A definição pela retroatividade configura importante marco,
mas a questão requer outros passos
24/02/2020
Crédito: Conselho Nacional do Ministério Público.
O acordo de não persecução penal, após duplo regramento pelo
Conselho Nacional do Ministério Público (Resoluções nº 181/2017 e nº 183/2018)
e das críticas recebidas por um setor da doutrina[1], ganhou
previsão legal com a promulgação da Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro.
Tratando-se de mecanismo de diversificação da pena criminal,
visa não somente auxiliar no desafogo do abarrotado sistema de justiça
criminal, senão, especialmente, impedir a estigmatização e a dessocialização
que decorrem de processos com sentença condenatória.
Sua respectiva legalização, não restam dúvidas, acarretará
várias discussões[2], uma delas
atinente ao direito transitório, ou seja, à possibilidade ou não de sua
aplicação retroativa a infrações ocorridas anteriormente à existência da Lei n.
13.964/2019.
O início desta análise requer, necessariamente, uma definição
sobre a natureza jurídica da norma que regula o acordo. Afinal, estar-se-ia
diante de norma penal, processual penal ou híbrida?
Embora formalmente esteja inserido no Código de Processo
Penal, art. 28-A, também se reveste de conteúdo de direito material no que diz
respeito às suas consequências, apresentando-se como verdadeira norma de
garantia e, com efeito, retroativa.
Em outros termos, é norma que interfere diretamente na
pretensão punitiva do Estado, e não uma simples norma reguladora de
procedimento. Se tomarmos a lembrança histórica da promulgação da Lei dos
Juizados Especiais (que também criou outras medidas de diversificação penal), a
carga retroativa é coincidente (STF, Pleno, INQ 1055QO/AM)[3].
A definição pela retroatividade configura importante marco,
mas a questão requer outros passos. O seguinte diz respeito a saber até que
momento as disposições do art. 28-A do CPP podem produzir efeitos nos processos
iniciados em momento pretérito a sua existência?
Para o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, desde que não
recebida a denúncia[4]. Para a Corte
Constitucional, em precedente remoto relacionado a instituto diversificador da
Lei n. 9.099/1995, um pouco mais além, de sorte que a incidência do benefício
estaria condicionada à inexistência de condenação penal, ainda que recorrível
(1ª Turma, HC 74.463-0, rel. Min. Celso de Mello, DJ 07/03/1997).
Essas alternativas condicionam o efeito retroativo do
instituto à inocorrência, respectivamente, de um despacho de natureza
interlocutória simples ou de uma sentença condenatória.
Bem vistas as coisas, cada qual cria uma barreira insuperável
não prevista pelo constituinte no inciso XL do art. 5º (“a lei penal não
retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) e tampouco pelo legislador
infraconstitucional, afinal, nem mesmo o trânsito em julgado da sentença
condenatória impede a aplicação retroativa de lei posterior favorável (art. 2º,
parágrafo único, do Código Penal).
O argumento de que a condenação compromete a finalidade
precípua para a qual o instituto do acordo de não persecução penal foi
concebido, vale dizer, o de afastar a imposição da pena criminal, não pode
representar um impedimento à retroatividade, visto que a mesma restrição não
consta dos textos constitucional e legal.
Nestes termos, em atenção ao art. 28-A do CPP, a defesa deverá
requerer – em preliminar da apelação – a conversão do julgamento em diligência.
Por sua vez, para os processos com decisão definitiva, os contornos da solução
são mais específicos, mas, como bem pontua Paulo Busato, “a garantia da coisa
julgada não serve para amparar pretensão punitiva do Estado”[5].
No último contexto se faz necessário separar os condenados
ainda em fase de execução penal daqueles que já cumpriram a reprimenda. Aos
primeiros, entende-se possível a aplicação por analogia da regra do caput do
art. 2º do Código Penal e, como tal, em análise hipotética, satisfeitos os
requisitos legais, a execução ficaria suspensa e a respectiva pena seria
substituída pelas condições ajustadas no acordo que, efetivamente cumpridas,
ensejariam a extinção da punibilidade do agente, deixando de acarretar maus
antecedentes e de gerar reincidência (ou seja, também cessariam os efeitos
penais secundários da condenação).
Na eventualidade de o agente descumprir injustificadamente as
condições ajustadas, retornaria ao cumprimento do restante da pena que estava
suspensa.
Para aqueles que cumpriram totalmente a respectiva pena, a
princípio, parece não ter sentido a incidência do acordo, no entanto, tal
conclusão seria incorreta, pois é notório que a condenação gera outros efeitos
além da primária imposição da pena criminal.
Dentre os efeitos secundários se destaca a reincidência e, a
partir dela, inúmeras outras restrições de benefícios, como a definição de um
regime de cumprimento de pena menos rigoroso ou a incidência de penas
alternativas.
Assim, entende-se que a defesa deve peticionar ao juízo da
execução penal requerendo que o órgão de acusação se pronuncie se, à época do
fato, o agente preenchia os requisitos previstos em lei (art. 28-A, caput e
§ 2° do CPP) que viabilizariam, neste contexto, a proposição de hipotético
acordo.
Em caso positivo, a retroatividade incidirá justamente para
extinguir os efeitos acessórios da condenação (v.g. reincidência).
Ao agente, por evidente, não será legítimo impor quaisquer condições, visto que
já executou a totalidade da pena, de modo que tal exigência representaria
violação gritante ao princípio ne bis in idem.
Há quem possa argumentar que não seria razoável, e muito menos
exequível, que a totalidade das condenações pretéritas tivesse de ser reformada
diante da nova legislação que passou a prever a atenuação das consequências
jurídico-penais por meio do acordo de não persecução. Tal argumento, ainda que
consistente, pode ser relativizado, definindo-se uma limitação temporal da
retroatividade.
A propósito, para obstar um efeito regressivo infinito, o
último passo é definir até que momento estaria o Ministério Público obrigado a
analisar o eventual preenchimento pelo agente dos requisitos legais do acordo
no que se refere às infrações pretéritas.
Neste aspecto, entende-se que a análise se realizará
unicamente nos processos em que a data do cumprimento total da pena ou de sua
extinção tenha ocorrido nos cinco anos anteriores à existência da Lei n.
13.964/2019, de sorte que o quinquídio corresponderia ao prazo expurgador da
reincidência.
Como nesse período persistem os efeitos secundários da
condenação, é cogente a atuação ministerial por meio do acordo para arrefecer
eventuais danos decorrentes de nova prática delitiva. Em síntese, eventual
concretização do acordo recobriria o agente de primariedade.
[1] Por exemplo, o Defensor Público Eduardo
Newton: www.justificando.com/2017/09/15/e-grave-resolucao-de-cupula-do-mp-sobre-acordo-de-nao-persecucao-penal Acesso
em 10/02/2020.
[2] A propósito, veja-se: MARTINELLI, João Paulo; DE
BEM, Leonardo Schmitt. Direito penal: lições fundamentais, parte
geral. 5ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 1253-1264.
[3] A relatoria foi do Ministro Celso de Mello, com
publicação no Diário Oficial em 24 de maio de 1996. O mesmo se confirmou no
julgamento da ADIn n. n. 1.719-9, rel. Min. Joaquim Barbosa, DOU 28/08/2007.
[4] CNPG. Comissão especial: enunciados
interpretativos da Lei Anticrime, 2020, p. 6 (Enunciado 20).
LEONARDO SCHMITT DE BEM – Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di
Milano (Itália). Doutor em Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas pela
Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha). Professor Adjunto de Direito Penal
na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
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JOÃO PAULO MARTINELLI – Pós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Advogado criminalista. Professor do IBMEC-SP.
JOÃO PAULO MARTINELLI – Pós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Advogado criminalista. Professor do IBMEC-SP.
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