A Lei de Abuso de
Autoridade viola o princípio constitucional da tipicidade estrita da norma
penal
19/03/2020 12:13
Fachada do Supremo Tribunal Federal – Crédito: Dorivan
Marinho/SCO/STF
A nova Lei de Abuso
de Autoridade (13.869/2019) criou diversos tipos penais vagos e imprecisos,
chegando ao ponto de, em alguns artigos, criminalizar até mesmo a atividade
cognitiva de juízes e procuradores, que, no desempenho de seu exercício
profissional, necessitam interpretar as normas jurídicas para cumprirem o seu
dever funcional.
Esse cenário surreal
lembra o nefando “crime de pensamento”, descrito no romance 1984, de George
Orwell, obra que retrata as agruras de um regime totalitário no qual o “Grande
Irmão” controla a tudo e a todos.
Na distopia
orwelliana, o Sistema tenta controlar não apenas as falas e ações, mas também
os pensamentos de seus cidadãos, rotulando as ideias desaprovadas pelo termo
“crime de pensamento” (thoughtcrime) ou, em novilíngua, “pensar criminoso”
(crimethink), que pode ser traduzido como “crimideia” ou “crimepensar”, um
delito hediondo punível com pena capital.
O protagonista
Winston Smith chegou a escrever: “crime de pensamento não acarreta morte: crime
de pensamento é morte” (“thoughtcrime does not entail death: thoughtcrime is
death“) .
Ficção ou realidade?
Basta lembrar que o polêmico “crime de hermenêutica”, que chegaram a tentar
ressuscitar no anteprojeto da nova lei de Abuso de Autoridade, já foi
tipificado no Brasil, em uma época na qual o Estado Democrático de Direito
ainda não estava devidamente consolidado. O artigo 207 do Código Penal de 1890
previa:
“Cometerá crime de
prevaricação o empregado público que, por afeição, ódio, contemplação ou para
promover interesse seu: I- julgar, ou proceder contra literal disposição de
lei. Penas: de prisão celular por seis meses a um ano, perda de emprego com
inabilitação para exercer outro e multa de 200$ a 600.”
No julgamento da
Representação no. 357, o Ministro Luiz Fux, que, na época, ainda estava no
Superior Tribunal de Justiça, evocou a prédica do mestre Rui Barbosa ao
defender um juiz do Rio Grande do Sul (Alcides de Mendonça Lima) acusado de
crime de hermenêutica entre 1896/1899:
“Esta hipérbole do
absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E,
se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo
para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada
pelos oráculos da ortodoxia cortesã.
Se o julgador, cuja
opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do direito escrito,
incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em
vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo
sistema de recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos,
em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado,
base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que
dissolve o homem em escravo.”
Esse contra-ataque
legislativo costuma ressurgir sempre que os interesses dos poderosos são
afetados pelas decisões judiciais. Dessa vez, a reação do establishment contra
a atividade jurisdicional foi mais sutil – mas nem por isso menos nociva para a
sociedade. Por exemplo, a Lei 13.869/2019 instituiu, dentre outros tipos penais
vagos e imprecisos, os seguintes crimes:
Art. 10. Decretar a
condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou
sem prévia intimação de comparecimento ao juízo
Art. 27. Requisitar
instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou
administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática
de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Art. 30. Dar início
ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa
fundamentada ou contra quem sabe inocente:
Art. 33. Exigir
informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não
fazer, sem expresso amparo legal:
Art. 36. Decretar, em
processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que
extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte
e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de
corrigi-la:
A leitura desses
tipos penais, citados por amostragem, revela que o legislador recorreu a
conceitos abertos e genéricos, que abrem brecha para todo tipo de perseguição
às autoridades que incomodarem o poder político ou econômico.
Basta ver que a lei
não define o que é uma condução coercitiva “manifestamente descabida” (art.10)
ou a instauração de procedimento investigatório sem “qualquer indício”
(art.27). Da mesma forma, a norma não esclarece o que significa a expressão
“sem justa causa fundamentada” (art.30) nem, tampouco, explica o que vem a ser
a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia “que extrapole
exacerbadamente o valor estimado” (art.36). “Exacerbado” é um conceito que
ficará ao critério do devedor?
Portanto, a lei de abuso de autoridade viola o princípio
constitucional da tipicidade estrita da norma penal – art. 5º, inciso XXXIX
(“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal”).
Outrossim, a lei
13.869/2019 colide com o princípio da independência judicial (art.93, IX, e
art.95, I, II e III, todos da CF e artigo 41 da LOMAN).
Esse diploma legal
também introduziu incoerências sistêmicas no nosso ordenamento jurídico,
criando contradições insuperáveis.
Por exemplo, ao mesmo
tempo em que o artigo 27 da lei 13.869/2019 criminaliza, de forma genérica, a
requisição ou a instauração de procedimento investigatório sem “qualquer
indício” (art.27), o artigo 40 do CPP, o art. 66 da LCP e o art.907/CLT obrigam
os juízes a comunicarem ao Ministério Público qualquer fato que, em tese, possa
vir a configurar crime de ação pública.
No caso específico da
Justiça do Trabalho, que, segundo o CNJ, é o ramo mais célere de todo o Poder
Judiciário, a inserção do artigo 36 na Lei.13.869/2019 dificultará,
sobremaneira, a penhora de ativos financeiros, diante das características
peculiares do sistema “Bacenjud”. O que comprometerá a efetividade das decisões
judiciais, prejudicando milhões de trabalhadores que dependem desta Justiça
Especializada para receberem créditos de natureza alimentar.
Muitas vezes, são
desempregados que não receberam, sequer, os salários devidos antes da demissão
ou mesmo as verbas rescisórias. Será que o objetivo foi justamente retardar o
cumprimento das sentenças, premiando os infratores? Parece claro que o art.36
da Lei 13.869/2019 revela-se incompatível com o art.854/CPC e com o art. 883 da
CLT.
Não se trata, aqui,
de defender um determinado juiz ou uma decisão judicial específica, mas sim de
preservar uma Instituição Republicana, cuja relevância social está acima das
conjunturas políticas do momento.
É evidente que, como
em qualquer outra atividade humana, existem profissionais que cometem erros e
esses excessos devem ser coibidos e punidos. No entanto, nosso ordenamento jurídico
já contempla diversas normas para punir quem se desviar do bom caminho e abusar
da sua autoridade, inclusive com sanções administrativas, cíveis e penais,
podendo, ao final, resultar até mesmo na perda do cargo.
Não há necessidade
alguma de se instituir uma nova legislação draconiana que, sob o pretexto de
inibir abusos pontuais, acaba por constranger e cercear toda a atividade
jurisdicional, punindo, no fundo, os próprios cidadãos, que serão, na verdade,
os maiores prejudicados pelo estímulo à impunidade.
Resta-nos a esperança
de que, enquanto vivermos em um Estado Democrático de Direito, o Supremo
Tribunal Federal saberá corrigir os excessos legislativos ao cumprir sua função
de guardião da Constituição da República, de modo que nenhum juiz, procurador
ou qualquer outro agente público tenha o receio de ser punido ou acusado de um
“crime de hermenêutica” ou, quiçá, de um “crime de pensamento”.
RENATO DA FONSECA JANON – Juiz Titular da 1a. VT de
Lençois Paulista
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