terça-feira, 14 de julho de 2020

Tribunal do júri e jurados em tempos de pandemia: proposta de resolução do CNJ



Objeções à Proposta de Resolução do CNJ estão mais relacionadas ao estranhamento com o novo do que preocupadas em cotejar as inovações

13/07/2020 13:25

Crédito Conselho Nacional de Justiça - CNJ

A realização das sessões de julgamento do tribunal do júri foi suspensa em todo o país, diante da pandemia do Novo Coronavírus (SARS-CoV-2). A aglomeração de pessoas é inerente ao modelo tradicional. Compõem o Tribunal do Júri em torno de 25 jurados (precisa haver, no mínimo, 15 para ser instalada a sessão do tribunal do júri – art. 463, CPP). Além disso, há a presença dos profissionais que atuam em plenário, incluindo juiz, secretário, oficiais de justiça, representantes do Ministério Público e da Defesa, policiais, equipe de segurança e escolta, além de réu, vítima, testemunhas e do público que assiste ao julgamento. Então, como permitir a retomada das sessões de julgamento pelo tribunal do júri em tempos de pandemia?

Essa questão tem ganhado centralidade nos sistemas de justiça que adotam o modelo do tribunal do júri. Na Inglaterra, por exemplo, estão em pauta, entre as soluções possíveis, suspender a instituição do tribunal do júri, para que os crimes sejam julgados por um juiz singular, ou reduzir o número de jurados, de 12 para 7.[1]

No Brasil, a Proposta de Resolução que tramita no CNJ para possibilitar a retomada dos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida, em tempos de pandemia, é bem mais tímida, pois envolve questões meramente de rotinas, práticas ou formas. Ao mesmo tempo, parece bastante factível e viável. A Proposta busca viabilizar o apoio da videoconferência no tribunal do júri, de modo que, na instrução em plenário, as oitivas de vítima e testemunhas ocorreriam com uso dessa tecnologia. Além disso, para garantir a publicidade do ato, todo o julgamento seria filmado, de modo que o público em geral poderia acompanhá-lo pela plataforma de videoconferência, mediante link disponibilizado pela Vara.[2]

A Proposta de Resolução também admite o início da sessão de julgamento em meio virtual. De acordo com o seu art. 4º, §§ 1º e 2º, “após o sorteio, o ato deve ser suspenso, para que o magistrado, os jurados sorteados, o secretário de audiência e os oficiais de justiça, no mesmo dia, se façam presentes à sala de sessões plenárias do Tribunal do Júri”, onde também deverão comparecer “os representantes do Ministério Público, da Defesa e o réu, se solto”, se estes assim desejarem (MP, Defesa e acusado solto podem optar entre comparecer virtualmente, por videoconferência, ou fisicamente ao ato).

Com isso, haveria a redução do quantitativo de jurados que teriam de comparecem ao fórum, de cerca de 25 (precisa haver o mínimo de 15 jurados, sob pena de não ser instalada a sessão – art. 463, CPP) para 9 jurados (7 titulares e 2 suplentes).

Sobre esse ponto da Proposta, surgiram algumas críticas. A primeira delas diz respeito à incomunicabilidade dos jurados. Alguns dizem que esse dispositivo da Resolução encontraria óbice no art. 466, § 1º, do CPP, que dispõe que “o juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, na forma do § 2º do art. 436 deste Código”.
Ocorre que, embora essa efetivamente deva ser uma advertência que o juiz faz, os 7 (sete) jurados somente passam a efetivamente integrar o Conselho de Sentença a partir do momento em que têm assento na bancada de julgamento e é tomado o seu juramento, previsto no art. 472 do CPP, mais especificamente, após responderem “Assim o prometo”.

Aliás, após o jurado ser sorteado, a Defesa e o Ministério Público exercem o direito a recusas (motivadas e imotivadas), sendo que cada um pode rejeitar imotivadamente até 3 jurados (art. 468, CPP). Não havendo recusas, o jurado se dirige ao tablado, posicionando-se em uma das 7 cadeiras de jurados. Vale dizer, quando o jurado é sorteado, isso não significa que ele integrará o Conselho de Sentença, pois há a fase de recusas, de modo que não se pode dizer que a incomunicabilidade se iniciou nesse momento.

Além disso, é somente após o juramento que se inicia a instrução do processo, com oitiva de vítima, testemunhas e réu. O objetivo do CPP com a imposição da incomunicabilidade é fazer com que, uma vez iniciada a fase de instrução, cada jurado passe a ser informado sobre o processo e decida de acordo com sua íntima convicção.

Ademais, na prática, quando toma conhecimento que foi sorteado e não houve sua recusa (ou seja, quando sabe que integrará efetivamente o Conselho de Sentença), o jurado comumente entra em contato com a família e com o empregador para comunicar que, naquele dia, terá de servir ao Tribunal do Júri e que permanecerá incomunicável. O seu aparelho celular somente é recolhido pelo oficial de justiça antes de posicionar-se na cadeira de jurado. Assim, dizer que a incomunicabilidade se inicia com o sorteio não condiz com a realidade, pois, se assim o fosse, todas as sessões do tribunal do júri já realizadas no país seriam nulas.

Assim, seja por interpretação sistemática do Código de Processo Penal, seja pela forma como os atos ocorrem na práxis, é somente após o juramento que os jurados passam a efetivamente integrar o conselho de sentença e devem ficar incomunicáveis.

Desse modo, não haveria qualquer irregularidade em se iniciar a sessão do júri em meio virtual, momento em que haveria o sorteio dos 7 jurados e 2 suplentes, de modo que somente estes teriam de comparecer ao fórum, juntamente com juiz, promotor, defensor, oficiais de justiça, secretário de audiência e outras pessoas necessárias à realização do tribunal do júri (art. 4º da Proposta de Resolução).

De outro lado, alguns questionam que, como se reduziria de 25 para 9 o número de jurados que se fariam presentes fisicamente, estes poderiam sofrer maiores pressões ou ameaças pelo réu. Embora, em uma análise mais apressada, tal argumento pareça ter, abstratamente, alguma lógica, na prática do tribunal do júri, com o apoio da videoconferência, o que ocorrerá é exatamente o oposto disso.

Com efeito, no dia a dia do tribunal do júri, o que se observa é que os jurados sofrem algum tipo de intimidação, velada ou expressa, de amigos ou familiares do réu ou da vítima quando eles estão entrando no fórum para se dirigirem à sala de sessões plenárias do Júri, antes do julgamento ou, sobretudo, na saída do local, quando os 7 jurados, após terem realizado o julgamento, se deslocam ao seu meio de transporte para retornarem às suas residências. Como é cediço para aqueles que efetivamente trabalham no júri, os jurados são escoltados à parada de ônibus ou até os seus veículos quando da sua saída do fórum. Aliás, muitos deles precisam voltar para as suas residências no mesmo transporte público utilizado por pessoas que assistiram ao julgamento (muitas vezes, parentes do réu ou da vítima).

Com o apoio da videoconferência[3], esses problemas de tensão e de possíveis ameaças a jurados deixam de existir ou são bastante minimizados, tendo em vista que o público em geral (parentes e conhecidos do réu e da vítima) não podem estar presentes na sala de sessões plenárias do tribunal do júri, pois devem acompanhar todo o julgamento virtualmente, mediante link de acesso disponibilizado pela Vara. Contudo, caso se façam presentes no local, poderá haver uma atuação mais direcionada da polícia ou da equipe de segurança, já que se saberá que estão ali para pressionar jurados, vítima e testemunhas, porque não haveria razão alguma para estarem no fórum.

Ademais, quando são sorteados os 9 jurados (7 titulares e 2 suplentes) virtualmente, o juiz deve marcar a retomada da sessão em meio presencial com a maior brevidade possível (apenas o tempo necessário ao deslocamento do jurado e das partes até o fórum), razão pela qual não há lapso temporal suficiente para que sejam localizados os endereços dos jurados (o endereço dos jurados não fica disponível para as partes) e estes sejam ameaçados.

Além disso, se os jurados sorteados forem de alguma forma procurados pelo réu ou por seus conhecidos, estará presente o crime de coação no curso do processo (art. 344 do Código Penal), razão pela qual eles simplesmente comunicarão o ocorrido ao Juiz Presidente, que cancelará a sessão de julgamento e tomará as providências contra quem cometeu o delito.

Também existe a crítica de que, com o início da sessão em meio virtual, o jurado, após sorteado, poderia procurar obter informações e conhecer o processo. No entanto, esse argumento também não se sustenta. Em primeiro lugar, porque o interregno temporal entre o sorteio (em meio virtual), com a suspensão do ato, e a retomada da sessão de julgamento em meio presencial, é muito breve, apenas o necessário para o deslocamento.

Além disso, os dados sobre os processos e as datas em que serão julgados pelo tribunal do júri ficam disponíveis aos jurados e ao público em geral (art. 435, CPP), de modo que qualquer jurado pode buscar informações sobre os casos que julgará no seu período de convocação. Ademais, na prática, parece que não há qualquer lógica em pensar que o jurado, entre o momento do sorteio virtual e o seu deslocamento para o fórum, buscará dados sobre o processo que julgará, quando ele sabe que todas as informações sobre o processo serão prestadas durante a instrução em plenário e as sustentações das partes, além do que ele possui acesso a todo o processo durante o julgamento, no momento em que solicitar (art. 480, § 3º, CPP).

Com a proposta de Resolução do CNJ, além de não haver qualquer afronta à legalidade, tampouco prejuízo às partes, reduz-se muito o quantitativo de jurados que precisam comparecer fisicamente à sessão de julgamento do tribunal do júri, evitando-se aglomerações e minimizando-se as possiblidades de contágio da COVID-19.

Mas não é só isso, pois há, ainda, diversas outras vantagens. Por exemplo, também permite que os jurados não sorteados possam trabalhar normalmente, reduzindo-se pressões por demissões. Além disso, como os jurados já foram sorteados, entrarão na sala das sessões plenárias e se posicionarão diretamente nas cadeiras destinadas a eles, que poderão ser disponibilizadas no local onde ficaria o público (pois o público acompanhará o julgamento virtualmente), para se garantir a distância mínima entre os jurados, minimizando-se os riscos de contágio.

As objeções à Proposta de Resolução do CNJ estão, em sua maioria, mais relacionadas ao estranhamento com o novo, com a dificuldade de romper o status quo, do que preocupadas em cotejar as inovações propostas com os parâmetros legais e constitucionais. Diante de situações que desafiam soluções inéditas, não é razoável a postura de simplesmente buscar impedir qualquer mudança, pelo apego a formalismos desnecessários.

Portanto, é preciso encontrar oportunidades no fluxo e alterações na práxis, o que deve ser fruto de uma construção coletiva. A Proposta de Resolução do CNJ, quando prevê o início da sessão e o sorteio dos jurados em meio virtual, não pretende flexibilizar direitos, senão modernizar o sistema de justiça e implementar mudanças positivas, garantindo-se a retomada das sessões de julgamento do júri, com a preservação dos direitos do réu e das prerrogativas das partes e, ao mesmo tempo, com a segurança de todos.
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[1] Catherine Bennett. Abandon trial by jury? That would hardly restore trust in the justice system. The Guardian, 21 jun. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/jun/21/abandon-trial-by-jury-that-would-hardly-restore-trust-in-the-justice-system>. Acesso em: 6 jul. 2020.
[2] Sobre a utilização de videoconferência no Tribunal do Júri, vide: CRUZ, Rogerio Schietti. LUNARDI, Fabrício Castagna; GUERREIRO, Mário Augusto Figueiredo de Lacerda. Tribunal do júri com apoio de videoconferência: pela ética do discurso. CONJUR, 29 jun. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/opiniao-tribunal-juri-apoio-videoconferencia>.  Acesso em: 6 jun. 2020.
[3] Sobre a utilização de videoconferência no Tribunal do Júri, vide: CRUZ, Rogerio Schietti. LUNARDI, Fabrício Castagna; GUERREIRO, Mário Augusto Figueiredo de Lacerda. Tribunal do júri com apoio de videoconferência: pela ética do discurso. CONJUR, 29 jun. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/opiniao-tribunal-juri-apoio-videoconferencia>.  Acesso em: 6 jun. 2020.
FABRÍCIO CASTAGNA LUNARDI – Juiz de Direito no TJDFT, Titular do Tribunal do Júri de Samambaia, Membro do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e Doutor em Direito pela UnB.
PAULO MARCOS DE FARIAS – Juiz de Direito do TJSC, Titular da Vara do Tribunal do Júri de Florianópolis, Membro do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ), ex-Juiz Instrutor/Auxiliar do STF e Mestre em Ciências Jurídicas pela Univali.


segunda-feira, 13 de julho de 2020


Contaminações por Covid-19 no sistema prisional ultrapassam 10 mil casos

O número de infectados por Covid-19 em unidades do sistema prisional brasileiro chegou a 10.484 casos, crescimento de 110% nos últimos 30 dias. O monitoramento é uma iniciativa do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ) e é o único em escala nacional que traz dados sobre contaminações e óbitos de servidores e dados sobre o sistema socioeducativo, que chegou a 1.815 casos nesta semana.

Também foram atualizados nesta semana os dados levantados pelos Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (GMF) de Tribunais de Justiça. Nesta edição, subiu de oito para 17 o número de estados que detalharam dados sobre recursos disponíveis para o enfrentamento à pandemia em privação de liberdade, como equipamentos de proteção individual (EPIs), alimentação, fornecimento de água e material de higiene e limpeza, além de medicamentos e equipes de saúde. No caso do sistema socioeducativo, há informações sobre 20 estados.

Os GMFs informaram que foram realizados 10.528 testes em pessoas presas e 9.699 em servidores, enquanto no socioeducativo, foram realizados 1.905 e 4.791 exames, respectivamente, em socioeducandos e trabalhadores desses estabelecimentos, em 19 estados.
O número de comitês de acompanhamento informados ao CNJ passou de nove para 17 desde o último levantamento. Quanto à destinação de verbas de penas pecuniárias, 17 estados relataram ao CNJ a adoção da medida, totalizando R$ 53 milhões destinados ao combate à pandemia. Enquanto Amapá, Mato Grosso, Piauí e Rio Grande do Sul registraram o recebimento de aportes federais para ações de combate à Covid-19 nos ambientes de privação de liberdade, São Paulo e Paraná receberam recursos do Tesouro estadual. Órgãos como o Ministério Público do Trabalho e a Corregedoria do TJRS também dispuseram de valores.

Contágios e óbitos
O boletim semanal sobre contaminações e óbitos por Covid-19, publicado às quartas-feiras a partir de dados dos poderes públicos locais e ocorrências informadas ao Departamento Penitenciário Nacional (Depen), aponta 1.168 novos casos de corona vírus entre pessoas privadas de liberdade e 487 entre servidores na última semana, com aumento acentuado de registros em Minas Gerais e de Pernambuco.

No estado de São Paulo, uma alteração na metodologia de testagem foi responsável pela diminuição abrupta nas ocorrências. A Secretaria de Administração Penitenciária passou a registrar apenas os casos comprovados por meio do exame laboratorial de RT-PCR – excluindo os sorológicos de testagem rápida. Com a mudança, os 1.019 casos até então registrados agora totalizam 262.

No caso do sistema socioeducativo, o monitoramento aponta o total de 1.815 contaminações por corona vírus – o que representa um aumento de quase 140% ao longo do último mês. Um total de 14 servidores atuando nessas unidades vieram a óbito em razão da Covid-19.
Justiça Presente

O levantamento e sistematização de informações sobre Covid-19 em privação de liberdade é uma iniciativa do DMF/CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD Brasil) e apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para superar desafios estruturais dos sistemas de privação de liberdade no país.

Marília Mundim

Agência CNJ de Notícias

CNJ regula videoconferência na área penal com veto em audiência de custódia


CNJ regula videoconferência na área penal com veto em audiência de custódia



O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou na sexta-feira (10/7), durante a 35ª Sessão Virtual Extraordinária, resolução com critérios para audiências e outros atos processuais por videoconferência em processos penais e de execução penal durante a pandemia da Covid-19. Um dos pontos definidos é que o mecanismo de videoconferência não se aplica às audiências de custódia por ir contra a essência do instituto.

Iniciadas em todo o país em 2015, as audiências de custódia promovem o encontro entre a pessoa que acabou de ser presa e o juiz para avaliação da legalidade da prisão e a necessidade de sua manutenção enquanto o processo está em andamento. Permite, ainda, a verificação de eventual ocorrência de tortura e maus-tratos no ato da prisão.
Em seu voto, o presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, ressaltou que a videoconferência é inadequada aos objetivos das audiências de custódia, apontando a necessidade de atenção redobrada quando o ato envolver depoimento especial de criança e de adolescente. “Audiência de custódia por videoconferência não é audiência de custódia e não se equiparará ao padrão de apresentação imediata de um preso a um juiz, em momento consecutivo a sua prisão, estandarte, por sinal, bem definido por esse próprio Conselho Nacional de Justiça quando fez aplicar em todo o país as disposições do Pacto de São José da Costa Rica”, destacou.

A vedação de audiências de custódia por videoconferência está em sintonia com os artigos 287 e 310 do Código de Processo Penal e diretrizes já estabelecidas pelo CNJ – incluindo a Recomendação CNJ n. 62, que já previa a suspensão das audiências de custódia durante a pandemia da Covid-19, conforme destacou o presidente do CNJ em seu voto.
Padronização
O presidente ainda lembrou os normativos anteriores aprovados pelo CNJ para apoiar o Judiciário a lidar com o grave contexto imposto pela pandemia (Resolução CNJ n. 313/2020 e normas subsequentes, Recomendação CNJ n. 62 e Portaria CNJ n. 61), apontando a necessidade de se garantir maior eficiência do Poder Judiciário com fomento à modernização e ampliação da prestação jurisdicional enquanto se mantém os direitos e garantias processuais.

De acordo com a nova resolução, a realização dos atos por videoconferência deve considerar a igualdade de tratamento entre as partes do processo, presunção de inocência, contraditório e ampla defesa. Também deve ser garantida a participação do réu na integralidade da audiência ou ato processual, a publicidade, a segurança da informação e da conexão, com adoção de medidas preventivas a falhas técnicas. No caso de réu migrante ou visitante, ele deve ser informado sobre o direito à assistência consular.

A resolução contém um protocolo técnico em anexo com orientações para nortear os tribunais, juízes e desembargadores na implementação das medidas aprovadas. A normativa não se aplica às sessões plenárias do Tribunal do Júri, que será objeto de regulamentação própria pelo CNJ.
Aspectos técnicos e da intimação
De acordo com a decisão do CNJ, as audiências e os atos em processos penais e de execução penal deverão ocorrer em tempo real, permitindo a interação entre o magistrado, as partes e os demais participantes. A norma indica a utilização da plataforma disponibilizada pelo CNJ ou de ferramenta similar que atenda ao disposto na resolução.

Em termos técnicos, deverão ser observados: a disponibilidade de câmera e microfone e a disposição destes equipamentos no espaço do ponto de conexão; conexão estável de internet; gravação audiovisual de toda a audiência criminal, desde a abertura até o encerramento, em arquivo único e sem interrupção, quando possível, e o armazenamento das gravações de audiências criminais em sistema eletrônico de registro audiovisual.
Quanto aos procedimentos a serem adotados, a resolução prevê que a intimação das partes, ofendido, testemunhas e réu seja feita por aplicativo de mensagem, email ou qualquer outro meio de comunicação necessário. O procedimento será realizado pelo magistrado ou servidor designado, que não deverá, conforme a Resolução CNJ n. 314/2020, atribuir aos advogados e procuradores a responsabilidade de providenciar o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário para participação em atos virtuais. O Ministério Público e a defesa técnica serão intimados sobre a realização de audiência por videoconferência com antecedência mínima de 10 dias.
Caberá ao ofendido informar, tão logo receba a intimação, se a visualização da imagem do réu lhe causa humilhação, temor, ou sério constrangimento, para que possa ser ouvido na forma prevista no art. 217 do CPP. A resolução também destaca a importância de que, para os atos que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, crianças ou adolescentes e crimes contra a liberdade sexual, sejam adotadas medidas adequadas para evitar constrangimento e revitimização. O ato não deverá ser realizado por videoconferência se a sua realização não for livre de interferências e se não houver a segurança necessária para o ofendido ou testemunha.

Iniciado o ato processual, o magistrado deverá garantir, entre outros procedimentos, a restrição do acesso das testemunhas a atos alheios à sua oitiva e assegurar a incomunicabilidade entre as testemunhas. Também deve ser esclarecido aos depoentes que é proibido o acesso a documentos, informações, computadores, aparelhos celulares, bem como o uso de qualquer equipamento eletrônico pessoal, durante sua oitiva, conforme disposto no art. 204 do CPP.
Combate à tortura
No caso de réu preso, deverá ser assegurado ambiente livre de intimidação, ameaça ou coação, na área administrativa da unidade prisional. O preso também deverá participar sem o uso de algemas e ter acesso à assistência jurídica.

Se, na audiência remota, forem identificados indícios de tortura e maus tratos, o preso deverá passar por exame de corpo de delito e as possíveis lesões serão registradas por meio da gravação audiovisual. Nesses casos, o magistrado poderá determinar também a realização da audiência de modo presencial.


Agência CNJ de Notícias

quarta-feira, 8 de julho de 2020


O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal

PUBLICADO EM 24/02/2020

 A definição pela retroatividade configura importante marco, mas a questão requer outros passos

O acordo de não persecução penal, após duplo regramento pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Resoluções nº 181/2017 e nº 183/2018) e das críticas recebidas por um setor da doutrina[1], ganhou previsão legal com a promulgação da Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro.

Tratando-se de mecanismo de diversificação da pena criminal, visa não somente auxiliar no desafogo do abarrotado sistema de justiça criminal, senão, especialmente, impedir a estigmatização e a dessocialização que decorrem de processos com sentença condenatória.

Sua respectiva legalização, não restam dúvidas, acarretará várias discussões[2], uma delas atinente ao direito transitório, ou seja, à possibilidade ou não de sua aplicação retroativa a infrações ocorridas anteriormente à existência da Lei n. 13.964/2019.

O início desta análise requer, necessariamente, uma definição sobre a natureza jurídica da norma que regula o acordo. Afinal, estar-se-ia diante de norma penal, processual penal ou híbrida?

Embora formalmente esteja inserido no Código de Processo Penal, art. 28-A, também se reveste de conteúdo de direito material no que diz respeito às suas consequências, apresentando-se como verdadeira norma de garantia e, com efeito, retroativa.

Em outros termos, é norma que interfere diretamente na pretensão punitiva do Estado, e não uma simples norma reguladora de procedimento. Se tomarmos a lembrança histórica da promulgação da Lei dos Juizados Especiais (que também criou outras medidas de diversificação penal), a carga retroativa é coincidente (STF, Pleno, INQ 1055QO/AM)[3].

A definição pela retroatividade configura importante marco, mas a questão requer outros passos. O seguinte diz respeito a saber até que momento as disposições do art. 28-A do CPP podem produzir efeitos nos processos iniciados em momento pretérito a sua existência?

Para o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, desde que não recebida a denúncia[4]. Para a Corte Constitucional, em precedente remoto relacionado a instituto diversificador da Lei n. 9.099/1995, um pouco mais além, de sorte que a incidência do benefício estaria condicionada à inexistência de condenação penal, ainda que recorrível (1ª Turma, HC 74.463-0, rel. Min. Celso de Mello, DJ 07/03/1997).

Essas alternativas condicionam o efeito retroativo do instituto à inocorrência, respectivamente, de um despacho de natureza interlocutória simples ou de uma sentença condenatória.

Bem vistas as coisas, cada qual cria uma barreira insuperável não prevista pelo constituinte no inciso XL do art. 5º (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) e tampouco pelo legislador infraconstitucional, afinal, nem mesmo o trânsito em julgado da sentença condenatória impede a aplicação retroativa de lei posterior favorável (art. 2º, parágrafo único, do Código Penal).

O argumento de que a condenação compromete a finalidade precípua para a qual o instituto do acordo de não persecução penal foi concebido, vale dizer, o de afastar a imposição da pena criminal, não pode representar um impedimento à retroatividade, visto que a mesma restrição não consta dos textos constitucional e legal.

Nestes termos, em atenção ao art. 28-A do CPP, a defesa deverá requerer – em preliminar da apelação – a conversão do julgamento em diligência. Por sua vez, para os processos com decisão definitiva, os contornos da solução são mais específicos, mas, como bem pontua Paulo Busato, “a garantia da coisa julgada não serve para amparar pretensão punitiva do Estado”[5].

No último contexto se faz necessário separar os condenados ainda em fase de execução penal daqueles que já cumpriram a reprimenda. Aos primeiros, entende-se possível a aplicação por analogia da regra do caput do art. 2º do Código Penal e, como tal, em análise hipotética, satisfeitos os requisitos legais, a execução ficaria suspensa e a respectiva pena seria substituída pelas condições ajustadas no acordo que, efetivamente cumpridas, ensejariam a extinção da punibilidade do agente, deixando de acarretar maus antecedentes e de gerar reincidência (ou seja, também cessariam os efeitos penais secundários da condenação).

Na eventualidade de o agente descumprir injustificadamente as condições ajustadas, retornaria ao cumprimento do restante da pena que estava suspensa.

Para aqueles que cumpriram totalmente a respectiva pena, a princípio, parece não ter sentido a incidência do acordo, no entanto, tal conclusão seria incorreta, pois é notório que a condenação gera outros efeitos além da primária imposição da pena criminal.

Dentre os efeitos secundários se destaca a reincidência e, a partir dela, inúmeras outras restrições de benefícios, como a definição de um regime de cumprimento de pena menos rigoroso ou a incidência de penas alternativas.

Assim, entende-se que a defesa deve peticionar ao juízo da execução penal requerendo que o órgão de acusação se pronuncie se, à época do fato, o agente preenchia os requisitos previstos em lei (art. 28-A, caput e § 2° do CPP) que viabilizariam, neste contexto, a proposição de hipotético acordo.

Em caso positivo, a retroatividade incidirá justamente para extinguir os efeitos acessórios da condenação (v.g. reincidência). Ao agente, por evidente, não será legítimo impor quaisquer condições, visto que já executou a totalidade da pena, de modo que tal exigência representaria violação gritante ao princípio ne bis in idem.

Há quem possa argumentar que não seria razoável, e muito menos exequível, que a totalidade das condenações pretéritas tivesse de ser reformada diante da nova legislação que passou a prever a atenuação das consequências jurídico-penais por meio do acordo de não persecução. Tal argumento, ainda que consistente, pode ser relativizado, definindo-se uma limitação temporal da retroatividade.

A propósito, para obstar um efeito regressivo infinito, o último passo é definir até que momento estaria o Ministério Público obrigado a analisar o eventual preenchimento pelo agente dos requisitos legais do acordo no que se refere às infrações pretéritas.

Neste aspecto, entende-se que a análise se realizará unicamente nos processos em que a data do cumprimento total da pena ou de sua extinção tenha ocorrido nos cinco anos anteriores à existência da Lei n. 13.964/2019, de sorte que o quinquídio corresponderia ao prazo expurgador da reincidência.

Como nesse período persistem os efeitos secundários da condenação, é cogente a atuação ministerial por meio do acordo para arrefecer eventuais danos decorrentes de nova prática delitiva. Em síntese, eventual concretização do acordo recobriria o agente de primariedade.

[1] Por exemplo, o Defensor Público Eduardo Newton: www.justificando.com/2017/09/15/e-grave-resolucao-de-cupula-do-mp-sobre-acordo-de-nao-persecucao-penal Acesso em 10/02/2020.
[2] A propósito, veja-se: MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito penal: lições fundamentais, parte geral. 5ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 1253-1264.
[3] A relatoria foi do Ministro Celso de Mello, com publicação no Diário Oficial em 24 de maio de 1996. O mesmo se confirmou no julgamento da ADIn n. n. 1.719-9, rel. Min. Joaquim Barbosa, DOU 28/08/2007.
[4] CNPG. Comissão especial: enunciados interpretativos da Lei Anticrime, 2020, p. 6 (Enunciado 20).
[5] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013, p. 128.
Artigo publicado originalmente no Jota


 João Paulo Orsini Martinelli é advogado, pesquisador e professor da Faculdade de Direito do IDP-São Paulo. Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e Pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, também atua como consultor jurídico na área de Direito Penal. Veja todos os posts de João Paulo Orsini Martinelli.