Diante do reiterado descumprimento da jurisprudência das Cortes Superiores pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus para fixar o regime aberto a todas as pessoas condenadas no estado por tráfico privilegiado, com pena de um ano e oito meses.
A medida – decidida por unanimidade – foi adotada também em caráter
preventivo, para impedir a Justiça paulista de aplicar o regime fechado a
novos condenados nessas situações. Para o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a insistente desconsideração das diretrizes normativas derivadas das cortes superiores, por parte das demais instâncias, "produz um desgaste permanente da função jurisdicional, com anulação e/ou repetição de atos, e implica inevitável lesão financeira ao erário, bem como gera insegurança jurídica e clara ausência de isonomia na aplicação da lei aos jurisdicionados".
Jurisprudência consolidada O ministro afirmou que é consolidada e antiga a interpretação do STF de que não é crime hediondo o tráfico de drogas na modalidade prevista no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006 – quando a quantidade de drogas apreendida não é elevada, o agente é primário, de bons antecedentes, não se dedica a delitos nem integra organização criminosa. Nessa situação, a pena pode ser reduzida em até dois terços, chegando ao mínimo legal de um ano e oito meses.
Segundo Schietti, em decorrência dessa interpretação, o STF já se pronunciou
no sentido de que a natureza não hedionda do crime de tráfico privilegiado
desautoriza a prisão preventiva sem a análise concreta dos requisitos do
artigo 312 do Código de Processo Penal; afasta a proibição de substituição da
pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, prevista no artigo
44 da Lei de Drogas; e impõe tratamento penal mais benigno.
Dados preocupantes Schietti lembrou que, em agosto, a Sexta Turma declarou a ilegalidade de uma decisão do TJSP em situação idêntica e pediu uma atuação mais harmônica das instâncias ordinárias em questões jurídicas pacificadas. Na ocasião, revelou-se que, dos 11.181 habeas corpus impetrados pela Defensoria Pública de São Paulo no STJ em 2019, a ordem foi concedida em 6.869 (61,43% das impetrações). Para o ministro, esses dados são a tradução "inequívoca e indesmentível" de que o volume de trabalho das turmas criminais do STJ, ocupadas em mais de 50% por habeas corpus oriundos do TJSP – dos 68.778 habeas corpus distribuídos no STJ em 2019, 35.534 vieram de lá –, "em boa parte se resume a simplesmente reverter decisões que, contrárias às súmulas e à jurisprudência das cortes superiores, continuam a grassar, crescentemente, em algumas das 16 câmaras criminas daquele tribunal". Em seu voto, o relator criticou o aumento exponencial do encarceramento de pessoas sob a acusação de tráfico, cujo número aumentou 508% entre 2005 e 2017 apenas no estado de São Paulo, segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária.
O relator ainda destacou pesquisa do Instituto Conectas segundo a qual o
estado de São Paulo é responsável por cerca de 50% das prisões por tráfico no
país. O estudo concluiu que os juízes de primeira instância, em São Paulo,
continuam aplicando tratamento desproporcional ao tráfico privilegiado, em
comparação a outros delitos sem violência de igual pena. O habeas corpus impetrado pela
Defensoria Pública de São Paulo foi em favor de um preso, com pedido de
extensão a todos os demais nas mesmas condições. No caso individual, o réu
foi denunciado por armazenar 23 pedras de crack (com peso líquido de 2,9g) e
quatro saquinhos de cocaína (com peso líquido de 2,7g), supostamente para
comércio ilícito. Ele foi condenado a um ano e oito meses de reclusão, no
regime inicial fechado, mais multa.
Ao fixar o regime aberto em favor do paciente, o colegiado determinou a mesma
providência para todos os presos que se encontrem em situação igual no estado
e estejam no regime fechado, e também para todos os que forem condenados
futuramente.
Ponderação ampla Na opinião do ministro Nefi Cordeiro, as situações narradas pela Defensoria Pública de São Paulo – bem precisas e delimitadas – não deixam dúvida de que é devida a incidência do regime mais brando, em razão da pena fixada. Ao acompanhar o relator, o ministro ressaltou que a "gravidade da repetição de feitos exige uma ponderação mais ampla do cabimento de medidas definidoras do direito por esta corte". O ministro Antonio Saldanha Palheiro disse que tem verificado a renitência de vários magistrados em seguir a letra da lei e a orientação da jurisprudência dos tribunais superiores. “Esse tipo de comportamento transborda a independência jurídica. Não é independência jurídica externar a sua opinião para o caso concreto, é simplesmente a afirmação de um posicionamento ideológico, independentemente da posição dos tribunais superiores – que têm o papel de unificar a jurisprudência para pacificar os conflitos”, declarou.
A ministra Laurita Vaz destacou que o relator, em seu voto, fez uma análise
profunda da situação para justificar a concessão do habeas corpus coletivo.
Segundo ela, a concessão da ordem nessas condições deve ser delimitada por um
critério objetivo, como no caso.
Insistência hedionda Ao se manifestar durante o julgamento, o defensor público estadual Rafael Ramia Muneratti lembrou que esses casos vêm se repetindo em todo o país. "Infelizmente, diuturnamente, continuamos a nos deparar com decisões, tanto em primeiro grau quanto em segundo, de aplicação do regime fechado em razão da suposta hediondez do crime de tráfico de drogas privilegiado", frisou. Para ele, não é viável continuar "inundando o STJ" com habeas corpus relativos a matérias já pacificadas.
O subprocurador-geral da República Domingos Sávio da Silveira criticou a
posição – frequentemente adotada no TJSP – de considerar que o tráfico
privilegiado é crime hediondo. "Hedionda é essa jurisprudência, essa
insistência em manter o corpo do pobre, do preto, do periférico nas masmorras
do estado de São Paulo", afirmou |
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