enorme “comoção em todo o Brasil”. [1]
Neste trabalho
proceder-se-á, mediante pesquisa bibliográfica, a uma análise inicial crítica
do novo dispositivo, começando por uma breve exposição histórica, cultural e
conceitual do tema e partindo para alguns comentários relevantes acerca da
inovação legislativa. A pesquisa bibliográfica será, obviamente, limitada, pois
não se dispõe, neste momento inicial, de grande material específico, mas tão
somente dos estudos já levados a termo pela doutrina a respeito da redação
original do artigo 32 da Lei Ambiental.
Ao final será
procedida a uma revisão dos tópicos desenvolvidos ao longo do texto,
apresentando um desfecho conclusivo.
2-BREVE EXPOSIÇÃO HISTÓRICA, CULTURAL E CONCEITUAL
A prática de atos
cruéis contra animais tem sido considerada repugnante, mas em geral com
sustento em um conceito antropocêntrico das relações entre humanos e animais,
sem levar em consideração a característica da sensibilidade desses seres vivos.
Não obstante, no desenvolver histórico da visão do tema, tem sido, aos poucos,
inserido um pensamento que também leva em conta a realidade de que os animais
são seres capazes de sofrimento e prazer, o que impõe certa consideração
especial, embora sem a pretensão exagerada de algumas correntes (v.g. “Ecologia
Profunda”) de equiparar, sem distinção, seres humanos e animais. Certamente é
preciso promover um equilíbrio entre os extremos da zoologização do homem e da
reificação próxima à natureza inanimada dos animais.
Para a esmagadora
maioria da doutrina o Direito protege os animais somente para proteger o homem.
É francamente minoritária a corrente que defende a tutela dos animais sob um
enfoque ecológico profundo, considerando-os como “seres vivos com personalidade
autônoma ‘sui generis’”, devendo ser “protegidos como sujeitos de direito,
dotados de percepções e sensações”.[2]
Mas, talvez haja um
tipo penal específico que tutele diversamente os interesses próprios dos
animais, independente de sua eventual função ecológica. Trata-se da antiga
contravenção (art. 64, LCP) e atual crime (art. 32 da Lei 9605/98) de
“Crueldade contra animais”.
Neste caso é evidente
que a conduta incriminada não tem por característica a necessidade de avaliação
de dano à função ecológica do ser vivo. Aliás, o tipo penal em questão abrange
não somente os animais silvestres, como também os domésticos e domesticados,
nativos ou exóticos. São tutelados os animais de maneira geral,
independentemente de sua inserção na função de equilíbrio ambiental.
A tipificação penal
destacada é dotada de todo o potencial para oportunizar uma inovada abordagem
da tutela dos Direitos dos Animais, inclusive no bojo de uma interpretação
sistemática com o antigo Decreto 24.645, de 10.07.1934, que arrola
pormenorizadamente condutas de maus – tratos a animais, as quais podem servir
de subsídio legal à interpretação da norma criminal.
Sob o pálio dessa
normatização protetiva, passariam os animais a serem tutelados, tendo em vista
sua capacidade de sentimento, de experienciarem prazer e dor. Tais atributos
dizem respeito a valores e interesses próprios e independentes dos animais, não
necessitando, para sua legitimação, de eventual inserção em interesses humanos
para uma espécie de tutela mediata ou secundária. Ampliando a interpretação
sistemática acima mencionada, de modo a transcender à legislação ordinária,
subindo na escala hierárquico – normativa até a Constituição Federal,
encontrar-se-á fundamento para essa tutela em dispositivo expresso no artigo
225, § 1º, VII, “in fine”. A Lei Maior determina que o Poder Público deva
proteger a fauna (sentido amplo), vedando práticas que “submetam os animais a
crueldade”.
Como se percebe, tudo
indicaria para uma devida interpretação não – antropocêntrica das normas
sobreditas. No entanto, a força da perspectiva antropocêntrica no Direito é
gigantesca, levando a doutrina a seguir uma linha exegética que privilegia,
mesmo nesses dispositivos, algum fator humano.
Seguindo uma ordem
cronológica, pode-se analisar inicialmente a antiga contravenção penal de
Crueldade contra animais. Como já dito, vinha ela prevista no artigo 64 da LCP.
Tal dispositivo abrigava-se no Capítulo VII da legislação sob comento, cujo
título é “Das contravenções relativas à polícia de costumes”.
Numa breve passada de
olhos pelos tipos contravencionais que acompanham aquele sob comento,
constata-se que sua previsão certamente não se realizou considerando a defesa
dos Direitos dos Animais, mas sim tendo em mira a regulação da conduta humana
no seio da sociedade, visando especialmente certa atuação moralizante do
Direito Penal. Os tipos contravencionais ali expostos repudiam condutas que
atingem o sentimento moral, o decoro social (v.g. jogos de azar, embriaguez
escandalosa, mendicância (ora revogada pela Lei 11.983/09), vadiagem,
importunação ofensiva ao pudor, perturbação da tranquilidade). Nada indica,
pela posição topográfica do artigo 64, LCP, a existência de uma preocupação com
o bem – estar dos animais em si. A tutela penal refere-se, na verdade, como nos
outros tipos ali abrigados, ao sentimento humano de repúdio a atos cruéis, os
quais causam suscetibilidades nas pessoas sensíveis e podem, talvez, fomentar a
crueldade intra - humana.
Ao comentar o
objetivo do Capítulo VII da Lei das Contravenções Penais, Valdir Sznick afirma
que ele visa “a proteção aos bons costumes e à moralidade da sociedade”,
conceituando “bons costumes” como “a virtude, a moral pública, a decência e o
pudor público”.[3] Na análise da motivação do
dispositivo do artigo 64, LCP, faz menção à defesa da sensibilidade humana para
com os seres irracionais, a qual seria atingida por condutas cruéis também
reveladoras de crueldade dos homens cujos sentimentos morais estariam
deturpados.[4]
Na doutrina
internacional a interpretação dada a dispositivos similares não é dissonante.
Garraud aduz que “o
fim desta lei não é conferir direitos aos animais, (...), ela deseja somente
punir os atos de crueldade que, em razão de sua gravidade e de sua publicidade,
são de natureza e exercem influência penosa sobre os costumes”.[5]
Por sua vez, Sabatini
advoga o mesmo entendimento ao asseverar que
a razão da punibilidade de tais fatos, consiste na
ofensa ao sentimento de piedade inato ao homem. Ainda que os atos de crueldade
se dirijam contra os animais, eles provocam repulsa e horror. A crueldade, de
qualquer espécie, de qualquer modo que se deseja justificar, contrasta com a
delicadeza dos costumes e com o de outros sofrimentos que passam dos seres
inferiores ao próprio semelhante.[6]
Voltando ao Brasil,
também Damásio concorda que o sujeito passivo da então contravenção penal seria
a coletividade humana, sendo os animais os objetos materiais da infração,
jamais seus sujeitos passivos.[7]
Em obra coletiva,
Wilson Ninno comenta a Lei das Contravenções Penais, externando o
posicionamento jurisprudencial que sempre imperou acerca da identificação da
“mens legis” do dispositivo do artigo 64, LCP e de seu sujeito passivo, de
acordo com o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, onde eram
encontráveis reiteradas decisões, apontando que aquilo “que a lei tutela, no
dispositivo em apreço, é o sentimento ético – social de humanidade para com os
animais” [8], de maneira que o sujeito passivo da
conduta é o Estado.[9]
Anote-se ainda que
essa preocupação voltada somente para o sentimento humano torna-se patente
quando a legislação restringe-se a vetar como ilícitas as experiências
científicas ou atividades didáticas dolorosas ou cruéis em animais vivos,
apenas se forem realizadas em local “público ou exposto ao público” (§ 1º do
art. 64, LCP). Isso escancara ainda mais o fato de que a preocupação do
legislador na época voltava-se tão somente ao sentimento de pudor humano ante os
atos de crueldade, pois desde que realizado longe dos olhares incomodados ou
suscetíveis de homens e mulheres, os atos de crueldade eram moral e legalmente
tolerados, sem nenhuma consideração quanto aos sentimentos dos outros seres
vivos.
Mas, houve uma
importante reforma legal acerca do tema em discussão. A Lei 9605/98 erigiu a
outrora contravenção em crime de crueldade contra animais em seu artigo 32.
Será que isso teve o condão de mudar a perspectiva com que o novo ditame legal
seria interpretado e aplicado?
Infelizmente a
resposta é negativa.
Malgrado alguns
avanços obtidos, a base antropocêntrica do Direito restou praticamente
intocada.
A manutenção da ideia
segundo a qual os animais são apenas objetos e não sujeitos passivos do crime é
praticamente pacífica na doutrina.
Para Vladimir Passos
de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, os crimes ambientais em geral têm como
sujeito passivo a “coletividade”, entendida como o conjunto “de todos os
cidadãos considerados ‘uti singuli’”, ou seja as pessoas, no sentido de seres
humanos prejudicados coletivamente pela degradação ambiental.[10] No que tange ao crime de crueldade
contra animais, os autores não destoam desta orientação, afirmando que o
sujeito passivo é a coletividade e os animais são meros objetos materiais do
ilícito.[11]
Luís Paulo Sirvinskas
pouco difere. Apenas procura individualizar o sujeito passivo, indicando não a
ideia vaga, difusa da coletividade, mas apontando o Estado e mais
especificamente a União Federal, trazendo à baila o disposto no artigo 1º da
Lei 5197/67. Quanto às espécies da fauna, segue tomando-as como objetos
materiais das condutas incriminadas.[12]
Ainda na mesma linha
de pensamento e de certa forma revivendo a tutela dos costumes preconizada pela
legislação contravencional revogada, manifesta-se Luciana Caetano da Silva:
Quanto ao ‘sujeito passivo’ dos delitos faunísticos, ao
contrário do que se poderia deduzir num primeiro momento, não são os animais,
muito embora sejam eles que suportam a violência física ou psíquica. Os animais
jamais serão sujeitos de delitos. Figuraram sempre no âmbito do Direito Penal
como objeto material da conduta criminosa. Mesmo nas infrações de maus – tratos
a animais (art. 32 da Lei dos Crimes Ambientais), estes ‘não têm significação
alguma no processo individualizador da norma penal, porque a sanção cominada se
refere a um delito praticado’ contra a coletividade ‘ferida ela em seus
princípios morais’, nos seus ‘bons costumes, sentimentos comuns de humanidade
no que se refere a animais’.
Portanto, o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado
de lesão nos delitos faunísticos, (...), será a coletividade, posto que ofendem
o interesse ‘que pertence a todos os cidadãos, considerados uti singuli’,
ou seja, há um prejuízo para a coletividade”.[13]
Nada de substancial
mudou na interpretação do novo tipo penal de maus – tratos a animais. Embora o
rigor da lei tenha se intensificado, nota-se que essa intensificação não
resulta de uma suposta tomada de consciência quanto aos Direitos dos Animais.
Certamente a
alteração mais importante operada pela nova legislação ambiental sobre o tema
foi a normatização mais abrangente quanto às restrições a experiências
dolorosas ou cruéis com animais (artigo 32, § 1º, da Lei 9605/98). Agora
a vedação de práticas que tais não se reduz àquelas perpetradas em público ou
em local exposto ao público, como na antiga contravenção penal (artigo 64, §
1º, LCP). Essas condutas são proibidas e apenadas sempre que praticadas, seja
em público, seja reservadamente. Parece que neste aspecto o legislador não
desconsiderou totalmente os sentimentos dos animais, especialmente seu
sofrimento físico e psíquico, para dar atenção somente aos pudores, moralidades
e suscetibilidades humanos.
Não obstante há quem
indague se a lei não teria sido um tanto exagerada ao punir cientistas,
professores e estudiosos.[14]
Ademais, a
preocupação com o bem – estar dos animais, ínsita ao dispositivo, não foi o
bastante para alterar a tradicional interpretação dos fins e objetos das normas
protetivas faunísticas. Veja-se, por exemplo, o posicionamento de Vladimir
Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas que, ao comentarem o dispositivo
do § 1º, do artigo 32, da Lei Ambiental, continuam apontando a coletividade
como sujeito passivo da conduta incriminada e os animais como seu objeto
material.[15]
Nesse campo das
experiências científicas faz-se muito nítido o conflito entre o interesse
humano pelo desenvolvimento, especialmente de técnicas terapêuticas e
medicamentos, e o bem – estar dos animais frequentemente utilizados como
cobaias nessas atividades.
São inúmeros os
avanços da ciência médica creditados a experimentos com animais, muitas vezes
dolorosos ou letais (v.g. vacinas, insulina sintética etc.). Dessa forma, o
sacrifício de seres vivos não – humanos tem proporcionado a salvação de
inúmeras vidas humanas, bem como a melhoria da qualidade de vida e a cura de
várias pessoas. Não se devem olvidar também os avanços na área veterinária, que
beneficiam diretamente os próprios animais.
Quer se lance mão de
uma perspectiva utilitarista ou de uma abordagem ética de qualquer outra
orientação, o tema é de intrincada solução.
A legislação
brasileira busca certa ponderação de valores na medida em que não proíbe de
forma absoluta essas experiências, mas as condiciona à circunstância de não
existirem “recursos alternativos”. Trata-se de elemento normativo do tipo, ou
seja, um daqueles que para sua “compreensão o intérprete não pode se limitar a
desenvolver uma atividade meramente cognitiva, subsumindo em conceitos o dado
natural, mas deve proceder a uma interpretação valorativa”.[16]
Esses elementos
normativos podem ser classificados em duas espécies, a saber: jurídicos e
culturais. Os primeiros “são os que trazem conceitos próprios do Direito”,
enquanto os culturais “envolvem conceitos próprios de outras disciplinas do
conhecimento, científicas, artísticas, literárias ou técnicas”.[17]
Resta nítido que a
expressão usada na lei, “recursos alternativos”, constitui um elemento
normativo cultural, cuja devida interpretação ficará na dependência de
conceitos e conhecimentos técnico – científicos.
Certamente os
operadores do Direito, para a correta aplicação da lei, necessitarão lançar mão
de perícias e pareceres de técnicos especializados que poderão analisar com
conhecimento de causa os casos concretos submetidos à apreciação da Justiça.
Luciana Caetano da
Silva expressa sua preocupação com a vagueza da expressão, o que, em seu
entender, pode constituir uma ofensa ao Princípio da Taxatividade que deve
orientar a elaboração dos tipos penais. Em seu entendimento, mesmo a
possibilidade da apreciação dos casos concretos por peritos habilitados pode
gerar uma deletéria “inibição” da atividade de pesquisa científica, com
evidentes prejuízos ao ser humano.[18]
A autora chega a
propor uma drástica delimitação da norma proibitiva, reduzindo a conduta
incriminada à prática da vivissecção sem anestesia e à experiência cruel em
animal vivo em local público. Praticamente propõe um retrocesso à antiga
contravenção penal do artigo 64, LCP, diferindo apenas pela proibição generalizada
da prática específica da vivissecção sem anestesia, a qual não seria proibida
somente em público, mas também reservadamente. Aliás, a autora deixa claro que
considera exagerada a punição dessas condutas como crimes, sugerindo que
permanecessem tratadas como meras contravenções penais.[19]
Em conclusão tem-se
que a penetração no meio jurídico de qualquer espécie de norma ou interpretação
de uma norma, que fuja, um mínimo que seja, da matriz antropocêntrica, enfrenta
barreiras praticamente insuperáveis. Barreiras estas que chegam a distorcer até
mesmo disposições muito claras e a relegar certas normatizações a um verdadeiro
ostracismo.
Seria mesmo algo que
beira a insanidade pretender escolher o bem – estar de um camundongo em
detrimento da saúde e da vida de seres humanos. Mesmo defensores ferrenhos dos
Direitos dos Animais, como Peter Singer, admitem que numa situação – limite de
escolha, os seres humanos, em regra, são dotados de características que lhes
dariam certa preferência.[20] Mas isso não significa que os demais
seres vivos devam ser sumariamente alijados da consideração moral e jurídica,
destituídos de direitos e desprezados em sua sensibilidade.
É possível sim, na
maioria das vezes, contrabalançar os interesses humanos e a consideração dos
sentimentos dos animais, inclusive concretizando essa orientação solidária e
ética em normas legais plenamente aplicáveis. Um bom exemplo é o dispositivo do
artigo 32, § 1º, da Lei Ambiental Brasileira, pois que, sem submeter os seres humanos
a qualquer degradação, não deixa de considerar e repudiar o sofrimento
desnecessário imposto aos animais. O rigor do dispositivo, ao inverso de
consistir em fator de inibição da pesquisa científica, vem a estimular a
descoberta de métodos menos cruéis para o desenvolvimento científico. Sem essa
vedação rigorosa jamais haveria interesse, por uma questão de comodismo e
insensibilidade moral, na descoberta de novos métodos que evitem o uso
indiscriminado de animais nas pesquisas. Mais que isso, mesmo nos casos em que
tais “recursos alternativos” já existem, seu uso somente estaria condicionado a
fatores financeiros e de conveniência dos pesquisadores, jamais se levando em
conta o sofrimento infligido desnecessariamente aos animais.
Dessa análise
histórico – cultural e conceitual, se conclui que a proteção jurídica aos
animais, no que tange aos maus – tratos, foi objeto de ampliação e
aperfeiçoamento em nosso ordenamento. Neste contexto, o advento da Lei
14.064/20 se insere como mais uma tentativa de melhoria da
tutela dos animais quanto ao respeito à sua condição de seres sensíveis.
3-AS ALTERAÇÕES
PROMOVIDAS PELA LEI 14.064/20
A Lei 14.064/20
incluiu um § 1º. – A, no artigo 32 da Lei 9.605/98, criando com isso uma figura
qualificada de maus – tratos a animais. A pena prevista para o artigo 32,
“caput” e para a conduta equiparada de seu § 1º., é de “detenção, de 3 (três)
meses a 1(um) ano, e multa”. Já para os casos agora previstos no novel § 1º. –
A, a reprimenda é de “reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição
da guarda”.
A conduta a ser
perpetrada pelo infrator contra os animais não se altera, já que o §1º. – A faz
referência àquelas descritas no “caput” do dispositivo em destaque. O que muda
é a espécie de animal objeto das referidas condutas já anteriormente
incriminadas e a pena maior agora prevista.
A Lei 14.064/20 cria
uma proteção diferenciada para “cães e gatos”, em detrimento de todos os demais
animais. Tanto a pena mais gravosa como a proibição de guarda são aplicáveis
somente quando forem maltratados “cães ou gatos”. Para outros animais nada
mudou.
Essa escolha
arbitrária de duas espécies parece ser uma continuação de certa “mania” (que já
tem foros patológicos) do legislador brasileiro em atomizar, distinguir e
inaugurar tratamentos diversos para situações para as quais caberia uma
abordagem universalizante. O tribalismo e o identitarismo divisores, depois de
contaminarem o pensamento com relação aos humanos, agora chegam aos
animais. [21] Esse tipo de “lógica ilógica” tem o
condão de fazer com que mais e mais leis tenham de ser editadas ao sabor dos
grupos que se pretenda defender ou satisfazer em dado momento, devido a fatores
circunstanciais políticos, econômicos, sociais, midiáticos etc. No caso
específico, daqui a algum tempo, poderá ser criado então um novo parágrafo para
tratar de cavalos, outro para girafas e rinocerontes, mais um para lacraias,
outro para onças e por aí vai “ad infinitum”.
Entretanto, o equívoco
mais grave sob o prisma jurídico dessa eleição de certos animais para um
tratamento diferenciado não é o tribalismo ou identitarismo animal, mas algo
que, juridicamente, deriva dessas posturas “intelectuais”. O pior erro se dá
por infração ao Princípio Constitucional da Igualdade ou da Isonomia. Não há
motivo plausível para um tratamento diferenciado para os atos de maus – tratos,
envolvendo cães e gatos, deixando os restantes animais numa vala comum de
indiferença.
A suposta alegação
que, segundo consta, justificaria esse tratamento diversificado seria a de que
os cães e os gatos são mais comumente vítimas desses atos de barbárie. Ora,
essa tese não se sustenta de forma alguma, pois conforme aduz Argachoff “basta
uma rápida busca através da internet e serão encontrados diversos casos de maus
– tratos e mutilações contra cavalos, aves ou diversos outros animais
silvestres, domésticos ou domesticados”. [22]
Para que um
tratamento diferenciado seja dado a uma categoria qualquer, tendo em vista até
mesmo a concretização do Princípio da Igualdade por meio do que se convencionou
chamar de “discriminação positiva”, são necessários fundamentos sustentáveis a
justificarem tal diversificação.
Conforme escorreito
escólio de Mello:
As discriminações são recebidas como compatíveis
com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de
correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por
residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela
conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com
interesses prestigiados na Constituição (grifos no original). [23]
Por mais que se
procure algum fundamento para tratar diversamente cães e gatos, os únicos
motivos são de índole discriminatória injustificável, marcados por
subjetivismos e sentimentalismos. A proteção conferida a um ou outro animal não
se pode basear no fato de que consideramos alguns mais bonitos, “fofos”,
amigáveis. Essa proteção contra maus – tratos está ligada, não a qualquer subjetivismo
ou sentimentalismo, mas ao fato concreto e indiscutível de que os animais,
universalmente falando, são passíveis de sofrimento e dor, razão pela qual
merecem a consideração de não serem tratados como coisas inanimadas ou
mecanismos meramente reativos, conforme já os considerou Descartes e, ainda
mais radicalmente, La Mettrie, que expandiu tal conceito mirabolante para
abranger também os homens. [24]
O exemplo exposto por
Argachoff é extremamente oportuno e esclarecedor:
A título de exemplo tratemos de uma situação hipotética
de dosimetria de pena, onde um cachorro e um cavalo sofram mutilação. O autor
do crime contra o cão estará sujeito, devido à alteração legislativa, a pena
variando entre dois a cinco anos de reclusão, multa e perda da guarda do
animal, se a tiver. Já com relação ao agressor do cavalo a legislação é bem
mais benevolente, sujeitando-o a uma pena de detenção de três meses a um ano e
multa. [25]
E o autor em
destaque, com absoluta agudez, ainda arrola outras consequências de natureza
processual penal mais gravosas para o agressor de cães e gatos, tais como o
afastamento das benesses da Lei 9.099/95, a possibilidade de Prisão em
Flagrante e a impossibilidade de arbitramento de fiança criminal pelo Delegado
de Polícia, sendo fato que nenhuma dessas consequências mais gravosas se aplica
ao violentador de outros animais que não cães e gatos (a infração do artigo 32,
“caput”, da Lei 9.605/98 é de menor potencial ofensivo; afiançável pelo
Delegado de Polícia e sequer, em regra, se lavrará auto de prisão em flagrante
e sim mero Termo Circunstanciado, com liberação do infrator, independentemente
de fiança). [26] Também com idêntica perspicácia
Leitão Júnior faz menção a essas limitações impostas ao infrator do novo § 1º.
–A, acrescentando oportunamente a vedação do Acordo de Não Persecução Penal,
atualmente regulado no artigo 28 – A, CPP com redação dada pela Lei 13.964/19
(Lei Anticrime), isso tendo em vista que a pena máxima de 5 anos ora prevista
desborda a pena de 4 anos exigida como máxima para que se faça jus ao
acordo. [27]
Nem se cogite o
emprego de analogia para equiparar as penalidades, ainda que em casos mais
gravosos que envolvam animais diversos de cães e gatos. A redação do § 1º. – A,
em estudo é taxativa (“numerus clausus”), aliás, como é de boa técnica na
redação de normas de caráter penal. Qualquer intento de analogia seria
“in mallam partem” e, portanto, absolutamente vedada para a seara
criminal.
Note-se que a pena
mais gravosa para os maus – tratos de cães e gatos somente é aplicável para as
condutas previstas no “caput” do artigo 32 da Lei Ambiental. Isso é expressa e
induvidosamente estabelecido na redação do § 1º. – A. Portanto, não são
alcançadas as situações de imposição de experiência dolorosas, ainda que a cães
ou gatos, quando existirem recursos alternativos, conforme consta da conduta
equiparada prevista no § 1º., do artigo 32 da Lei 9.605/98. Nesse caso a pena
aplicada é a do “caput” e não a nova pena do § 1º.-A. Aqui também não se vê
razão plausível para discriminação. Mesmo o fato de que tal conduta
eventualmente se dê para fins didáticos ou científicos não justifica
bioeticamente e, consequentemente, no campo do Biodireito, tratamento
diversificado. É irrelevante se a crueldade perpetrada contra um cão ou um gato
se dá em uma experiência ou em outras circunstâncias, tanto é fato que a
conduta sempre foi equiparada ao “caput”. Dessa forma, se o § 1º. – A, prevê
nova pena para os casos envolvendo cães ou gatos para o “caput”, isso deveria
valer normalmente para o § 1º., até por uma questão de coerência com o
histórico legislativo. Infelizmente, não foi assim, pois a redação do § 1º. – A
é restritiva e indica sua aplicação somente ao “caput”, de modo que o Princípio
da Legalidade exclui a possibilidade de aplicação da pena mais gravosa aos
casos abrangidos pelo § 1º. Portanto, além da impropriedade de restrição da
reprimenda mais grave apenas para os “eleitos” cães e gatos, exsurge mais uma
incoerência, que é a subproteção, mesmo de cães e gatos, no que se refere a
experiências dolorosas desnecessárias.
Doutra banda, não se
pretende também apregoar aqui o reconhecimento da inconstitucionalidade para
invalidar a pena mais gravosa erigida pela Lei 14.064/20. Na verdade, havia uma
inconstitucionalidade por insuficiência protetiva quanto à pena prevista no
“caput” do dispositivo em comento, a qual foi parcialmente consertada com a
previsão de pena mais adequada no § 1º. – A pela Lei 14.064/20. A proposta é de
“lege ferenda” para que se possa pensar em ampliar a pena mais gravosa e a
proibição de guarda para todos os casos, realmente reparando de vez de forma
completa a insuficiência protetiva. Declarar a inconstitucionalidade do § 1º.-A
para retornar ao “status quo ante”, seria equivalente a repristinar uma
inconstitucionalidade por insuficiência protetiva que agora está, ao menos em
parte, solvida. Tal opção seria um desatino. Por isso a única proposta coerente
é a de ampliação do tratamento dado pela Lei 14.064/20 para cães e gatos a
todos os demais animais, pela via legislativa, já que a analogia “in mallam
partem” é inviável, resolvendo de uma vez por todas a questão da insuficiência
protetiva e ajustando a legislação de acordo com o Princípio da Igualdade ou
Isonomia.
Segundo consta, a
Presidência da República teria ficado reticente em sancionar a legislação,
considerando que a nova pena prevista seria muito alta. [28] Ao final, a nosso ver acertadamente,
a legislação foi sancionada. Ocorre, porém, que certa razão assistia à
Presidência da República em suas reservas. Comparando a reprimenda de reclusão,
de dois a cinco anos prevista para a violência contra animais com, por exemplo,
a pena para a lesão corporal de natureza grave praticada contra humanos, se
verifica que uma lesão leve, ainda que cruel, perpetrada contra um animal terá
penalidade maior que a lesão grave em um humano, cujo preceito secundário prevê
pena de reclusão, de um a cinco anos somente. Isso sem falar nas penas para
lesões leves em humanos que não passam do máximo de um ano de detenção e, mesmo
no caso de violência doméstica, não ultrapassam o máximo abstrato de três anos
(vide artigo 129, “caput”, § 1º., I a IV e § 9º., CP). E a coisa pode ainda
piorar. Há crimes contra a vida de seres humanos que
são apenados de forma muito mais branda do que a violência contra cães e gatos.
Os casos de autoaborto e aborto consentido, previstos no artigo 124, CP têm a
ridícula pena de detenção, de um a três anos. Mesmo o aborto provocado por
terceiro com o consentimento da gestante (artigo 126, CP), apresenta pena menor
que a do artigo 32, § 1º. – A da Lei Ambiental (reclusão, de um a quatro anos).
O Infanticídio (artigo 123, CP) tem pena mínima igual à crueldade contra
animais (2 anos) e pena máxima apenas um ano maior (seis anos). Tudo isso sem
levar em conta toda a movimentação existente em nossa sociedade para a
descriminalização do aborto a nos lembrar do “amor” dos nazistas, inclusive do
próprio Hitler, aos animais, enquanto liberava abortos e toda espécie de
genocídio e crueldades contra humanos. Essas lembranças deveriam chocar todos
aqueles que se sentem gravemente ofendidos e estarrecidos com a destruição de
um feto de tartaruga marinha, mas não alimentam qualquer empatia por um
embrião, feto ou até mesmo um bebê humano já em vias de nascimento ou mesmo
nascido, defendendo a legitimidade absurda até mesmo do eufemisticamente
chamado “aborto tardio”, que, na verdade, não passa de homicídio cruento. [29] E ainda têm a capacidade incrível de
atribuir o epíteto de “nazista” e “genocida” a outros, o que somente se pode
explicar por uma esquizofrênica briga em frente ao espelho, naquilo que a
psicologia chamaria de “projeção”. [30] Isso é um resultado da falta da mais
mínima noção ou mesmo pretensão de um exame das origens das ideias defendidas,
conformando-se o indivíduo, normalmente, com sua mera simpatia por determinada
convicção, substituindo totalmente a racionalidade pelo sentimentalismo raso,
sem jamais perscrutar para saber de onde aquilo surgiu, quais suas conexões com
ideologias, filosofias, sistemas éticos, políticos etc. É a ignorância gerando
seus frutos malsãos. Mas, a cereja do bolo da desproporção ainda está por
vir. O artigo 32, § 1º. – A da Lei 9.605/98, com nova redação dada pela Lei
14.064/20 coíbe, mediante pena de reclusão, de dois a cinco anos, multa e
proibição de guarda, os “maus – tratos contra animais”, mais especificamente
ainda, contra cães e gatos. Por seu turno, o artigo 136, “caput”, CP prevê a
punição dos “maus – tratos contra seres humanos”, sendo a pena do delito
simples somente de “detenção, de dois meses a um ano, ou multa” (note-se que há
multa alternativa, ou seja, a pena pode ser somente pecuniária de acordo com a
individualização judicial). Ainda que resulte dos maus – tratos a humanos
lesões graves ou mesmo gravíssimas, a pena prevista no artigo 136, § 1º., é só
de “reclusão, de um a quatro anos”, sem nem mesmo previsão de multa!
Assim sendo, a
Presidência da República deu mostras de sensibilidade para essa realidade
incoerente da nossa legislação, a qual retrata uma cultura decadente na qual se
opera uma desumanização silenciosa sob o manto forjado de supostas
sensibilizações humanitárias, ecológicas etc. Mas, então por que se afirma
neste texto que a opção pela sanção foi correta no final das contas? É simples.
Porque, na verdade, não é a pena prevista para os maus – tratos contra animais
que é, em si e por si, alta demais. Não, ela é adequada. O problema se
apresenta na sua relação com outros tipos penais, tais como os
elencados em exemplos acima. Então, não é a crueldade contra animais que tem
pena muito alta com a Lei 14.064/20 e sim muitos crimes contra a pessoa humana
que apresentam penas por demais irrisórias comparativamente falando. Se há uma
revisão a ser feita, é neste sentido. Os animais merecem consideração como
seres sencientes que induvidosamente são. Mas, os humanos merecem ainda maior
consideração não somente como seres sencientes que também são, mas como seres
“espirituais”, quer se interprete a espiritualidade em termos
religiosos, metafísicos ou mesmo estritamente científicos.
Considerando que a
Lei 14.064/20 cria uma qualificadora para os casos de maus – tratos de cães e
gatos, propiciando um aumento considerável da pena “in abstracto”, somente
poderá ter aplicação a partir de seu vigor, sem possibilidade de retroatividade.
O legislador, dentre
as reprimendas previstas para a crueldade contra animais, manteve para os casos
do § 1º. – A, envolvendo cães ou gatos, a pena de multa. Certamente perdeu uma
grande oportunidade de dar um destino mais adequado aos valores recolhidos com
pagamentos dessas multas, destinando-os a um fundo especial para auxiliar
programas e entidades protetoras. Tendo em vista a falta de uma previsão
expressa, a pena de multa se destinará à vala comum do FUNPEN (Fundo
Penitenciário Nacional), nos termos do artigo 49, CP.
Inovação prevista no
novo §1º. – A é a “proibição da guarda” de cães e gatos. Novamente,
infelizmente, tal penalidade se reduz aos cães e gatos, não havendo previsão
similar no que tange aos demais animais. Por força do Princípio da Legalidade,
enquanto limitador do poder punitivo estatal, não é viável a aplicação dessa
sanção em casos de maus – tratos infligidos a animais que não sejam cães ou
gatos. Cabem aqui as mesmas críticas erigidas quanto à limitação da pena
privativa de liberdade somente a duas espécies “privilegiadas” de animais.
Quanto à penalidade
de “proibição da guarda” de cães e gatos, uma dúvida pode surgir. Seria tal
proibição referente somente àquele cão ou gato maltratado pelo infrator
especificamente ou essa proibição seria abrangente da guarda de qualquer outro
cão ou gato. Poderão surgir na doutrina e jurisprudência incipientes sobre o
tema ambas as interpretações expostas. Contudo, entende-se que não tem sentido
que tal proibição venha a ser específica para um determinado animal. O
indivíduo capaz de infligir maus – tratos ou agir cruelmente contra certo
animal, quase que invariavelmente atuará da mesma forma com outro espécime, de
forma que autorizar tal pessoa a ter a guarda de outro cão ou gato é o mesmo
que tão somente alterar a vítima, mantendo o algoz. E não se confunda
essa situação com medidas protetivas conferidas para a preservação de seres
humanos (v.g. Lei 11.340/06 e artigo 319, CPP). Acontece que os seres humanos
são extremamente individualizáveis, enquanto que os animais se manifestam de
forma determinada pela espécie e pela sua condição natural. Um indivíduo que
age de forma agressiva com uma pessoa determinada, não necessariamente atuará
da mesma maneira com outra, embora isso não seja descartável. Já um violentador
de animais certamente não muda sua conduta de um espécime para outro. Além
disso, as pessoas potencialmente vitimizáveis por um agressor são dotadas de
poder de escolha em dele se aproximar e conviver, enquanto que os animais não
têm essa opção existencial. Afora essa fundamentação com fulcro na
razoabilidade, também a própria interpretação gramatical da lei está a indicar
uma proibição genérica e não particular. A lei usa a expressão “proibição da
guarda” e não “perda da guarda” ou “retirada da guarda”. A expressão usada na
lei é claramente abrangente e genérica. As outras duas, que poderiam ter sido
usadas pelo legislador e não o foram, teriam um sentido mais restritivo,
implicando, inclusive na existência de guarda anterior a ser “perdida” ou
“retirada”. Mas a lei se refere a “proibição”.
Essa proibição da
guarda por ordem judicial deverá ser cumprida pelo infrator condenado e se
descumprida configurará crime contra a administração da justiça de
“Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito”, nos
termos do artigo 359, CP.
É de ressaltar que a
proibição de guarda deveria ser também prevista como uma cautelar urgente e
preventiva, para além de sua aplicação definitiva quando da condenação
transitada em julgado, conforme consta do § 1º. – A. Fato é que tal cautelar
não é prevista expressamente no Código de Processo Penal (artigo 319), nem na
própria Lei Ambiental (Lei 9.605/98). Quanto ao animal (e neste caso não
somente cães e gatos) especificamente vitimizado, é certamente suficiente a
medida cautelar geral de apreensão e encaminhamento a locais adequados,
conforme artigo 25, §§ 1º. e 2º., da Lei 9.605/98. Além disso, há a
possibilidade de aplicação da medida administrativa de apreensão de animais,
conforme estabelecido no artigo 72, IV do mesmo diploma ambiental. A lacuna que
fica e sempre esteve presente, é aquela com relação à guarda de outros animais,
o que leva ao reforço do entendimento de que a ordem de proibição de guarda
agora prevista é geral e não particular, conforme anteriormente exposto.
Acontece que tal ordem restritiva de direitos somente se dará ao fim do
processo e será cumprida com o trânsito em julgado. Seria salutar que tal
interdição já pudesse ser aplicada em certos casos concretos que a justificassem,
de imediato, como providência cautelar, o que, infelizmente, não é legalmente
previsto. A única saída neste caso seria que o magistrado apelasse para o
chamado “poder geral de cautela”, o qual, porém, é bastante discutível quanto à
sua aplicação na seara processual penal, de modo que a previsão expressa dessa
cautelar teria sido muito bem vinda.
Outra questão
importante sobre a “proibição da guarda” é que a lei não prevê um tempo mínimo
e máximo para tal proibição. Não é possível entender que essa restrição de
direito seja aplicável de forma indefinida no tempo, pois isso equivaleria à
previsão de pena de caráter perpétuo, o que é vedado pela Constituição Federal
(inteligência do artigo 5º., XLVII, “b”, CF).
No silêncio da lei,
algumas soluções podem ser propostas:
a)A interdição teria
a mesma duração do tempo de pena privativa de liberdade aplicada no caso
concreto, por analogia às penas restritivas de direito quando substitutivas das
privativas de liberdade (artigo 44, CP);
b)A interdição teria
a duração do tempo da pena privativa de liberdade aplicada “in concreto”,
acrescido, após sua extinção, de mais 2 (dois) anos, tendo em vista a
necessidade de o condenado requerer sua “reabilitação” , nos termos dos artigos
93 a 95, CP.
c)O prazo seria
variável, aplicando-se por analogia o sistema de “Medidas de Segurança”, de
modo que ao juiz sentenciante caberia estabelecer um prazo mínimo de interdição
entre 1 (um) e 3 (três) anos, submetendo o interessado a um exame
multidisciplinar (psiquiátrico, psicológico e social) para verificar se tem
condições de ter novamente a guarda de animais. Em caso positivo, seria
liberado. Em caso negativo, a interdição seria renovada por mais 1 (um) a 3
(três) anos e assim sucessivamente, nos termos do artigo 97, § 1º., CP.
De todas essas
hipóteses, a mais plausível, segundo se entende seria a do item “b”, ou seja,
usando o critério da reabilitação.
A hipótese menos
aceitável seria a do item “c”, pois que desde a reforma da Parte Geral do
Código Penal em 1984 (Lei 7.209/84), foi extinto o sistema “duplo binário”,
adotando-se o sistema chamado “vicariante”, não sendo possível a concomitância,
sucessão ou a confusão entre pena e medida de segurança (inteligência do artigo
96, Parágrafo Único, CP). [31]
Contudo, tendo em
vista as características dos maus – tratos a animais, parece que o ideal seria
ter a legislação inovado para estabelecer um prazo mínimo para a “proibição da
guarda”, devendo o implicado, se tivesse interesse, requerer ao juízo uma
avaliação, após tal prazo, a qual seria multidisciplinar (psiquiátrica,
psicológica e social). Não havendo deferimento, a interdição seria renovada por
igual período, dependendo sempre de pedido de reavaliação para sua extinção.
Esse procedimento, se estabelecido na lei ambiental, seria muito semelhante ao
mecanismo da medida de segurança, mas com ela não se confundiria. Não obstante,
essa previsão inexiste, sendo, portanto, inaplicável, pois no cenário jurídico
disponível se confundiria com uma medida de segurança aplicada em duplo –
binário, o que é hoje inviável.
Por fim cabe observar
que o aumento de pena da ordem de um sexto a um terço previsto no artigo 32, §
2º., da Lei Ambiental, quando ocorre a morte do animal, é aplicável não somente
aos casos do artigo 32, “caput” da Lei 9.605/98, mas também aos casos
abrangidos pelo novo § 1º. – A do artigo 32 do mesmo diploma. Não há razão
alguma para limitação desse aumento apenas à figura simples, mesmo porque o §
2º., por obviedade, se acha abaixo do § 1º. – A e, conforme regra de técnica
legislativa, os parágrafos se aplicam naturalmente a tudo que está acima deles
na disposição topográfica da lei. Assim também pensa Leitão Júnior, ao
asseverar que o aumento e a qualificadora “convivem perfeitamente entre
si”. [32] Mesmo antes da Lei 14.064/20 já
ensinavam Gomes e Maciel que o aumento de pena do § 2º., era aplicável tanto ao
“caput” como ao § 1º., de forma que a inclusão de um § 1º. – A em nada altera o
quadro. Ademais, importa lembrar que os mesmos autores esclarecem que o aumento
pela morte do animal será aplicável se o animal for “doméstico, domesticado ou
exótico”, seja decorrente de dolo ou preterdolo. Já se o animal for silvestre,
somente se aplicará o aumento se a morte for preterdolosa, pois em caso de
dolo, se caracteriza “o delito do art. 29, “caput” com a agravante do art. 15,
II, “m” (emprego de método cruel)”. [33] Para o artigo 32, § 1º. – A, da Lei
Ambiental, invariavelmente, seja a morte decorrente de dolo ou preterdolo, será
possível aplicar o aumento do § 2º., pois que o dispositivo se refere
específica e exclusivamente a “cães e gatos”, que são animais domésticos.
4-CONCLUSÃO
No decorrer deste
trabalho foram analisadas, sob um prisma crítico, as alterações promovidas pela
Lei 14.064/20 na Lei Ambiental (Lei 9.605/98), mediante a criação de uma nova
qualificadora para os casos de maus – tratos contra cães e gatos.
Iniciou-se o estudo
por uma descrição da evolução histórica do tratamento penal da conduta de
crueldade contra animais, a qual passou de simples contravenção para
transmudar-se em crime com o advento da Lei 9.605/98 e agora ganhar uma nova
qualificadora. Observou-se que, inobstante os avanços na punição de atos cruéis
perpetrados contra animais, jamais foi superado o paradigma antropocêntrico,
inclusive para designação do sujeito passivo do crime e do bem jurídico
tutelado. Por outro lado, há uma evolução no pensamento, reconhecendo que os
animais não podem ser tratados de acordo com um modelo que os considere como
meros mecanismos ou natureza inanimada, tendo em vista sua característica de
seres sencientes. O reconhecimento dessa condição dos animais, mais que um
juízo de valor, é um juízo de fato e não precisa, nem deve implicar em uma
zoologização do homem ou numa indevida equiparação da humanidade à animalidade,
nem mesmo no reconhecimento de uma simples diferença quantitativa e
não qualitativa entre essas realidades.
A criação de um grupo
privilegiado de animais, no caso cães e gatos, a contarem com uma proteção
diferenciada da lei penal foi apontada como infratora da igualdade ou isonomia,
sendo a solução não a eliminação da proteção penal mais rigorosa ora adotada,
mas sua ampliação para todos os demais animais.
Reconheceu-se a
existência de uma insuficiência protetiva com relação às condutas de maus –
tratos contra animais devido às penas muito brandas do artigo 32 da Lei Ambiental.
Entretanto, isso não inibe a conclusão de que a atual penalidade confronta
desproporcionalmente com muitos preceitos secundários de crimes similares ou
muito mais gravosos praticados contra humanos. Novamente, a solução preconizada
não é desprover os animais da proteção adequada e proporcional, mas ajustar o
sistema como um todo, promovendo a uma revisão de penas que são muitas vezes
até mesmo ridículas em relação à gravidade das infrações a que estão atreladas.
Sugeriu-se, de “lege
ferenda”, a criação de um mecanismo de direcionamento das multas aplicadas em
casos de maus – tratos a animais a instituições e programas protetivos,
evitando sua destinação natural ao Funpen, conforme dispõe o Código Penal em
seu artigo 49.
A penalidade de
“proibição da guarda” foi analisada, concluindo-se que se refere não somente à
guarda do animal especificamente maltratado, mas à de qualquer outro animal.
Tendo em vista a
lacuna legal em estabelecer um tempo específico para a proibição da guarda,
vislumbrou-se possível infração à vedação de penas perpétuas, sugerindo-se como
solução mais adequada, também de “lege ferenda”, o estabelecimento de um prazo
mínimo de interdição com reavaliações periódicas, acaso requeridas pelo
interditado. Enquanto isso não ocorre, a melhor solução encontrada foi a
aplicação analógica do prazo para reabilitação penal.
Foi observado que a
previsão somente como pena da proibição da guarda é insatisfatória, devendo se
pensar de “lege ferenda” na criação de uma cautelar respectiva, pois o “periculum
in mora” é evidente. No atual quadro, a única opção do magistrado é apelar para
o chamado “Poder Geral de Cautela”, que é muito discutível quanto à sua
aplicabilidade na seara Processual Penal.
O
descumprimento da ordem judicial de proibição da guarda configurará novo
ilícito a que responderá necessariamente o infrator, qual seja, aquele previsto
no artigo 359, CP, obviamente sem prejuízo de eventual nova responsabilização
por crime de maus – tratos se isso se operar em reiteração.
A pena mais gravosa
ora prevista no § 1º.-A somente se aplica aos casos descritos no “caput” do
artigo 32 da Lei 9.605/98, por expressa disposição legal. Não alcança,
portanto, a conduta equiparada prevista no artigo 32, § 1º., da Lei Ambiental,
por força do Princípio da Legalidade.
A causa de aumento de
pena do § 2º., é aplicável ao “caput”, § 1º. e § 1º. – A do artigo 32 do
diploma respectivo.
Não é viável a
retroação da figura qualificada ora prevista no § 1º. – A para casos
pretéritos, eis que se constitui em “lex gravior”.
Pode-se afirmar, por derradeiro, que a Lei 14.064/20 soluciona parcialmente uma insuficiência protetiva que existia com relação aos maus – tratos a animais, devido à previsão de penas extremamente leves. Não obstante, o avanço é limitado porque reduz o alcance da norma apenas ao que se poderia chamar de uma “casta privilegiada” de animais, quais sejam, os cães e os gatos. A revisão dessa limitação se apresenta como necessária a bem da igualdade e da satisfação, em sua inteireza, da eliminação da insuficiência protetiva que anteriormente imperava de forma absoluta, mas que agora ainda subsiste em parte. Essa subsistência viola a Constituição em seus aspectos de Justiça, Proporcionalidade, Razoabilidade e Igualdade ou Isonomia.
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