Tráfico privilegiado
de drogas e o pacote anticrime
16 de março de 2020,
7h08
O denominado tráfico “privilegiado” de drogas está
previsto no parágrafo 4°, do artigo 33, da atual Lei de Drogas brasileira (Lei
11.343/2006), vejamos:
§4º Nos delitos definidos no caput e no
§1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços,
vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja
primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem
integre organização criminosa.
Como se vê, não se trata de verdadeira privilegiadora,
uma vez que o referido parágrafo não estabelece novos limites mínimo e máximo
de pena privativa de liberdade – como ocorre no caso do tipo legal de infanticídio
em relação ao de homicídio – mas de causa de diminuição – incidente na terceira
fase da dosimetria da pena – que pode variar de um sexto a dois terços quando o
acusado for primário, portador de bons antecedentes, não se dedicar à
atividades criminosas e não integrar organização criminosa.
Inovação da Lei 11.343/2006, buscou o legislador
ordinário dispensar tratamento penal proporcionalmente mais adequado ao menor
juízo de reprovação da ação praticada pelo agente, haja vista a elevação da
pena mínima para 5 (cinco) anos promovida pela atual Lei de Drogas e a
constitucional equiparação do tráfico de entorpecentes e drogas afins aos
crimes hediondos, com todas as consequências daí advindas (maior tempo de
cumprimento de pena para progredir de regime e obter livramento condicional;
impossibilidade de concessão de indulto; etc.), de modo a beneficiar aquele
condenado por um episódio eventual, isolado, evitando, assim, o início de
carreiras criminosas.
Em razão da mens
legis, grande debate foi travado na doutrina especializada e nos tribunais
acerca da hediondez da conduta quando incidente a referida causa de diminuição
da pena, levando o Superior Tribunal de Justiça a editar a Súmula 512
refletindo o entendimento firmado naquela Corte Superior no sentido de que “a
aplicação da causa de diminuição de pena prevista no artigo 33, §4º, da
Lei 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas”.
O Supremo Tribunal Federal, contudo, em 23 de junho de
2016, ao julgar o HC 118.533/MS, rel. Min. Cármen Lúcia, superando o
entendimento até então predominante na Suprema Corte, afastou a natureza de
crime equiparado a hediondo do tráfico “privilegiado” de drogas quando
aplicável no caso o parágrafo 4°, do artigo 33, da Lei 11.343/2006,
consignando que no caso do tráfico privilegiado, a decisão do legislador fora
no sentido de que o agente, nessa hipótese, deveria receber tratamento distinto
daqueles sobre os quais recairia o alto juízo de censura e de punição pelo
tráfico de drogas. As circunstâncias legais do privilégio demonstrariam o menor
juízo de reprovação e, em consequência, de punição dessas pessoas. Não se
poderia, portanto, chancelar-se a essas condutas a hediondez.
Em respeito ao novo
entendimento firmado pelo STF, o STJ, em julgamento de recurso especial sob o
rito dos recursos repetitivos, cancelou a Súmula 512, firmando a tese segundo a
qual o tráfico ilícito de drogas na sua forma privilegiada
(artigo 33, §4°, da Lei 11.343/2006) não é crime equiparado a hediondo (Pet 11.796/DF,
rel. Min. Maria Theresa de Assis Moura, j. em 23/11/2016).
Reflexo do que
decidido pelo STF, a Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como
“pacote anticrime”, alterou a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) de modo a
expressamente prever, no novo parágrafo 5°, do seu artigo 112, que “não
se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de
tráfico de drogas previsto no §4º do artigo 33 da Lei 11.343, de 23
de agosto de 2006”.
A referida Lei 13.964/2019, ao alterar o art. 112
da LEP e revogar expressamente o parágrafo 2°, do artigo 2°, da Lei dos
Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), modificou o requisito objetivo para a
obtenção da progressão de regime, exigindo percentuais diferentes de
cumprimento da pena privativa de liberdade, vejamos:
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada
em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser
determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos: I - 16%
(dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido
cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; II - 20% (vinte por
cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à
pessoa ou grave ameaça; III - 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o
apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou
grave ameaça; IV - 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente
em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; V - 40%
(quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime
hediondo ou equiparado, se for primário; VI - 50% (cinquenta por
cento) da pena, se o apenado for: a) condenado pela prática de crime hediondo
ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento
condicional; b) condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de
organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou
equiparado; ou c) condenado pela prática do crime de constituição de milícia
privada; VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente
na prática de crime hediondo ou equiparado; VIII - 70% (setenta por cento) da
pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com
resultado morte, vedado o livramento condicional (grifei).
No que se refere especificamente ao tráfico de
entorpecentes e drogas afins, uma vez preenchidos os requisitos para a
incidência da causa de diminuição da pena prevista no parágrafo 4°, do artigo
33, da Lei 11.343/2006, o condenado preencherá o requisito objetivo para
progredir de regime ao cumprir 16% da pena privativa de liberdade, em vez dos
40% exigidos para os condenados por crime hediondo ou equiparado, haja vista o
afastamento jurisprudencial e, agora, legal da hediondez da conduta.
Nesse sentido, também o requisito objetivo para a
obtenção do livramento condicional é mais brando quando reconhecido o tráfico
“privilegiado” de drogas, exigindo o legislador ordinário o cumprimento de mais
de 1/3 (um terço) da pena privativa de liberdade (artigo 83, inciso I, do CP),
em vez dos mais de 2/3 (dois terços) para os condenados por crime hediondo ou
equiparado (artigo 44, parágrafo único, da Lei 11.343/2006).
Por fim, e ainda
corolário do afastamento da natureza de crime equiparado a hediondo operado
pelo STF e pela Lei 13.964/2019, o STJ já possuía jurisprudência pacífica no
sentido da possibilidade de concessão de indulto aos condenados por tráfico
“privilegiado” de drogas, consignando que “é possível a concessão de
indulto aos condenados por crime de tráfico de drogas privilegiado (§4° do
artigo 33 da Lei 11.343/2006), por estar desprovido de natureza hedionda”.
Thiago Hygino Knopp é especialista em
Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes.
Advogado Criminalista com foco em casos de consumo pessoal e tráfico de drogas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário