segunda-feira, 23 de março de 2020

Lei de Abuso de Autoridade e o crime de pensamento


A Lei de Abuso de Autoridade viola o princípio constitucional da tipicidade estrita da norma penal

19/03/2020 12:13

Fachada do Supremo Tribunal Federal – Crédito: Dorivan Marinho/SCO/STF
A nova Lei de Abuso de Autoridade (13.869/2019) criou diversos tipos penais vagos e imprecisos, chegando ao ponto de, em alguns artigos, criminalizar até mesmo a atividade cognitiva de juízes e procuradores, que, no desempenho de seu exercício profissional, necessitam interpretar as normas jurídicas para cumprirem o seu dever funcional.

Esse cenário surreal lembra o nefando “crime de pensamento”, descrito no romance 1984, de George Orwell, obra que retrata as agruras de um regime totalitário no qual o “Grande Irmão” controla a tudo e a todos.

Na distopia orwelliana, o Sistema tenta controlar não apenas as falas e ações, mas também os pensamentos de seus cidadãos, rotulando as ideias desaprovadas pelo termo “crime de pensamento” (thoughtcrime) ou, em novilíngua, “pensar criminoso” (crimethink), que pode ser traduzido como “crimideia” ou “crimepensar”, um delito hediondo punível com pena capital.

O protagonista Winston Smith chegou a escrever: “crime de pensamento não acarreta morte: crime de pensamento é morte” (“thoughtcrime does not entail death: thoughtcrime is death“) .

Ficção ou realidade? Basta lembrar que o polêmico “crime de hermenêutica”, que chegaram a tentar ressuscitar no anteprojeto da nova lei de Abuso de Autoridade, já foi tipificado no Brasil, em uma época na qual o Estado Democrático de Direito ainda não estava devidamente consolidado. O artigo 207 do Código Penal de 1890 previa:

“Cometerá crime de prevaricação o empregado público que, por afeição, ódio, contemplação ou para promover interesse seu: I- julgar, ou proceder contra literal disposição de lei. Penas: de prisão celular por seis meses a um ano, perda de emprego com inabilitação para exercer outro e multa de 200$ a 600.”

No julgamento da Representação no. 357, o Ministro Luiz Fux, que, na época, ainda estava no Superior Tribunal de Justiça, evocou a prédica do mestre Rui Barbosa ao defender um juiz do Rio Grande do Sul (Alcides de Mendonça Lima) acusado de crime de hermenêutica entre 1896/1899:

“Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã.
Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema de recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo.”

Esse contra-ataque legislativo costuma ressurgir sempre que os interesses dos poderosos são afetados pelas decisões judiciais. Dessa vez, a reação do establishment contra a atividade jurisdicional foi mais sutil – mas nem por isso menos nociva para a sociedade. Por exemplo, a Lei 13.869/2019 instituiu, dentre outros tipos penais vagos e imprecisos, os seguintes crimes:

Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo

Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:

Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:

Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:

Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la:

A leitura desses tipos penais, citados por amostragem, revela que o legislador recorreu a conceitos abertos e genéricos, que abrem brecha para todo tipo de perseguição às autoridades que incomodarem o poder político ou econômico.

Basta ver que a lei não define o que é uma condução coercitiva “manifestamente descabida” (art.10) ou a instauração de procedimento investigatório sem “qualquer indício” (art.27). Da mesma forma, a norma não esclarece o que significa a expressão “sem justa causa fundamentada” (art.30) nem, tampouco, explica o que vem a ser a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia “que extrapole exacerbadamente o valor estimado” (art.36). “Exacerbado” é um conceito que ficará ao critério do devedor?

Portanto, a lei de abuso de autoridade viola o princípio constitucional da tipicidade estrita da norma penal – art. 5º, inciso XXXIX (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”).

Outrossim, a lei 13.869/2019 colide com o princípio da independência judicial (art.93, IX, e art.95, I, II e III, todos da CF e artigo 41 da LOMAN).

Esse diploma legal também introduziu incoerências sistêmicas no nosso ordenamento jurídico, criando contradições insuperáveis.

Por exemplo, ao mesmo tempo em que o artigo 27 da lei 13.869/2019 criminaliza, de forma genérica, a requisição ou a instauração de procedimento investigatório sem “qualquer indício” (art.27), o artigo 40 do CPP, o art. 66 da LCP e o art.907/CLT obrigam os juízes a comunicarem ao Ministério Público qualquer fato que, em tese, possa vir a configurar crime de ação pública.

No caso específico da Justiça do Trabalho, que, segundo o CNJ, é o ramo mais célere de todo o Poder Judiciário, a inserção do artigo 36 na Lei.13.869/2019 dificultará, sobremaneira, a penhora de ativos financeiros, diante das características peculiares do sistema “Bacenjud”. O que comprometerá a efetividade das decisões judiciais, prejudicando milhões de trabalhadores que dependem desta Justiça Especializada para receberem créditos de natureza alimentar.

Muitas vezes, são desempregados que não receberam, sequer, os salários devidos antes da demissão ou mesmo as verbas rescisórias. Será que o objetivo foi justamente retardar o cumprimento das sentenças, premiando os infratores? Parece claro que o art.36 da Lei 13.869/2019 revela-se incompatível com o art.854/CPC e com o art. 883 da CLT.

Não se trata, aqui, de defender um determinado juiz ou uma decisão judicial específica, mas sim de preservar uma Instituição Republicana, cuja relevância social está acima das conjunturas políticas do momento.

É evidente que, como em qualquer outra atividade humana, existem profissionais que cometem erros e esses excessos devem ser coibidos e punidos. No entanto, nosso ordenamento jurídico já contempla diversas normas para punir quem se desviar do bom caminho e abusar da sua autoridade, inclusive com sanções administrativas, cíveis e penais, podendo, ao final, resultar até mesmo na perda do cargo.

Não há necessidade alguma de se instituir uma nova legislação draconiana que, sob o pretexto de inibir abusos pontuais, acaba por constranger e cercear toda a atividade jurisdicional, punindo, no fundo, os próprios cidadãos, que serão, na verdade, os maiores prejudicados pelo estímulo à impunidade.

Resta-nos a esperança de que, enquanto vivermos em um Estado Democrático de Direito, o Supremo Tribunal Federal saberá corrigir os excessos legislativos ao cumprir sua função de guardião da Constituição da República, de modo que nenhum juiz, procurador ou qualquer outro agente público tenha o receio de ser punido ou acusado de um “crime de hermenêutica” ou, quiçá, de um “crime de pensamento”.
RENATO DA FONSECA JANON – Juiz Titular da 1a. VT de Lençois Paulista


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