sexta-feira, 15 de maio de 2020


Repercussão geral, segurança jurídica e estabilidade jurisprudencial

Pandemia da Covid-19 não constitui razão suficiente a justificar uma revisão na jurisprudência dominante do STF

14/05/2020

Presidente do STF durante sessão plenária por videoconferência / Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Inovação importante introduzida pela EC 45/2004 no art. 102, §3o, da Constituição, a repercussão geral é um requisito de cabimento do recurso extraordinário que condiciona o seu conhecimento à existência de uma questão constitucional cuja relevância econômica, política, social ou jurídica transcenda aos interesses intersubjetivos em disputa no caso concreto (CPC, art. 1.035, §1o). Isto significa que o acesso à jurisdição constitucional do STF deve ser justificado não apenas pela importância da solução do conflito de interesses específico que originou o recurso extraordinário, mas pela relevância de tal julgamento para o sistema de justiça, para o funcionamento das instituições políticas, para o bom andamento da economia ou para a sociedade de forma mais geral.
Mas o que o instituto da repercussão geral não significa – nem o STF deve permitir que ele venha a se tornar – é uma espécie de licença para se obviar o reconhecimento de direitos e a aplicação de garantias constitucionais a partir de argumentos fundados exclusivamente nas consequências econômicas a serem suportadas pelo Erário. Não há que se confundir o requisito de cabimento do recurso, agora vinculado à demonstração da sua relevância transcendente ao caso, com o uso dessa possível repercussão como pretexto para se deixar de aplicar a norma constitucional ou legal realmente aplicável àquela situação concreta. Argumentos ad terrorem de finanças públicas, articulados normalmente em ambientes de crise econômica, costumam pavimentar o caminho para o descrédito das instituições e rupturas do Estado de direito cujos custos sociais e econômicos acabam sendo sempre mais elevados.
Afinal, qual o papel institucional da repercussão geral como instrumento da jurisdição constitucional do STF? Embora o constituinte não a tenha dotado de efeitos vinculantes, parece clara a sua vinculação com a segurança jurídica e a proteção da confiança legítima dos cidadãos. A disciplina do art. 1.035 do CPC, assim como a recente alteração promovida pela Lei n. 13.874/2019 no art. 19, VI, alínea “a” da Lei n. 10.522/2002, sugerem que a repercussão geral deve ser utilizada pelo STF como instrumento processual para preservação da sua jurisprudência, que só deve ser alterada em casos de uma distinção fática relevante entre casos concretos ou mutação inequívoca do parâmetro jurídico do controle de constitucionalidade.
Cumpre assinalar, logo à partida, que a manutenção de um padrão jurisprudencial exerce relevante papel institucional de estabilização e previsibilidade nas relações econômicas e sociais. Consolidado o precedente na jurisprudência da Suprema Corte, sua preservação ao longo do tempo é essencial para sua aplicação estável a todos os demais casos idênticos ocorridos no passado – condição sine qua non de isonomia na aplicação do direito a todos os que vivenciaram a mesma situação jurídica – bem como na garantia de calculabilidade das consequências de suas condutas futuras, fundadas na orientação traçada no precedente.
Neste sentido é que deve ser compreendida a previsão constante do art. 1.035, § 3º, inciso I, de que “haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal.” Trata-se de uma situação em que o legislador ordinário, ao regulamentar a Constituição, cuidou de dar concretude ao princípio constitucional da segurança jurídica, considerado pelo próprio STF como ínsito à cláusula do Estado de direito, viabilizando que a repercussão geral seja presumida sempre que o acórdão proferido em instância inferior houver contrariado a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal. A higidez do sistema de precedentes construído pelo Tribunal é um valor em si a ser preservado, como algo cuja relevância sistêmica, isto é, transcendente aos interesses concretos em disputa, é presumida pela lei.
Daí não decorre, por evidente, uma imutabilidade da jurisprudência dominante do Supremo, o que seria levar a ideia de segurança jurídica longe demais. Ao contrário, o que se postula com as regras de proteção da confiança legítima – aspecto subjetivo da noção de segurança jurídica – é a existência de algum grau de estabilidade e previsibilidade na mudança, quando esta  se revelar inevitável e necessária. Nos sistemas de precedentes jurisprudenciais, a distinção fática relevante entre casos concretos e a mutação do parâmetro de controle jurídico constituem as duas situações típicas de mudança de rotas decisórias, a justificar  a criação de um novo e distinto precedente (que passará a vigorar ao lado do antigo) ou a simples revisão do precedente antigo.
No primeiro caso, têm-se como relevantes elementos fáticos específicos do caso concreto para, à luz da norma constitucional ou legal aplicável, justificar um novo entendimento sobre a sua interpretação e aplicação. Tal foi o que se deu, por exemplo, no julgamento da ADPF n° 54, na qual o STF autorizou a interrupção da gestação de fetos anencefálicos, ampliando as hipótese de excludentes de ilicitude previstas no Código Penal para a prática do aborto. Naquele caso, o fato da inviabilidade do desenvolvimento com vida do nascituro, revelado pela ciência médica, constituiu fator relevante e decisivo para a distinção traçada pelo STF em relação aos demais casos de aborto criminalizado.
No segundo caso, dá-se uma mutação no próprio parâmetro de controle jurídico – no âmbito da jurisdição constitucional, uma mutação no sentido da própria Constituição. Essa metamorfose de significados pode decorrer do processo de reforma formal do texto constitucional – o que é algo comum e até banalizado no Brasil – ou de processos informais que atuam no plano da reconstrução coletiva do sentido das normas constitucionais. Um bom exemplo colhido da jurisprudência do STF foi o reconhecimento do valor jurídico das uniões homoafetivas como uma forma de união estável, para todos os fins do art. 226, § 3 , inclusive a configuração de uma entidade familiar. Ao reconhecer a evolução da compreensão social sobre as uniões homoafetivas, o Supremo ressignificou o parâmetro constitucional de controle aplicável ao caso, passando a reconhecer a incidência das garantias inerentes à união estável também à união entre pessoas de orientação homoafetiva.
Afora tais situações excepcionais – verdadeiras exceções em um Estado democrático de direito – a manutenção da jurisprudência dominante cumpre o papel de verdadeira garantia institucional essencial à preservação da estabilidade e da previsibilidade nas relações sociais e econômicas. O próprio sistema de precedentes depende, para a sua funcionalidade, de um mecanismo regulador eficaz que assegure a aplicação da mesma tese jurisprudencial a todos os casos idênticos, como condição para a redução do estoque de processos sobre a matéria e garantia de isonomia na distribuição da jurisdição. Além disso, a estabilidade jurisprudencial assegura um ambiente de equilíbrio concorrencial entre agentes econômicos, evitando que mudanças de entendimento possam aleatoriamente favorecer alguns em detrimento de outros.
A existência da situação de pandemia viral, com a consequente deflagração de uma crise econômica e social, por maior que seja a sua gravidade, não constitui razão suficiente a justificar uma revisão na jurisprudência dominante do STF, sob o argumento genérico de sua repercussão econômica transcendente. Bem ao contrário, o respeito à jurisprudência da Suprema Corte é um valor em si a ser promovido e celebrado, como um índice a atestar o amadurecimento das instituições no Brasil. Como bem pontuado pelo Ministro Alexandre de Moraes, “o interesse fiscal das Fazendas Públicas devedoras não é suficiente para atribuir efeitos a uma norma inconstitucional.”[1] De igual modo, não é suficiente para retirar a eficácia de uma norma constitucional aplicável a qualquer caso concreto.
Consoante arguta observação de Daniel Goldberg, “a tentação de endereçar desafios fiscais com decisões judiciais é grande, mas o Supremo tem demonstrado maturidade institucional e tem privilegiado a segurança jurídica. Não será fácil manter essa disciplina em tempos de Covid.”[2] Espera-se que o STF transforme o desafio em oportunidade e reafirme, durante a crise, o seu compromisso com o cumprimento irrestrito da Constituição e a preservação dos marcos do Estado democrático de direito.
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[1] STF, Embargos de declaração no RE 870.947, redator p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 03.10.2019.
[2] Goldberg, Daniel. As abelhas e as leis em tempos de Covid-19. Jota, 15.04.2020.
GUSTAVO BINENBOJM – Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor pela UERJ e Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School.


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