A
gestão da prova penal após a Lei Anticrime
Uma
questão que ainda oscila na jurisprudência brasileira diz respeito às
consequências de eventual produção probatória por parte do juiz no processo
penal. Embora pareça ser de simples resolução diante do Texto Maior, em âmbito
prático ainda há enorme resistência em vislumbrar o óbvio. Mas, Darcy Ribeiro
já dizia:
Aparentemente,
Deus é muito treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita e disfarçada que se
precisa desta categoria de gente – os cientistas – para ir tirando os véus,
desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio. (RIBEIRO, Darcy. Sobre
o óbvio. Marília: Lutas Anticapital, 2019, p. 33). Pois passa-se a ele.
Os
Tribunais Superiores têm-se manifestado no sentido de que a atuação ex-officio do
juiz é permitida em determinados casos, ao argumento de busca pela verdade
real, tal como no malfadado artigo 156 do Código de Processo Penal. Ocorre que,
a doutrina mais garantista de há muito aponta a incoerência em se atribuir a
tarefa de julgar a um terceiro que participe do jogo processual, isto é, como é
possível que alguém seja, ao mesmo tempo, destinatário e gestor das provas sem
que com elas crie identificação (simpatia), sobretudo em relação às quais
produziu ou ordenou a produção?
A
temática, dessa forma, está intrinsecamente relacionada à imparcialidade do
órgão judicante e a necessidade de preservação da originalidade cognitiva, ou
seja, ausência da formação de pré-juízos em relação ao objeto do
processo.
A
própria ideia de Jurisdição exige a adoção de um sistema em que esse terceiro
se situe em uma posição de distanciamento, de inércia, como um figurante de um
filme em que os atores principais são as partes (acusação e defesa) ou um
árbitro de futebol durante o jogo, cuja tarefa é a de ser o guardião das normas
e aplicá-las quando cabíveis, sem se imiscuir nas atividades dos jogadores.
O
juiz deve, portanto, entrar e permanecer no jogo alheio ao interesse das
partes, ainda que isso lhe custe desconforto pessoal como ser-no-mundo. A
questão é, recordando Ernst Kantorowicz (Cf: KANTOROWICZ, Ernst. Os dois
corpos do rei. 1ª Ed. Companhia das Letras, 1998), o adequado tratamento dos
“dois corpos do rei”, ou seja, decisão judicial não é sinônimo de escolha. Há
um “corpo físico e outro espiritual”. Na vida privada, pouco importa as
escolhas que fizer, mas na esfera pública o magistrado tem responsabilidade
política e deve agir por princípio, suspendendo pré-juízos e opiniões pessoais
(STRECK).
Feitas
essas considerações iniciais e retomando o curso para a questão central,
apresenta-se os fundamentos normativos para que se possa, até mesmo por conta
própria, responder à indagação: quais as consequências da atuação de ofício do
magistrado no processo penal?
Um
dos grandes avanços civilizatórios proporcionados pela ordem constitucional de
1988 fora o fortalecimento de uma estrutura dialética de processo, onde cabe às
partes a tarefa de gestão das provas. O art. 129, inciso I, da
Constituição Federal, estabelece como função institucional e privativa do
Ministério Público, a promoção da ação penal pública.
Logo,
o texto constitucional não diz advogado, defensor público, magistrado. Por
isso, é preciso respeitar os limites semânticos de um texto, eis que é ele a
condição de possibilidade para uma interpretação constitucionalmente
adequada (veja-se nesse sentido os avanços no campo da hermenêutica filosófica
com Hans-Georg Gadamer e Martin Heidegger. No Brasil, Lenio Streck
tem capitaneado a luta).
Quis
o novel constituinte claramente estabelecer a separação das funções no jogo
processual penal. Isto é, no actum trium personarum, desde
Búlgaro, às partes – acusação (MP) e defesa – cabem a tarefa de gestão das
provas, e a um magistrado imparcial, o dever de julgar conforme o Direito. No
entanto, no Brasil isso sempre foi mal compreendido. Não é novidade nenhuma a
aliança firmada entre Ministério Público e Judiciário em algumas comarcas deste
país: juízes que produzem prova, promotores que presidem audiência, etc. Tudo à
revelia da Constituição.
A
reforma processual de 2008 introduziu mudança substancial no art. 212 do CPP,
adotando expressamente o cross examination:
Art. 212.
As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não
admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação
com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo
único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a
inquirição
Observa-se
que ao magistrado somente é dado o direito de complementar a inquirição sobre
pontos não esclarecidos, mas não de promover a acusação como parte, ante a
nítida violação ao dever de imparcialidade. Ora, quem procura, procura algo, e
diante do princípio constitucional da presunção de inocência, o que precisa ser
encontrado é prova para condenação, não para absolvição. Se o magistrado é quem
produz a prova, a própria ideia de complementaridade resta maculada. Simples,
pois.
Não
obstante vigente desde 2008, o cross-examination é objeto de
relativização por parte da jurisprudência brasileira, cujo entendimento
majoritário, ao menos anteriormente à introdução do art. 3º-A no CPP, é o de
que a inobservância gera, no máximo, nulidade relativa, cujo reconhecimento
demanda que a parte o alegue em momento oportuno e demonstre o prejuízo, além
de contar com uma dose de boa vontade e subjetivismo dos Tribunais.
No
RHC 113.293/SP, por exemplo, o STJ concluiu que “a formulação das perguntas das
partes pelo Magistrado, e não diretamente, embora não observe a redação do art.
212 do Código de Processo Penal, não revela, por si só, nulidade processual.”
De outro lado, de maneira excepcional, no REsp 1259482/RS reconheceu a nulidade
em razão do magistrado ter protagonizado a inquirição, em nítida substituição
do órgão acusatório.
A
despeito da jurisprudência vacilante, acredita-se que com o advento da Lei nº
13.964/2019, com destaque para a redação do art. 3º-A do CPP, o tema deve ser
pacificado no sentido de que a inobservância ao dispositivo supratranscrito – e
a qualquer outro que objetive a preservação do sistema acusatório – ocasionará
a nulidade absoluta, com a anulação dos atos praticados e dos com que ele se
relacione, assim como afastamento da autoridade psiquicamente contaminada para
atuar no feito (art. 157, §5º, CPP).
Não
bastasse mais de 30 (trinta) anos de redemocratização, inúmeros patuleus
sacrificados em um processo penal primitivo, rios de tinta e recursos públicos
gastos para reafirmar o óbvio, tal como recentemente fez o art. 3º-A do CPP,
ainda sim setores da comunidade jurídica repetirão resquícios da Idade Média
como “verdade real e plenitude de acusação”?
A
nosso ver, o que antes já encontrava amparo nos artigos 129, inc. I, da CF e
212 do CPP é reafirmado pelo denominado “Pacote Anti-crime” ao expressamente
vedar a iniciativa probatória do juiz e a substituição do órgão
acusatório.
Se
for dado ao magistrado o poder
de produzir toda a prova que mais tarde irá utilizar para condenar o indivíduo
submetido ao processo penal, não faz sentido algum que a viúva arque com os
altos custos para a manutenção da instituição ministerial. Há de se rechaçar
atitudes como essa ou admitir que não se respeita mesmo os limites da lei. Só
se pode complementar o que antes já se iniciou. Tertium non datur.
Entretanto,
não é demais lembrar que o Direito é um campo fértil para a institucionalização
das relações simbólicas de poder e o lócus privilegiado de
sustentação do status quo, principalmente em um quadrante histórico
em que a legalidade constitucional tem sido suplantada por argumentos morais de
diversas ordens.
Resta
saber se os setores do poder permitirão o diálogo leal e democrático, como deve
ser. Que o jogo tenha paridade de armas e não estratégias de bastidores e
corporativismos. Até então, a ideia que fica é a de que “faltou combinar com os
russos.”
(Registra-se
que os artigos 3º-A e 157, §5º, do CPP, assim como as inovações que tratam do
Juiz das Garantias, encontram-se com a eficácia suspensa por força de decisão
monocrática do Min. Luiz Fux que deferiu cautelar nas ADI’s 6.298, 6.299, 6.300
e 6.305, ao argumento de que, em juízo perfunctório, pode-se verificar possível
ofensa ao art. 96 da Constituição Federal (inconstitucionalidade formal por
vício de iniciativa), dada a natureza jurídica, na visão dele, híbrida da norma
(processual, mas também de organização judiciária). A matéria resta pendente,
portanto, de apreciação pelo plenário da Suprema Corte.)