Repercussão geral, segurança jurídica e estabilidade
jurisprudencial
Pandemia da Covid-19 não constitui
razão suficiente a justificar uma revisão na jurisprudência dominante do STF
14/05/2020
Presidente do STF durante sessão plenária por videoconferência
/ Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Inovação importante introduzida
pela EC 45/2004 no art. 102, §3o, da Constituição, a repercussão
geral é um requisito de cabimento do recurso extraordinário que condiciona o
seu conhecimento à existência de uma questão constitucional cuja relevância
econômica, política, social ou jurídica transcenda aos interesses intersubjetivos
em disputa no caso concreto (CPC, art. 1.035, §1o). Isto significa
que o acesso à jurisdição constitucional do STF deve ser justificado não apenas
pela importância da solução do conflito de interesses específico que originou o
recurso extraordinário, mas pela relevância de tal julgamento para o sistema de
justiça, para o funcionamento das instituições políticas, para o bom andamento
da economia ou para a sociedade de forma mais geral.
Mas o que o instituto da
repercussão geral não significa – nem o STF deve permitir que ele venha a se
tornar – é uma espécie de licença para se obviar o reconhecimento de direitos e
a aplicação de garantias constitucionais a partir de argumentos fundados
exclusivamente nas consequências econômicas a serem suportadas pelo Erário. Não
há que se confundir o requisito de cabimento do recurso, agora vinculado à
demonstração da sua relevância transcendente ao caso, com o uso dessa possível
repercussão como pretexto para se deixar de aplicar a norma constitucional ou
legal realmente aplicável àquela situação concreta. Argumentos ad
terrorem de finanças públicas, articulados normalmente em ambientes de
crise econômica, costumam pavimentar o caminho para o descrédito das
instituições e rupturas do Estado de direito cujos custos sociais e econômicos
acabam sendo sempre mais elevados.
Afinal, qual o papel institucional
da repercussão geral como instrumento da jurisdição constitucional do STF?
Embora o constituinte não a tenha dotado de efeitos vinculantes, parece clara a
sua vinculação com a segurança jurídica e a proteção da confiança legítima dos
cidadãos. A disciplina do art. 1.035 do CPC, assim como a recente alteração
promovida pela Lei n. 13.874/2019 no art. 19, VI, alínea “a” da Lei n.
10.522/2002, sugerem que a repercussão geral deve ser utilizada pelo STF como
instrumento processual para preservação da sua jurisprudência, que só deve ser
alterada em casos de uma distinção fática relevante entre casos concretos ou
mutação inequívoca do parâmetro jurídico do controle de constitucionalidade.
Cumpre assinalar, logo à partida,
que a manutenção de um padrão jurisprudencial exerce relevante papel
institucional de estabilização e previsibilidade nas relações econômicas e
sociais. Consolidado o precedente na jurisprudência da Suprema Corte, sua
preservação ao longo do tempo é essencial para sua aplicação estável a
todos os demais casos idênticos ocorridos no passado – condição sine
qua non de isonomia na aplicação do direito a todos os que vivenciaram
a mesma situação jurídica – bem como na garantia de calculabilidade das
consequências de suas condutas futuras, fundadas na orientação traçada no
precedente.
Neste sentido é que deve ser
compreendida a previsão constante do art. 1.035, § 3º, inciso I, de que “haverá
repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que contrarie súmula ou
jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal.” Trata-se de uma situação
em que o legislador ordinário, ao regulamentar a Constituição, cuidou de dar
concretude ao princípio constitucional da segurança jurídica, considerado pelo
próprio STF como ínsito à cláusula do Estado de direito, viabilizando que a
repercussão geral seja presumida sempre que o acórdão proferido em instância
inferior houver contrariado a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal
Federal. A higidez do sistema de precedentes construído pelo Tribunal é um
valor em si a ser preservado, como algo cuja relevância sistêmica, isto é,
transcendente aos interesses concretos em disputa, é presumida pela lei.
Daí não decorre, por evidente, uma
imutabilidade da jurisprudência dominante do Supremo, o que seria levar a ideia
de segurança jurídica longe demais. Ao contrário, o que se postula com as
regras de proteção da confiança legítima – aspecto subjetivo da noção de
segurança jurídica – é a existência de algum grau de estabilidade e
previsibilidade na mudança, quando esta se revelar inevitável e
necessária. Nos sistemas de precedentes jurisprudenciais, a distinção fática
relevante entre casos concretos e a mutação do parâmetro de controle jurídico
constituem as duas situações típicas de mudança de rotas decisórias, a
justificar a criação de um novo e distinto precedente (que passará a
vigorar ao lado do antigo) ou a simples revisão do precedente antigo.
No primeiro caso, têm-se como relevantes
elementos fáticos específicos do caso concreto para, à luz da norma
constitucional ou legal aplicável, justificar um novo entendimento sobre a sua
interpretação e aplicação. Tal foi o que se deu, por exemplo, no julgamento da
ADPF n° 54, na qual o STF autorizou a interrupção da gestação de fetos
anencefálicos, ampliando as hipótese de excludentes de ilicitude previstas no
Código Penal para a prática do aborto. Naquele caso, o fato da inviabilidade do
desenvolvimento com vida do nascituro, revelado pela ciência médica, constituiu
fator relevante e decisivo para a distinção traçada pelo STF em relação aos
demais casos de aborto criminalizado.
No segundo caso, dá-se uma mutação
no próprio parâmetro de controle jurídico – no âmbito da jurisdição constitucional,
uma mutação no sentido da própria Constituição. Essa metamorfose de
significados pode decorrer do processo de reforma formal do texto
constitucional – o que é algo comum e até banalizado no Brasil – ou de
processos informais que atuam no plano da reconstrução coletiva do sentido das
normas constitucionais. Um bom exemplo colhido da jurisprudência do STF foi o
reconhecimento do valor jurídico das uniões homoafetivas como uma forma de
união estável, para todos os fins do art. 226, § 3 , inclusive a configuração
de uma entidade familiar. Ao reconhecer a evolução da compreensão social sobre
as uniões homoafetivas, o Supremo ressignificou o parâmetro
constitucional de controle aplicável ao caso, passando a reconhecer a
incidência das garantias inerentes à união estável também à união entre pessoas
de orientação homoafetiva.
Afora tais situações excepcionais –
verdadeiras exceções em um Estado democrático de direito – a manutenção da
jurisprudência dominante cumpre o papel de verdadeira garantia institucional
essencial à preservação da estabilidade e da previsibilidade nas relações
sociais e econômicas. O próprio sistema de precedentes depende, para a sua
funcionalidade, de um mecanismo regulador eficaz que assegure a aplicação da
mesma tese jurisprudencial a todos os casos idênticos, como condição para a
redução do estoque de processos sobre a matéria e garantia de isonomia na
distribuição da jurisdição. Além disso, a estabilidade jurisprudencial assegura
um ambiente de equilíbrio concorrencial entre agentes econômicos, evitando que
mudanças de entendimento possam aleatoriamente favorecer alguns em detrimento
de outros.
A existência da situação de
pandemia viral, com a consequente deflagração de uma crise econômica e social,
por maior que seja a sua gravidade, não constitui razão suficiente a justificar
uma revisão na jurisprudência dominante do STF, sob o argumento genérico de sua
repercussão econômica transcendente. Bem ao contrário, o respeito à
jurisprudência da Suprema Corte é um valor em si a ser promovido e celebrado,
como um índice a atestar o amadurecimento das instituições no Brasil. Como bem
pontuado pelo Ministro Alexandre de Moraes, “o interesse fiscal das Fazendas
Públicas devedoras não é suficiente para atribuir efeitos a uma norma
inconstitucional.”[1] De
igual modo, não é suficiente para retirar a eficácia de uma norma constitucional
aplicável a qualquer caso concreto.
Consoante arguta observação de
Daniel Goldberg, “a tentação de endereçar desafios fiscais com decisões
judiciais é grande, mas o Supremo tem demonstrado maturidade institucional e
tem privilegiado a segurança jurídica. Não será fácil manter essa disciplina em
tempos de Covid.”[2] Espera-se
que o STF transforme o desafio em oportunidade e reafirme, durante a crise, o
seu compromisso com o cumprimento irrestrito da Constituição e a preservação
dos marcos do Estado democrático de direito.
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[1] STF, Embargos de declaração no RE 870.947, redator
p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 03.10.2019.
GUSTAVO
BINENBOJM – Professor Titular da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor pela UERJ e Master of
Laws (LL.M.) pela Yale Law School.
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