terça-feira, 14 de julho de 2020

Tribunal do júri e jurados em tempos de pandemia: proposta de resolução do CNJ



Objeções à Proposta de Resolução do CNJ estão mais relacionadas ao estranhamento com o novo do que preocupadas em cotejar as inovações

13/07/2020 13:25

Crédito Conselho Nacional de Justiça - CNJ

A realização das sessões de julgamento do tribunal do júri foi suspensa em todo o país, diante da pandemia do Novo Coronavírus (SARS-CoV-2). A aglomeração de pessoas é inerente ao modelo tradicional. Compõem o Tribunal do Júri em torno de 25 jurados (precisa haver, no mínimo, 15 para ser instalada a sessão do tribunal do júri – art. 463, CPP). Além disso, há a presença dos profissionais que atuam em plenário, incluindo juiz, secretário, oficiais de justiça, representantes do Ministério Público e da Defesa, policiais, equipe de segurança e escolta, além de réu, vítima, testemunhas e do público que assiste ao julgamento. Então, como permitir a retomada das sessões de julgamento pelo tribunal do júri em tempos de pandemia?

Essa questão tem ganhado centralidade nos sistemas de justiça que adotam o modelo do tribunal do júri. Na Inglaterra, por exemplo, estão em pauta, entre as soluções possíveis, suspender a instituição do tribunal do júri, para que os crimes sejam julgados por um juiz singular, ou reduzir o número de jurados, de 12 para 7.[1]

No Brasil, a Proposta de Resolução que tramita no CNJ para possibilitar a retomada dos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida, em tempos de pandemia, é bem mais tímida, pois envolve questões meramente de rotinas, práticas ou formas. Ao mesmo tempo, parece bastante factível e viável. A Proposta busca viabilizar o apoio da videoconferência no tribunal do júri, de modo que, na instrução em plenário, as oitivas de vítima e testemunhas ocorreriam com uso dessa tecnologia. Além disso, para garantir a publicidade do ato, todo o julgamento seria filmado, de modo que o público em geral poderia acompanhá-lo pela plataforma de videoconferência, mediante link disponibilizado pela Vara.[2]

A Proposta de Resolução também admite o início da sessão de julgamento em meio virtual. De acordo com o seu art. 4º, §§ 1º e 2º, “após o sorteio, o ato deve ser suspenso, para que o magistrado, os jurados sorteados, o secretário de audiência e os oficiais de justiça, no mesmo dia, se façam presentes à sala de sessões plenárias do Tribunal do Júri”, onde também deverão comparecer “os representantes do Ministério Público, da Defesa e o réu, se solto”, se estes assim desejarem (MP, Defesa e acusado solto podem optar entre comparecer virtualmente, por videoconferência, ou fisicamente ao ato).

Com isso, haveria a redução do quantitativo de jurados que teriam de comparecem ao fórum, de cerca de 25 (precisa haver o mínimo de 15 jurados, sob pena de não ser instalada a sessão – art. 463, CPP) para 9 jurados (7 titulares e 2 suplentes).

Sobre esse ponto da Proposta, surgiram algumas críticas. A primeira delas diz respeito à incomunicabilidade dos jurados. Alguns dizem que esse dispositivo da Resolução encontraria óbice no art. 466, § 1º, do CPP, que dispõe que “o juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, na forma do § 2º do art. 436 deste Código”.
Ocorre que, embora essa efetivamente deva ser uma advertência que o juiz faz, os 7 (sete) jurados somente passam a efetivamente integrar o Conselho de Sentença a partir do momento em que têm assento na bancada de julgamento e é tomado o seu juramento, previsto no art. 472 do CPP, mais especificamente, após responderem “Assim o prometo”.

Aliás, após o jurado ser sorteado, a Defesa e o Ministério Público exercem o direito a recusas (motivadas e imotivadas), sendo que cada um pode rejeitar imotivadamente até 3 jurados (art. 468, CPP). Não havendo recusas, o jurado se dirige ao tablado, posicionando-se em uma das 7 cadeiras de jurados. Vale dizer, quando o jurado é sorteado, isso não significa que ele integrará o Conselho de Sentença, pois há a fase de recusas, de modo que não se pode dizer que a incomunicabilidade se iniciou nesse momento.

Além disso, é somente após o juramento que se inicia a instrução do processo, com oitiva de vítima, testemunhas e réu. O objetivo do CPP com a imposição da incomunicabilidade é fazer com que, uma vez iniciada a fase de instrução, cada jurado passe a ser informado sobre o processo e decida de acordo com sua íntima convicção.

Ademais, na prática, quando toma conhecimento que foi sorteado e não houve sua recusa (ou seja, quando sabe que integrará efetivamente o Conselho de Sentença), o jurado comumente entra em contato com a família e com o empregador para comunicar que, naquele dia, terá de servir ao Tribunal do Júri e que permanecerá incomunicável. O seu aparelho celular somente é recolhido pelo oficial de justiça antes de posicionar-se na cadeira de jurado. Assim, dizer que a incomunicabilidade se inicia com o sorteio não condiz com a realidade, pois, se assim o fosse, todas as sessões do tribunal do júri já realizadas no país seriam nulas.

Assim, seja por interpretação sistemática do Código de Processo Penal, seja pela forma como os atos ocorrem na práxis, é somente após o juramento que os jurados passam a efetivamente integrar o conselho de sentença e devem ficar incomunicáveis.

Desse modo, não haveria qualquer irregularidade em se iniciar a sessão do júri em meio virtual, momento em que haveria o sorteio dos 7 jurados e 2 suplentes, de modo que somente estes teriam de comparecer ao fórum, juntamente com juiz, promotor, defensor, oficiais de justiça, secretário de audiência e outras pessoas necessárias à realização do tribunal do júri (art. 4º da Proposta de Resolução).

De outro lado, alguns questionam que, como se reduziria de 25 para 9 o número de jurados que se fariam presentes fisicamente, estes poderiam sofrer maiores pressões ou ameaças pelo réu. Embora, em uma análise mais apressada, tal argumento pareça ter, abstratamente, alguma lógica, na prática do tribunal do júri, com o apoio da videoconferência, o que ocorrerá é exatamente o oposto disso.

Com efeito, no dia a dia do tribunal do júri, o que se observa é que os jurados sofrem algum tipo de intimidação, velada ou expressa, de amigos ou familiares do réu ou da vítima quando eles estão entrando no fórum para se dirigirem à sala de sessões plenárias do Júri, antes do julgamento ou, sobretudo, na saída do local, quando os 7 jurados, após terem realizado o julgamento, se deslocam ao seu meio de transporte para retornarem às suas residências. Como é cediço para aqueles que efetivamente trabalham no júri, os jurados são escoltados à parada de ônibus ou até os seus veículos quando da sua saída do fórum. Aliás, muitos deles precisam voltar para as suas residências no mesmo transporte público utilizado por pessoas que assistiram ao julgamento (muitas vezes, parentes do réu ou da vítima).

Com o apoio da videoconferência[3], esses problemas de tensão e de possíveis ameaças a jurados deixam de existir ou são bastante minimizados, tendo em vista que o público em geral (parentes e conhecidos do réu e da vítima) não podem estar presentes na sala de sessões plenárias do tribunal do júri, pois devem acompanhar todo o julgamento virtualmente, mediante link de acesso disponibilizado pela Vara. Contudo, caso se façam presentes no local, poderá haver uma atuação mais direcionada da polícia ou da equipe de segurança, já que se saberá que estão ali para pressionar jurados, vítima e testemunhas, porque não haveria razão alguma para estarem no fórum.

Ademais, quando são sorteados os 9 jurados (7 titulares e 2 suplentes) virtualmente, o juiz deve marcar a retomada da sessão em meio presencial com a maior brevidade possível (apenas o tempo necessário ao deslocamento do jurado e das partes até o fórum), razão pela qual não há lapso temporal suficiente para que sejam localizados os endereços dos jurados (o endereço dos jurados não fica disponível para as partes) e estes sejam ameaçados.

Além disso, se os jurados sorteados forem de alguma forma procurados pelo réu ou por seus conhecidos, estará presente o crime de coação no curso do processo (art. 344 do Código Penal), razão pela qual eles simplesmente comunicarão o ocorrido ao Juiz Presidente, que cancelará a sessão de julgamento e tomará as providências contra quem cometeu o delito.

Também existe a crítica de que, com o início da sessão em meio virtual, o jurado, após sorteado, poderia procurar obter informações e conhecer o processo. No entanto, esse argumento também não se sustenta. Em primeiro lugar, porque o interregno temporal entre o sorteio (em meio virtual), com a suspensão do ato, e a retomada da sessão de julgamento em meio presencial, é muito breve, apenas o necessário para o deslocamento.

Além disso, os dados sobre os processos e as datas em que serão julgados pelo tribunal do júri ficam disponíveis aos jurados e ao público em geral (art. 435, CPP), de modo que qualquer jurado pode buscar informações sobre os casos que julgará no seu período de convocação. Ademais, na prática, parece que não há qualquer lógica em pensar que o jurado, entre o momento do sorteio virtual e o seu deslocamento para o fórum, buscará dados sobre o processo que julgará, quando ele sabe que todas as informações sobre o processo serão prestadas durante a instrução em plenário e as sustentações das partes, além do que ele possui acesso a todo o processo durante o julgamento, no momento em que solicitar (art. 480, § 3º, CPP).

Com a proposta de Resolução do CNJ, além de não haver qualquer afronta à legalidade, tampouco prejuízo às partes, reduz-se muito o quantitativo de jurados que precisam comparecer fisicamente à sessão de julgamento do tribunal do júri, evitando-se aglomerações e minimizando-se as possiblidades de contágio da COVID-19.

Mas não é só isso, pois há, ainda, diversas outras vantagens. Por exemplo, também permite que os jurados não sorteados possam trabalhar normalmente, reduzindo-se pressões por demissões. Além disso, como os jurados já foram sorteados, entrarão na sala das sessões plenárias e se posicionarão diretamente nas cadeiras destinadas a eles, que poderão ser disponibilizadas no local onde ficaria o público (pois o público acompanhará o julgamento virtualmente), para se garantir a distância mínima entre os jurados, minimizando-se os riscos de contágio.

As objeções à Proposta de Resolução do CNJ estão, em sua maioria, mais relacionadas ao estranhamento com o novo, com a dificuldade de romper o status quo, do que preocupadas em cotejar as inovações propostas com os parâmetros legais e constitucionais. Diante de situações que desafiam soluções inéditas, não é razoável a postura de simplesmente buscar impedir qualquer mudança, pelo apego a formalismos desnecessários.

Portanto, é preciso encontrar oportunidades no fluxo e alterações na práxis, o que deve ser fruto de uma construção coletiva. A Proposta de Resolução do CNJ, quando prevê o início da sessão e o sorteio dos jurados em meio virtual, não pretende flexibilizar direitos, senão modernizar o sistema de justiça e implementar mudanças positivas, garantindo-se a retomada das sessões de julgamento do júri, com a preservação dos direitos do réu e das prerrogativas das partes e, ao mesmo tempo, com a segurança de todos.
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[1] Catherine Bennett. Abandon trial by jury? That would hardly restore trust in the justice system. The Guardian, 21 jun. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/jun/21/abandon-trial-by-jury-that-would-hardly-restore-trust-in-the-justice-system>. Acesso em: 6 jul. 2020.
[2] Sobre a utilização de videoconferência no Tribunal do Júri, vide: CRUZ, Rogerio Schietti. LUNARDI, Fabrício Castagna; GUERREIRO, Mário Augusto Figueiredo de Lacerda. Tribunal do júri com apoio de videoconferência: pela ética do discurso. CONJUR, 29 jun. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/opiniao-tribunal-juri-apoio-videoconferencia>.  Acesso em: 6 jun. 2020.
[3] Sobre a utilização de videoconferência no Tribunal do Júri, vide: CRUZ, Rogerio Schietti. LUNARDI, Fabrício Castagna; GUERREIRO, Mário Augusto Figueiredo de Lacerda. Tribunal do júri com apoio de videoconferência: pela ética do discurso. CONJUR, 29 jun. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/opiniao-tribunal-juri-apoio-videoconferencia>.  Acesso em: 6 jun. 2020.
FABRÍCIO CASTAGNA LUNARDI – Juiz de Direito no TJDFT, Titular do Tribunal do Júri de Samambaia, Membro do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e Doutor em Direito pela UnB.
PAULO MARCOS DE FARIAS – Juiz de Direito do TJSC, Titular da Vara do Tribunal do Júri de Florianópolis, Membro do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ), ex-Juiz Instrutor/Auxiliar do STF e Mestre em Ciências Jurídicas pela Univali.


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