quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O princípio da não autoincriminação e deveres extrapenais de cooperação

Análise acerca da constitucionalidade da punição de recusa a submissão a teste de alcoolemia

·         ADRIANO TEIXEIRA

Novos etilômetros reforçam fiscalização de motoristas embriagados Detran, A fiscalização do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) para coibir motoristas que dirigem depois de consumir bebida alcoólica foi reforçada com a compra de mais 88 etilômetros — equipamentos usados para aferir a concentração de álcool no organismo / Crédito: Andre Borges/Agência Brasília

I. Introdução

O Estado vem impondo ao cidadão, de modo crescente, deveres de transparência e colaboração em diferentes áreas, para fins diversos. Não raro esses deveres vêm acompanhados da imposição de multas e outras penalidades.

Contudo, em determinados casos, para cumprir esses deveres de colaboração, o cidadão é obrigado a divulgar informações e produzir materiais que podem revelar a prática de algum delito e que, portanto, podem ser usados contra ele em um processo criminal.

Cria-se, assim, uma tensão entre o dever extrapenal de cooperação com o Estado e o princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere ou nemo tenetur se ipsum accusare).

Em breve, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá oportunidade de dirimir querela que ilustra bem essa tensão. No dia 28 de fevereiro deste ano, no Recurso Extraordinário 1224374, a Corte reconheceu a existência de repercussão geral de questão concernente à constitucionalidade do art. 165-A, do CTB, que classifica como infração gravíssima, sujeita a multa e suspensão do direito de dirigir por doze meses, a conduta de “recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277”.

No caso subjacente ao RE, tratava-se de recusa de realização de teste de alcoolemia (bafômetro). Anteriormente, o relator do recurso, o min. Luiz Fux, havia determinado o sobrestamento do feito até o julgamento da ADI 4103, proposta pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel Nacional).

Nesta ADI 4103, são questionados alguns dispositivos da chamada Lei Seca (Lei 11.705/2008), entre eles o que introduziu o §3º ao art. 277 do CTB (cuja atual redação foi dada pela Lei 13.291/2016), que dispõe: “§ 3o Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165-A deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo”.

Na Petição Inicial da ADI 4103, aduziu-se que a imposição de penalidade administrativa à recusa de realizar teste de alcoolemia violaria o princípio da não autoincriminação, apontando que “o inciso LXIII do art. 5º da CF permite que o cidadão se recuse a fazer prova contra si mesmo” (p. 26, Petição Inicial).

Em seu Parecer, a Procuradoria Geral da República aderiu à tese da inconstitucionalidade da norma por violação do nemo tenetur se detegere (p. 39, Parecer PGR). Como será visto à frente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) segue entendimento diverso, não enxergando incidência do princípio do nemo tenetur na hipótese.

A questão a ser apreciada pelo STF, de grande importância prática para enorme parcela da população, nos convida a rediscutir o escopo e os limites do princípio[1] do nemo tenetur, sobretudo no que se refere à sua aplicação em contextos não- ou pré-penais.

Antes de enfrentar especificamente esse tópico (iii) e concluir apontando uma possível solução para o problema (iv), cabe analisar rapidamente a estrutura da infração administrativa em questão e o modo como a jurisprudência, especialmente do STJ, a enxerga (ii).

II. Estrutura da infração e o argumento da “independência das instâncias”

Em controle difuso, discute-se se a penalidade administrativa pela mera recusa do cidadão a submeter-se a procedimentos de aferição de alcoolemia não seria desproporcional e, consequentemente, inconstitucional, sobretudo nos casos em que o cidadão não apresente qualquer sinal de embriaguez.

Em precedente da Segunda Turma[2], o STJ destaca que o CTB instituiu duas infrações autônomas, embora com o mesmo apenamento: (i) dirigir embriagado; (ii) recusar-se o condutor a se submeter a procedimentos que permitam aos agentes de trânsito apurar seu estado.

E aduz que a “recusa em se submeter ao teste do bafômetro não presume a embriaguez do art. 165 do CTB, tampouco se confunde com a infração ali estabelecida. Apenas enseja a aplicação de idêntica penalidade”.

E argumenta: “a identidade de penas, mercê da diversidade de tipos infracionais, nada mais é do que resultado lógico da previsão legislativa de mecanismo para assegurar efetividade à determinação de regras de conduta compatíveis com a política pública estabelecida pela norma”.

A argumentação normológica do STJ é, no mínimo, plausível. Não é pressuposto da norma que proíbe a recusa de realizar exame de alcoolemia que o cidadão apresente sinais de embriaguez. Trata-se de norma que pune a mera desobediência administrativa. Poder-se-ia questionar, isso sim, a proporcionalidade (em sentido constitucional, da intervenção em direito fundamental) de tal dispositivo.

Certamente é possível apontar um fim legítimo para a norma, que é prevenir que cidadãos conduzam veículos sob efeito de álcool, evitando acidentes. De igual modo, pode-se dizer que a norma é adequada para atingir tal fim, vez que a verificação de alcoolemia no sangue sujeitaria o indivíduo às penas previstas no art. 306 do Código Penal[3], inibindo-o de dirigir embriagado.

Restaria analisar se essa intervenção no direito de locomoção (art. 5º, XV, CF), consubstanciada na punição da recusa de submissão a procedimentos de teste, também se revela necessária e, principalmente, razoável (ou proporcional em sentido estrito).[4] É tarefa de nossa dogmática constitucional realizar tal análise com mais profundidade.

O que nos interessa aqui é o possível conflito da norma com a proibição de autoincriminação. O STJ nega qualquer violação constitucional utilizando-se do conhecido argumento da “independência das instâncias” administrativa e penal:

“O princípio nemo teneteur se detegere tem origem na garantia constitucional contra a autoincriminação e no direito do acusado de permanecer calado, sem ser coagido a produzir provas contra si mesmo. Aplica-se de forma irrestrita aos processos penais, sendo essa a sua esfera nuclear de proteção.

É possível admitir a incidência ampliada do princípio nemo teneteur se detegere quando determinada infração administrativa também constituir ilícito penal. Nesses casos, a unicidade de tratamento confere coerência interna ao sistema jurídico.

Nas situações em que a independência das instâncias é absoluta e os tipos infracionais distintos, a garantia do nemo teneteur se detegere não tem aplicação sobre a função administrativa exercida no âmbito da sua competência ordenadora, por falta de amparo no ordenamento pátrio.

[…]

Não há incompatibilidade entre o princípio nemo tenetur se detegere e o §3º do art. 277 do CTB, pois este se dirige a deveres instrumentais de natureza estritamente administrativa, sem conteúdo criminal, em que as sanções estabelecidas têm caráter meramente persuasório da observância da legislação de trânsito.

Além do argumento da independência das instâncias, afirma o Tribunal que inexistiria coação física ou moral para que o condutor do veículo se submeta ao teste de alcoolemia, etilômetro ou bafômetro, podendo o “condutor livremente optar por não realizar o teste, assumindo os ônus legais correspondentes”.

Acrescenta ainda que a exigência legal de submissão a exame técnico ou científico não é exclusividade do CTB, pois também constaria dos arts. 231 e 232 do Código Civil, tendo o STJ editado a Súmula 201, de seguinte teor: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”.

Ambas linhas de argumentação não convencem. O argumento da “independência das instâncias” é vazio, circular, pois pressupõe aquilo que deveria provar, a saber: que as instâncias são verdadeiramente independentes, que não se comunicam. A Súmula 24 do STF (“não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”), a despeito de suas deficiências, é apenas um exemplo da possível interdependência entre as esferas administrativa e penal.

Certamente há casos em que os juízos administrativo ou civil e o penal são soberanos e verdadeiramente independentes.[5] Porém, a aferição concreta de independência entre as instâncias será apenas parcial, pertinente a apenas certas hipóteses ou grupos de caso, mas não um argumento apriorístico.

Não se trata de um princípio, de caráter universal, que compreende todo o direito ou um ramo do direito, como o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, CF), do qual se podem deduzir subprincípios (como o da taxatividade) e orientar a resolução de casos concretos.

Igualmente não prospera o argumento segundo o qual não haveria qualquer coação contra o cidadão submetido à norma que reprime a recusa em submeter-se a exame de alcoolemia e que o dever por ela erigido teria natureza puramente administrativa, isento de qualquer efeito criminal.

A diferença entre a hipótese aqui considerada e os exemplos usados pelo STJ do exame de DNA para aferição de paternidade está no fato de que o cumprimento do dever de realização de teste de alcoolemia, imposto de modo coativo pela norma, pode futuramente servir de prova contra o cidadão em um processo penal com vistas à responsabilização pelo crime do art. 306 CTB, o que não acontece no caso do exame de DNA.

Desse modo, através de norma como a do art. 165-A CTB, o cidadão se vê, obliquamente, coagido a produzir prova contra si mesmo em um processo penal.

Isso não quer dizer, contudo, que a norma infracional administrativa deva, por essa razão, ser declarada inconstitucional. O art. 165-A CTB não é o único exemplo de regra que impõe deveres de colaboração do cidadão com o Estado, cujo cumprimento pode ter caráter (auto)incriminatório.

Esse tema, a relação entre deveres de colaboração civis ou administrativos e o nemo tenetur, é ainda pouco estudado no Brasil, mas já é objeto de discussões mais avançadas no direito comparado.[6]

III. Infrações administrativas e o princípio nemo tenetur se ipsum accusare

O direito à não autoincriminação, cuja principal decorrência é o direito do réu de permanecer em silêncio durante o interrogatório judicial (art. 5º, LXIII), é reconhecido na doutrina e na jurisprudência como de estatura constitucional.[7] Trata-se ainda de um direito internacionalmente consagrado, comumente derivado do direito a um processo justo.[8]

Contudo, costuma-se compreender esse princípio para além da literalidade do art. 5º, LXIII, CF, reconhecendo-se que o direito à não autoincriminação proíbe que o indivíduo seja obrigado a prestar qualquer colaboração a favor de sua incriminação em um processo criminal.

Essa concepção ampla[9], que abarca desde declarações até a produção e entrega de documentos, é adotada pelo STF: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece ao privilégio contra a autoincriminação um âmbito de aplicação mais extenso do que o simples direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII). Como regra geral, garante-se ao acusado o direito de não ser submetido a nenhuma forma de cooperação ativa compulsória.

Nesse sentido, a Corte já reconheceu o direito do réu de não ser obrigado a participar de reconstituição simulada da cena do crime (HC 69026, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10.12.1991), de não fornecer material gráfico de próprio punho para a investigação (HC 77135, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 08.09.1998) e de não prover padrões vocais para exame pericial (HC 83096, Min. Ellen Gracie, j. 18.11.2003)” (STF, RE 1126405, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 01/08/2019).

No mesmo sentido parece alinhar-se o STJ: “O réu possui o direito de não produzir prova contra si mesmo, não sendo obrigado a se submeter a exames ou perícias que possam demonstrar a sua responsabilidade por determinado fato criminoso” (STJ, 5ª Turma, RHC RHC 35801 SP, Rel. Jorge Mussi, 08/10/2013).[10]

Questão sensível se coloca nas hipóteses em que o ato de coação à colaboração com o Estado situa-se fora do processo penal, precisamente o caso do art. 165-A CTB.[11] Trata-se de casos nos quais o dever de colaboração é estatuído em relações civis ou administrativas e cujo cumprimento pode produzir material probatório a ser usado contra o colaborador em processo penal.

Especialmente a jurisprudência alemã reconhece, há algum tempo, a incidência do princípio do nemo tenetur em procedimentos civis e disciplinares.[12] Já em 1981, o Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) teve oportunidade de analisar um desses casos à luz do direito de não produzir prova contra si mesmo.

Tratava-se da possível lesão a direito fundamental do devedor (Gemeinschuldner) que, por força do Código de Falências (Konkursordnung), tinha irrestrito dever de declaração (Aussagepflicht), para cujo cumprimento o Estado poderia se valer de meios coativos. O Tribunal estabeleceu que, se o indivíduo vier a revelar ações criminosas, suas declarações não podem ser usadas contra sua vontade em um processo criminal contra ele (BVerfGE 56, 39).

Em outro exemplo alemão, tem-se o § 393 do Código Fiscal alemão (Abgabenordnung) que, no inciso primeiro, proíbe o uso de meios de coação contra o contribuinte na hipótese em que ele é obrigado é obrigado produzir elementos (declarações, entregar documentos, prestar informações etc) que comprovem a prática de um crime ou infração fiscal; e, no inciso segundo, proíbe que sejam utilizadas como prova no processo penal as informações fornecidas pelo contribuinte ao Fisco com base um dever tributário de declaração.[13]

No Brasil, embora também existam deveres declaratórios no âmbito tributário,[14] inexiste semelhante regra que resguarde o contribuinte de autoincriminar-se. [15]

A tensão entre deveres de colaboração e informação fora do processo e o nemo tenetur está presente também no caso de investigações internas em empresas. Pela ubiquidade dessa prática no mundo corporativo, esse problema é discutido intensamente na doutrina e na jurisprudência em ambos grandes sistemas jurídicos, o da common law e o romano-germânico.

No início de 2019, foi exarada emblemática decisão no South District de Nova York (Commission United States v. Connolly et al., ECF No. 432, de 2 de maio de 2019). Em um caso em que as provas usadas para a condenação criminal de um banqueiro decorreram de investigação interna conduzida pelo advogado do banco, o “Chief Judge” afirmou ter havido violação ao direito à não autoincriminação, previsto na 5ª Emenda[16] da Constituição norte-americana.

O magistrado sustentou que as informações prestadas pelo banqueiro, que constituíram o principal material probatório para a condenação, foram obtidas sob coação estatal, pois a investigação interna teria sido incitada e controlada de perto pela Commodity Futures Trading Commission.

O tema é ainda intensamente discutido na ciência jurídica alemã, podendo-se já registrar uma miríade de posições, com destaque para duas fundamentais: uma afirmando que, com base no direito civil-trabalhista, o empregado teria direito a se recusar a prestar declarações e outra, com base no direito processual penal, que institui uma proibição de utilizar como prova no processo criminal as declarações do empregado, nas hipóteses em que a investigação interna é induzida ou aproveitada (aguardando o desfecho da investigação para propositura de ação penal) pelo Ministério Público.[17]

Possível solução: Declaração de constitucionalidade com proibição de valoração da prova

Admitindo-se que, em face da possibilidade de posterior utilização no processo penal dos resultados do teste de alcoolemia, a imposição da submissão ao teste – por meio da ameaça de sanção administrativa (art. 165-A CTB) – viola o princípio do nemo tenetur, abrem-se três possibilidades: a) declarar a norma inconstitucional; b) declarar a norma constitucional, sem qualquer ressalva; c) declarar a norma constitucional, ressalvando a proibição de utilização ou valoração do teste de alcoolemia como prova no processo penal. [18]

Como já esboçado acima, as soluções a) e b) são insatisfatórias, pois, respectivamente, impedem a consecução da legítima finalidade pública perseguida pelo legislador e menoscabam o direito fundamental do cidadão de não se autoincriminar. A solução c) revela-se a mais promissora, muito embora sua correção e estrutura dogmático-processual ainda necessitem ser meticulosamente investigadas e desenvolvidas.

A proibição de utilização ou valoração da prova não é um instituto tradicional do sistema processual brasileiro, que se funda na teoria das nulidades ou no binômio ilicitude/inadmissibilidade (art. 157 CPP: “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”), que tende a desembocar num tudo ou nada.

Concretamente: a não utilização do resultado do teste de alcoolemia pressuporia a declaração de nulidade da prova e a ilicitude da norma que permite sua obtenção – o que redundaria na solução a), insatisfatória, como vimos. Instituir uma proibição de valoração da prova, sem declarar ou pressupor a ilicitude de sua obtenção evitaria esse problema.

É verdade que a teoria da proibição de valoração da prova é prenhe de nós e dúvidas, que ainda carecem de esclarecimento, que vão desde seus fundamentos até seu alcance.[19]

No entanto, ela merece ser, no mínimo, discutida e desenvolvida por nossa dogmática processual penal, que já começa a dela tomar nota.[20] Essa figura também já foi levada em consideração em acórdão no STF. No HC 127.483/PR, o min. Dias Toffoli, em seu voto condutor, com base no direito italiano, refere-se a “inutilizabilidade” da prova, esclarecendo: “Essa sanção processual da inutilizabilidade não atinge o ato em si, que subsiste válido do ponto de vista formal, mas tão somente seu valor probatório, constituindo um limite ao livre convencimento do juiz”.

No que tange à riqueza dos problemas e a necessidade de estudos mais profundos, o  mesmo se pode dizer dos fundamentos e alcance do princípio do nemo tenetur, bem como das consequências processuais de sua violação.[21]

Os modernos e crescentes deveres de colaboração do particular com o Estado, exemplificado na norma do art. 165-A CTB, demonstram a atualidade e a urgência do tema.

* O autor agradece a Alaor Leite, Marcelo Cavali, Ronan Rocha e Heloisa Estellita pelas leitura prévias e pelas sugestões feitas ao texto.


[1] Usa-se aqui “princípio” em sentido amplo, sem correlação exata com a distinção entre princípios e regras no âmbito da teoria dos direitos fundamentais (cf. por todos Alexy, Robert. Theorie der Grundrechte, Suhrkamp: Berlim, 1994, p. 71 e ss., passim). Limito-me a dizer que me inclino a enxergar o direito à não-autoincriminação como regra, imune a qualquer ponderação, a exemplo de outras normas de alto nível de generalidade como a da legalidade penal e da culpabilidade, que apesar de comumente serem designadas como “princípios”, possuem natureza de regra na linguagem alexyana (cf. Alexy, cit., p. 92-93).

[2] Segunda Turma, REsp 1.677.380/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Data do Julgamento: 10.10.2017; no mesmo sentido AgInt no REsp Nº 1.719.584/RJ, relator Ministro Herman Benjamin, Data do Julgamento: 08.11.2018.

[3] Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência. Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

[4] Cf. Afonso da Silva, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, 2ª ed.. Malheiros: São Paulo, 2017, p. 167 ss.; Ávila, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 18ª ed., Malheiros: São Paulo, 2018, p. 205 e ss.; Dimoulis, Dimitri/Martins, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, 6ª ed., Revista dos Tribunais: São Paulo, 2018, p. 207 ss.; Sousa Filho, Ademar Borges de. O controle de constitucionalidade de leis penais no Brasil, Forum: Belo Horizonte, 2019, p. 277 ss.

[5] Sobretudo, conforme desenvolve Cavali, Marcelo. Manipulação do mercado de capitais: Fundamentos e limites da repressão penal e administrativa, Quartier Latin: São Paulo, 2018, p. 356 ss, quando se trata de (interpretação de) questões eminentemente jurídicas, em contraposição a questões fáticas e técnicas.

[6] Cf. Verrel, Torsten. Nemo tenetur – Rekonstruktion eines Verfahrensgrundsatzes – 1. TeiL. NStZ 1997, p. 361 e ss; Berruezo, Rafael. La autoincriminación en el derecho penal tributário, Buenos Aires, 2015, p. 86; Peralta, José Milton. Concepciones del derecho a no autoincriminarse y criminalidad de cuello blanco, in: Peralta/Rusca (ed.), Fundamentos del Derecho Penal y delitos de cuello blanco, 2019, p. 243 e ss.

[7] Cf. STF HC 68.929-9 SP, Primeira Turma, Rel. Min. Celso de Mello, 22/10/1991.

[8] Cf. Corte Europeia de Direitos Humanos, Allan v. The United Kingdom, 5/11/2002: “As regards the privilege against self-incrimination or the right to silence, the Court has reiterated that these are generally recognised international standards which lie at the heart of a fair procedure”.

[9] Peralta, cit., p. 244.

[10] No mesmo sentido posicionou-se o Superior Tribunal Militar: “Com fundamento no princípio nemo tenetur se detegere, o acusado não deve ser compelido a fornecer material para subsidiar exame grafotécnico que leve à sua autoincriminação, cabendo a observância do preceito constitucional insculpido no inciso LXIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 que veda a autoincriminação do indiciado ou acusado.” (STM HC 0000068-98.2016.7.00.0000 RJ, Rel. José Coelho Ferreira, 10/05/2016).

[11] Nos Estados Unidos, a questão não é tratada sob a ótica do nemo tenetur, mas sim da intensidade, do caráter incisivo da intervenção no direito de liberdade do cidadão e da necessidade de autorização judicial para a intervenção. A Suprema Corte, em Birchfield v. North DakotaBirchfield v. North Dakota (136 S. Ct. 2160, 2016), declarou que testes de bafômetro podem ser aplicados sem autorização judicial, diferentemente de testes de sangue, cuja aplicação pressupõe decisão judicial: “The Fourth Amendment permits warrantless breath tests incident to arrests for drunk driving but not warrantless blood tests. […] Because breath tests are significantly less intrusive than blood tests and in most cases amply serve law enforcement interests, a breath test, but not a blood test, may be administered as a search incident to a lawful arrest for drunk driving. No warrant is needed in this situation”.

[12] Com diversos exemplos da jurisprudência Rogall, Klaus. Vorbemerkungen vor § 133 StPO, em: Wolter (org), SK-StPO Systematischer Kommentar zur Strafprozessordnung Band II, 5a ed, 2016, nm. 144 ss.

[13] A respeito Joecks, Wolfgang. § 393 Verhältnis des Strafverfahrens zum Besteuerungsverfahren, em: Joecks/Jäger/Randt (org.), Steuerstrafrecht 8. Ed., 2015, nm. 5 ss, que reputa essa solução legislativa constitucionalmente obrigatória, em vista do princípio do nemo tenetur se detegere.

[14] Cf., por exemplo, o art. 971 do Decreto 9.580/2018: As pessoas físicas ou jurídicas, contribuintes ou não, ficam obrigadas a prestar as informações e os esclarecimentos exigidos pelos Auditores-Fiscais da Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda no exercício de suas funções, hipótese em que as declarações serão tomadas por termo e assinadas pelo declarante.”; e o art. 1º, parágrafo único da Lei 8.137/1990: “A falta de atendimento da exigência da autoridade [negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação], no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V[negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação]”.

[15] A respeito da tensão entre deveres tributários de informação e o nemo tenetur cf. Estellita, Heloisa. Dever de colaboração do contribuinte e nemo tenetur se detegere. Revista Dialética de Direito Tributário n. 88, 2003, p. 38-45.

[16] “No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation.”

[17] A respeito, com diversas referências, e defendendo a última posição Greco, Luís/Caracas, Christian. Internal investigations und Selbstbelastungsfreiheit, em: Neue Zeitschrift für Strafrecht (NStZ) 2015, p. 7-15; publicado também em português:  Internal Investigations e o princípio da não auto-incriminação, em: Lobato/Martinelli/Santos (ed). Comentários ao direito penal econômico brasileiro, 2017, Tradução: Orlandino Gleizer e Mario Helton Jorge Jr., p. 787-819.

[18] A respeito dos modelos de solução desse tipo de controvérsia cf. Werkmeister, Andreas. Strafprozessuale Folgen außerstrafprozessualen Auskunftszwangs am Beispiel von § 97 Abs. 1 S. 3 InsO und § 393 Abs. 2 AO Trendwende bei der Fernwirkung von nemo-tenetur Verstößen? In Goeckenjan et al (org.), Für die Sache – Kriminalwissenschaften aus unabhängiger Perspektive Festschrift für Ulrich Eisenberg zum 80. Geburtstag, Duncker & Humblot: Berlim, 2019, p. 576 ss.

[19] Cf. por todos Greco, Luís. Warum gerade Beweisverbot? Ketzerische Bemerkungen zur Figur des Beweisverbots, em Stein et al (org.), Systematik in Strafrechtswissenschaft und Gesetzgebung: Festschrift für Klaus Rogall zum 70. Geburtstag am 10. August 2018, Duncker & Humblot: Berlim, 2018, p. 485-515.

[20] Cf. Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal, 6ª Ed., Revista dos Tribunais: São Paulo, 2018, p. 413: “Em suma, mais relevante do que distinguir entre nulidade e inadmissibilidade, é prever a inutilizibilidade da prova ilícita, impossibilitando sua valoração”

[21] Rogall,  Klaus. Die Selbstbelastungsfreiheit vor neuen Herausforderungen, in: Fahl/Müller/Satzger/Swoboda (Hrsg.), Festschrift für Werner Beulke zum 70. Geburtstag, C.F. Müller, 2015, p. 973: “Praxis und Wissenschaft ist es aber bisher nicht gelungen, den Gewährleistungsumfang der Selbstbelastungsfreiheit in überzeugender Weise zu bestimmen“ (Prática e ciência ainda lograram determinar, de modo convincente, o alcance de garantia da liberdade de (não)autoincriminação), tradução livre.

ADRIANO TEIXEIRA – Doutor e mestre (LL.M) pela Universidade Ludwig-Maximilian, de Munique. Professor da FGV Direito SP e advogado.

 


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