Objeções à Proposta de Resolução do
CNJ estão mais relacionadas ao estranhamento com o novo do que preocupadas em
cotejar as inovações
13/07/2020 13:25
Crédito Conselho Nacional de Justiça - CNJ
A realização das sessões de
julgamento do tribunal do júri foi suspensa em todo o país, diante da pandemia
do Novo Coronavírus (SARS-CoV-2). A aglomeração de pessoas é inerente ao modelo
tradicional. Compõem o Tribunal do Júri em torno de 25 jurados (precisa haver,
no mínimo, 15 para ser instalada a sessão do tribunal do júri – art. 463, CPP).
Além disso, há a presença dos profissionais que atuam em plenário, incluindo
juiz, secretário, oficiais de justiça, representantes do Ministério Público e
da Defesa, policiais, equipe de segurança e escolta, além de réu, vítima,
testemunhas e do público que assiste ao julgamento. Então, como permitir a
retomada das sessões de julgamento pelo tribunal do júri em tempos de pandemia?
Essa questão tem ganhado
centralidade nos sistemas de justiça que adotam o modelo do tribunal do júri.
Na Inglaterra, por exemplo, estão em pauta, entre as soluções possíveis,
suspender a instituição do tribunal do júri, para que os crimes sejam julgados
por um juiz singular, ou reduzir o número de jurados, de 12 para 7.[1]
No Brasil, a Proposta de Resolução
que tramita no CNJ para possibilitar a retomada dos julgamentos dos crimes
dolosos contra a vida, em tempos de pandemia, é bem mais tímida, pois envolve
questões meramente de rotinas, práticas ou formas. Ao mesmo tempo, parece
bastante factível e viável. A Proposta busca viabilizar o apoio da
videoconferência no tribunal do júri, de modo que, na instrução em plenário, as
oitivas de vítima e testemunhas ocorreriam com uso dessa tecnologia. Além
disso, para garantir a publicidade do ato, todo o julgamento seria filmado, de
modo que o público em geral poderia acompanhá-lo pela plataforma de
videoconferência, mediante link disponibilizado pela Vara.[2]
A Proposta de Resolução também
admite o início da sessão de julgamento em meio virtual. De acordo com o seu
art. 4º, §§ 1º e 2º, “após o sorteio, o ato deve ser suspenso, para que o
magistrado, os jurados sorteados, o secretário de audiência e os oficiais de
justiça, no mesmo dia, se façam presentes à sala de sessões plenárias do
Tribunal do Júri”, onde também deverão comparecer “os representantes do
Ministério Público, da Defesa e o réu, se solto”, se estes assim desejarem (MP,
Defesa e acusado solto podem optar entre comparecer virtualmente, por
videoconferência, ou fisicamente ao ato).
Com isso, haveria a redução do
quantitativo de jurados que teriam de comparecem ao fórum, de cerca de 25
(precisa haver o mínimo de 15 jurados, sob pena de não ser instalada a sessão –
art. 463, CPP) para 9 jurados (7 titulares e 2 suplentes).
Sobre esse ponto da Proposta,
surgiram algumas críticas. A primeira delas diz respeito à incomunicabilidade
dos jurados. Alguns dizem que esse dispositivo da Resolução encontraria óbice
no art. 466, § 1º, do CPP, que dispõe que “o juiz presidente também advertirá
os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com
outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do
Conselho e multa, na forma do § 2º do art. 436 deste Código”.
Ocorre que, embora essa
efetivamente deva ser uma advertência que o juiz faz, os 7 (sete) jurados
somente passam a efetivamente integrar o Conselho de Sentença a partir do
momento em que têm assento na bancada de julgamento e é tomado o seu juramento,
previsto no art. 472 do CPP, mais especificamente, após responderem “Assim o
prometo”.
Aliás, após o jurado ser sorteado,
a Defesa e o Ministério Público exercem o direito a recusas (motivadas e
imotivadas), sendo que cada um pode rejeitar imotivadamente até 3 jurados (art.
468, CPP). Não havendo recusas, o jurado se dirige ao tablado, posicionando-se
em uma das 7 cadeiras de jurados. Vale dizer, quando o jurado é sorteado, isso
não significa que ele integrará o Conselho de Sentença, pois há a fase de
recusas, de modo que não se pode dizer que a incomunicabilidade se iniciou
nesse momento.
Além disso, é somente após o
juramento que se inicia a instrução do processo, com oitiva de vítima,
testemunhas e réu. O objetivo do CPP com a imposição da incomunicabilidade é
fazer com que, uma vez iniciada a fase de instrução, cada jurado passe a ser informado
sobre o processo e decida de acordo com sua íntima convicção.
Ademais, na prática, quando toma
conhecimento que foi sorteado e não houve sua recusa (ou seja, quando sabe que
integrará efetivamente o Conselho de Sentença), o jurado comumente entra em
contato com a família e com o empregador para comunicar que, naquele dia, terá
de servir ao Tribunal do Júri e que permanecerá incomunicável. O seu aparelho
celular somente é recolhido pelo oficial de justiça antes de posicionar-se na
cadeira de jurado. Assim, dizer que a incomunicabilidade se inicia com o
sorteio não condiz com a realidade, pois, se assim o fosse, todas as sessões do
tribunal do júri já realizadas no país seriam nulas.
Assim, seja por interpretação
sistemática do Código de Processo Penal, seja pela forma como os atos ocorrem
na práxis, é somente após o juramento que os jurados passam a efetivamente
integrar o conselho de sentença e devem ficar incomunicáveis.
Desse modo, não haveria qualquer
irregularidade em se iniciar a sessão do júri em meio virtual, momento em que
haveria o sorteio dos 7 jurados e 2 suplentes, de modo que somente estes teriam
de comparecer ao fórum, juntamente com juiz, promotor, defensor, oficiais de
justiça, secretário de audiência e outras pessoas necessárias à realização do
tribunal do júri (art. 4º da Proposta de Resolução).
De outro lado, alguns questionam que, como se reduziria de 25
para 9 o número de jurados que se fariam presentes fisicamente, estes poderiam
sofrer maiores pressões ou ameaças pelo réu. Embora, em uma análise mais
apressada, tal argumento pareça ter, abstratamente, alguma lógica, na prática
do tribunal do júri, com o apoio da videoconferência, o que ocorrerá é
exatamente o oposto disso.
Com efeito, no dia a dia do
tribunal do júri, o que se observa é que os jurados sofrem algum tipo de
intimidação, velada ou expressa, de amigos ou familiares do réu ou da vítima
quando eles estão entrando no fórum para se dirigirem à sala de sessões
plenárias do Júri, antes do julgamento ou, sobretudo, na saída do local, quando
os 7 jurados, após terem realizado o julgamento, se deslocam ao seu meio de
transporte para retornarem às suas residências. Como é cediço para aqueles que
efetivamente trabalham no júri, os jurados são escoltados à parada de ônibus ou
até os seus veículos quando da sua saída do fórum. Aliás, muitos deles precisam
voltar para as suas residências no mesmo transporte público utilizado por
pessoas que assistiram ao julgamento (muitas vezes, parentes do réu ou da
vítima).
Com o apoio da videoconferência[3],
esses problemas de tensão e de possíveis ameaças a jurados deixam de existir ou
são bastante minimizados, tendo em vista que o público em geral (parentes e
conhecidos do réu e da vítima) não podem estar presentes na sala de sessões
plenárias do tribunal do júri, pois devem acompanhar todo o julgamento
virtualmente, mediante link de acesso disponibilizado pela
Vara. Contudo, caso se façam presentes no local, poderá haver uma atuação mais
direcionada da polícia ou da equipe de segurança, já que se saberá que estão
ali para pressionar jurados, vítima e testemunhas, porque não haveria razão alguma
para estarem no fórum.
Ademais, quando são sorteados os 9
jurados (7 titulares e 2 suplentes) virtualmente, o juiz deve marcar a retomada
da sessão em meio presencial com a maior brevidade possível (apenas o tempo
necessário ao deslocamento do jurado e das partes até o fórum), razão pela qual
não há lapso temporal suficiente para que sejam localizados os endereços dos
jurados (o endereço dos jurados não fica disponível para as partes) e estes
sejam ameaçados.
Além disso, se os jurados sorteados
forem de alguma forma procurados pelo réu ou por seus conhecidos, estará
presente o crime de coação no curso do processo (art. 344 do Código Penal),
razão pela qual eles simplesmente comunicarão o ocorrido ao Juiz Presidente,
que cancelará a sessão de julgamento e tomará as providências contra quem
cometeu o delito.
Também existe a crítica de que, com
o início da sessão em meio virtual, o jurado, após sorteado, poderia procurar
obter informações e conhecer o processo. No entanto, esse argumento também não
se sustenta. Em primeiro lugar, porque o interregno temporal entre o sorteio
(em meio virtual), com a suspensão do ato, e a retomada da sessão de julgamento
em meio presencial, é muito breve, apenas o necessário para o deslocamento.
Além disso, os dados sobre os processos
e as datas em que serão julgados pelo tribunal do júri ficam disponíveis aos
jurados e ao público em geral (art. 435, CPP), de modo que qualquer jurado pode
buscar informações sobre os casos que julgará no seu período de convocação.
Ademais, na prática, parece que não há qualquer lógica em pensar que o jurado,
entre o momento do sorteio virtual e o seu deslocamento para o fórum, buscará
dados sobre o processo que julgará, quando ele sabe que todas as informações
sobre o processo serão prestadas durante a instrução em plenário e as
sustentações das partes, além do que ele possui acesso a todo o processo
durante o julgamento, no momento em que solicitar (art. 480, § 3º, CPP).
Com a proposta de Resolução do CNJ, além de não haver qualquer
afronta à legalidade, tampouco prejuízo às partes, reduz-se muito o
quantitativo de jurados que precisam comparecer fisicamente à sessão de
julgamento do tribunal do júri, evitando-se aglomerações e minimizando-se as
possiblidades de contágio da COVID-19.
Mas não é só isso, pois há, ainda,
diversas outras vantagens. Por exemplo, também permite que os jurados não
sorteados possam trabalhar normalmente, reduzindo-se pressões por demissões.
Além disso, como os jurados já foram sorteados, entrarão na sala das sessões
plenárias e se posicionarão diretamente nas cadeiras destinadas a eles, que
poderão ser disponibilizadas no local onde ficaria o público (pois o público
acompanhará o julgamento virtualmente), para se garantir a distância mínima
entre os jurados, minimizando-se os riscos de contágio.
As objeções à Proposta de Resolução
do CNJ estão, em sua maioria, mais relacionadas ao estranhamento com o novo,
com a dificuldade de romper o status quo, do que preocupadas em
cotejar as inovações propostas com os parâmetros legais e constitucionais.
Diante de situações que desafiam soluções inéditas, não é razoável a postura de
simplesmente buscar impedir qualquer mudança, pelo apego a formalismos
desnecessários.
Portanto, é preciso encontrar
oportunidades no fluxo e alterações na práxis, o que deve ser fruto de uma
construção coletiva. A Proposta de Resolução do CNJ, quando prevê o início da
sessão e o sorteio dos jurados em meio virtual, não pretende flexibilizar
direitos, senão modernizar o sistema de justiça e implementar mudanças
positivas, garantindo-se a retomada das sessões de julgamento do júri, com a
preservação dos direitos do réu e das prerrogativas das partes e, ao mesmo
tempo, com a segurança de todos.
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[1] Catherine
Bennett. Abandon trial by jury? That would hardly restore trust in the justice
system. The Guardian, 21 jun. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/jun/21/abandon-trial-by-jury-that-would-hardly-restore-trust-in-the-justice-system>.
Acesso em: 6 jul. 2020.
[2] Sobre
a utilização de videoconferência no Tribunal do Júri, vide: CRUZ, Rogerio
Schietti. LUNARDI, Fabrício Castagna; GUERREIRO, Mário Augusto Figueiredo de
Lacerda. Tribunal do júri com apoio de videoconferência: pela ética do
discurso. CONJUR, 29 jun. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/opiniao-tribunal-juri-apoio-videoconferencia>.
Acesso em: 6 jun. 2020.
[3] Sobre
a utilização de videoconferência no Tribunal do Júri, vide: CRUZ, Rogerio
Schietti. LUNARDI, Fabrício Castagna; GUERREIRO, Mário Augusto Figueiredo de
Lacerda. Tribunal do júri com apoio de videoconferência: pela ética do
discurso. CONJUR, 29 jun. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/opiniao-tribunal-juri-apoio-videoconferencia>.
Acesso em: 6 jun. 2020.