terça-feira, 24 de março de 2020

Depen suspende por 30 dias atendimento de advogado e visitas a presos


24 de março de 2020, 9h27

O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) suspendeu por 30 dias os atendimentos de advogados nos presídios do Sistema Penitenciário Federal. Segundo a portaria, publicada nesta terça-feira (24/3), a suspensão é uma forma de prevenção, controle e contenção de riscos do coronavírus (Covid-19). A suspensão de atendimento de advogado não vale para casos urgentes ou que envolvam prazos processuais não suspensos.
A portaria também suspende as visitas, as atividades educacionais, de trabalho, as assistências religiosas e as escoltas. A norma suspende portaria anterior do Depen que já havia vetado as visitas e atendimentos por um prazo menor. A portaria estabelece ainda que presos com mais de 60 anos ou doenças crônicas devem ser isolados durante as movimentações internas.

Segundo levantamento do Depen divulgado nesta segunda-feira (23/3), há 143 mil presos trabalhando no sistema prisional e 110 mil presos que estudam. Conforme o Infopen 2019, o Brasil possui uma população prisional de 752 mil pessoas, sem contar delegacias.
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO

Publicado em: 24/03/2020 | Edição: 57 | Seção: 1 | Página: 78 Órgão: Ministério da Justiça e Segurança Pública/Departamento Penitenciário Nacional

PORTARIA Nº 5, DE 16 DE MARÇO DE 2020

Suspende as visitas, os atendimentos de advogados, as atividades educacionais, de trabalho, as assistências religiosas e as escoltas realizadas nas Penitenciárias Federais do Sistema Penitenciário Federal do Departamento Penitenciário Nacional como forma de prevenção, controle e contenção de riscos do Novo Coronavírus

O DIRETOR DO SISTEMA PENITENCIÁRIO FEDERAL, no uso das atribuições que lhe foram conferidas pelo art. 49, inciso V, do Regimento Interno do DEPEN, aprovado pela Portaria n.º 199, de 09 de novembro de 2018, do Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Segurança Pública.

Considerando a Portaria nº 188/GM/MS, de 04 de fevereiro de 2020, que declara Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV);

Considerando a classificação pela Organização Mundial de Saúde, no dia 11 de março de 2020, como pandemia do Novo Coronavírus;

Considerando que o Sistema Penitenciário Federal já elaborou o Procedimento Operacional Padrão de Medidas de Controle e Prevenção do Novo Coronavírus, devido a necessidade de se estabelecer um plano de resposta a esse evento e também padronizar ações e medidas de controle e prevenção do Novo Coronavírus nas penitenciárias federais;

Considerando que a situação demanda o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde dos servidores, colaboradores e presos, enfim, a proteção de todos, a fim de evitar a disseminação da doença no âmbito das penitenciárias federais;

Considerando que tal medida tem caráter preventivo e está alinhada com as ações da Diretoria do Sistema Penitenciário Federal voltadas para a prevenção de possíveis contágios com o coronavírus nas penitenciárias federais;

Considerando a Portaria DISPF nº 4, de 15 de março de 2020, que suspendeu as visitas sociais, atendimentos de advogados e as escoltas dos presos custodiados nas Penitenciárias Federais do Sistema Penitenciário Federal do Departamento Penitenciário Nacional como forma de prevenção, controle e contenção de riscos do Novo Coronavírus;

Considerando a previsão do artigo 5º da RESOLUÇÃO CNJ Nº 313, DE 19 DE MARÇO DE 2020 com a suspensão de prazos processuais; Considerando os termos do artigo 2º da Portaria MJSP nº 135, DE 18 de MARÇO DE 2020;

Considerando os termos do artigo 17 da PORTARIA GAB-DEPEN Nº 181, DE 19 DE MARÇO DE 2020, resolve:

 Art. 1º As visitas, os atendimentos de advogados, as atividades educacionais e de trabalho, as assistências religiosas e as escoltas dos presos custodiados nas penitenciárias federais, como forma de prevenção à disseminação do COVID-19 (Coronavírus), ficam suspensas por 30 (trinta) dias, salvo:

I - no caso de atendimentos de advogados, em decorrência de necessidades urgentes ou que envolvam prazos processuais não suspensos;

II - escoltas de requisições judiciais, inclusões emergenciais e daquelas que por sua natureza, precisam ser realizadas. 3/24/2020 PORTARIA Nº 5, DE 16 DE MARÇO DE 2020 - PORTARIA Nº 5, DE 16 DE MARÇO DE 2020 - DOU - Imprensa Nacionalwww.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-5-de-16-de-marco-de-2020-249490711 2/2

Art. 2º As Penitenciárias Federais deverão adotar as providências necessárias de modo a promover o máximo isolamento dos presos maiores de sessenta anos ou com doenças crônicas durante as movimentações internas nos estabelecimentos.

Art. 3º As medidas previstas nesta Portaria poderão ser reavaliadas a qualquer momento, mesmo antes do prazo indicado no art. 1º.

Art. 4º Os casos omissos, a análise das exceções aos incisos I e II do art. 1º, bem como as dúvidas surgidas na aplicação desta Portaria, serão solucionados pelo Diretor da respectiva Penitenciária Federal.

Art. 5º Fica revogada a Portaria DISPF nº 4, de 15 de março de 2020.

Art. 6º Esta portaria entra em vigor na data de sua publicação

MARCELO STONA


Tráfico privilegiado de drogas e o pacote anticrime

16 de março de 2020, 7h08

O denominado tráfico “privilegiado” de drogas está previsto no parágrafo 4°, do artigo 33, da atual Lei de Drogas brasileira (Lei 11.343/2006), vejamos:
§4º Nos delitos definidos no caput e no §1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Como se vê, não se trata de verdadeira privilegiadora, uma vez que o referido parágrafo não estabelece novos limites mínimo e máximo de pena privativa de liberdade – como ocorre no caso do tipo legal de infanticídio em relação ao de homicídio – mas de causa de diminuição – incidente na terceira fase da dosimetria da pena – que pode variar de um sexto a dois terços quando o acusado for primário, portador de bons antecedentes, não se dedicar à atividades criminosas e não integrar organização criminosa.
Inovação da Lei 11.343/2006, buscou o legislador ordinário dispensar tratamento penal proporcionalmente mais adequado ao menor juízo de reprovação da ação praticada pelo agente, haja vista a elevação da pena mínima para 5 (cinco) anos promovida pela atual Lei de Drogas e a constitucional equiparação do tráfico de entorpecentes e drogas afins aos crimes hediondos, com todas as consequências daí advindas (maior tempo de cumprimento de pena para progredir de regime e obter livramento condicional; impossibilidade de concessão de indulto; etc.), de modo a beneficiar aquele condenado por um episódio eventual, isolado, evitando, assim, o início de carreiras criminosas.
Em razão da mens legis, grande debate foi travado na doutrina especializada e nos tribunais acerca da hediondez da conduta quando incidente a referida causa de diminuição da pena, levando o Superior Tribunal de Justiça a editar a Súmula 512 refletindo o entendimento firmado naquela Corte Superior no sentido de que “a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no artigo 33, §4º, da Lei 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas”.

O Supremo Tribunal Federal, contudo, em 23 de junho de 2016, ao julgar o HC 118.533/MS, rel. Min. Cármen Lúcia, superando o entendimento até então predominante na Suprema Corte, afastou a natureza de crime equiparado a hediondo do tráfico “privilegiado” de drogas quando aplicável no caso o parágrafo 4°, do artigo 33, da Lei 11.343/2006, consignando que no caso do tráfico privilegiado, a decisão do legislador fora no sentido de que o agente, nessa hipótese, deveria receber tratamento distinto daqueles sobre os quais recairia o alto juízo de censura e de punição pelo tráfico de drogas. As circunstâncias legais do privilégio demonstrariam o menor juízo de reprovação e, em consequência, de punição dessas pessoas. Não se poderia, portanto, chancelar-se a essas condutas a hediondez.
Em respeito ao novo entendimento firmado pelo STF, o STJ, em julgamento de recurso especial sob o rito dos recursos repetitivos, cancelou a Súmula 512, firmando a tese segundo a qual o tráfico ilícito de drogas na sua forma privilegiada (artigo 33, §4°, da Lei 11.343/2006) não é crime equiparado a hediondo (Pet 11.796/DF, rel. Min. Maria Theresa de Assis Moura, j. em 23/11/2016).

Reflexo do que decidido pelo STF, a Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como “pacote anticrime”, alterou a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) de modo a expressamente prever, no novo parágrafo 5°, do seu artigo 112, que “não se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de tráfico de drogas previsto no §4º do artigo 33 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006”.

A referida Lei 13.964/2019, ao alterar o art. 112 da LEP e revogar expressamente o parágrafo 2°, do artigo 2°, da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), modificou o requisito objetivo para a obtenção da progressão de regime, exigindo percentuais diferentes de cumprimento da pena privativa de liberdade, vejamos:
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos: I - 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; II - 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; III - 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; IV - 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; V - 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário; VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional; b) condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; ou c) condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada; VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado; VIII - 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional (grifei).

No que se refere especificamente ao tráfico de entorpecentes e drogas afins, uma vez preenchidos os requisitos para a incidência da causa de diminuição da pena prevista no parágrafo 4°, do artigo 33, da Lei 11.343/2006, o condenado preencherá o requisito objetivo para progredir de regime ao cumprir 16% da pena privativa de liberdade, em vez dos 40% exigidos para os condenados por crime hediondo ou equiparado, haja vista o afastamento jurisprudencial e, agora, legal da hediondez da conduta.
Nesse sentido, também o requisito objetivo para a obtenção do livramento condicional é mais brando quando reconhecido o tráfico “privilegiado” de drogas, exigindo o legislador ordinário o cumprimento de mais de 1/3 (um terço) da pena privativa de liberdade (artigo 83, inciso I, do CP), em vez dos mais de 2/3 (dois terços) para os condenados por crime hediondo ou equiparado (artigo 44, parágrafo único, da Lei 11.343/2006).
Por fim, e ainda corolário do afastamento da natureza de crime equiparado a hediondo operado pelo STF e pela Lei 13.964/2019, o STJ já possuía jurisprudência pacífica no sentido da possibilidade de concessão de indulto aos condenados por tráfico “privilegiado” de drogas, consignando que “é possível a concessão de indulto aos condenados por crime de tráfico de drogas privilegiado (§4° do artigo 33 da Lei 11.343/2006), por estar desprovido de natureza hedionda”.

Thiago Hygino Knopp é especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes. Advogado Criminalista com foco em casos de consumo pessoal e tráfico de drogas. 

segunda-feira, 23 de março de 2020

Perder Um Mestre



Perder Um Mestre

23/03/2020
Carlos Gianfardoni

Hoje, 23 de março de 2020, perdemos um dos maiores e melhores advogado criminalistas que o Brasil já teve, Dr. Laertes de Macedo Torrens, e eu perdi meu Mestre.

Antes de ser um brilhante profissional, é um notável ser humano.
Digo que é, pois, ainda vive nos meus mais felizes, respeitosos e agradecidos pensamentos.

Convivi com ele por alguns anos, os mais importantes para a minha formação como homem e profissional (advogado e professor).

Cada dia, hora, minuto ou até segundos que passava ao seu lado eram verdadeiras e imperdíveis lições que eu consumia com toda a minha voracidade de saber, pois ali, encontrava um verdadeiro poço de conhecimento.

Ele dominou toda arte de advogar na área penal como um Leonardo da Vinci, Monet, Van Gog e outros Iluminados, combativo, porém, com um charme apaixonante.

Ele me ensinou tudo o que sei, desde como entrar em uma delegacia, até como me apresentar para Ministros do STF. A adentrar em uma sala de aula e respeitar os alunos merecedores de conhecer o que ele me ensinou, pois, a fonte do que sei nele está.

Serei seu eterno missionário abnegado que proclamará seu nome com todo respeito que ele é, e sempre será merecedor.

Aqui me despeço do meu grande mestre: Doutor Laertes de Macedo Torrens, na certeza de novamente, em algum outro lugar, encontrá-lo para que novamente me ensine a Teoria da Não Culpabilidade, como um dia o fez no átrio do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Seu eterno aluno e fiel escudeiro – Carlos Gianfardoni

Lei de Abuso de Autoridade e o crime de pensamento


A Lei de Abuso de Autoridade viola o princípio constitucional da tipicidade estrita da norma penal

19/03/2020 12:13

Fachada do Supremo Tribunal Federal – Crédito: Dorivan Marinho/SCO/STF
A nova Lei de Abuso de Autoridade (13.869/2019) criou diversos tipos penais vagos e imprecisos, chegando ao ponto de, em alguns artigos, criminalizar até mesmo a atividade cognitiva de juízes e procuradores, que, no desempenho de seu exercício profissional, necessitam interpretar as normas jurídicas para cumprirem o seu dever funcional.

Esse cenário surreal lembra o nefando “crime de pensamento”, descrito no romance 1984, de George Orwell, obra que retrata as agruras de um regime totalitário no qual o “Grande Irmão” controla a tudo e a todos.

Na distopia orwelliana, o Sistema tenta controlar não apenas as falas e ações, mas também os pensamentos de seus cidadãos, rotulando as ideias desaprovadas pelo termo “crime de pensamento” (thoughtcrime) ou, em novilíngua, “pensar criminoso” (crimethink), que pode ser traduzido como “crimideia” ou “crimepensar”, um delito hediondo punível com pena capital.

O protagonista Winston Smith chegou a escrever: “crime de pensamento não acarreta morte: crime de pensamento é morte” (“thoughtcrime does not entail death: thoughtcrime is death“) .

Ficção ou realidade? Basta lembrar que o polêmico “crime de hermenêutica”, que chegaram a tentar ressuscitar no anteprojeto da nova lei de Abuso de Autoridade, já foi tipificado no Brasil, em uma época na qual o Estado Democrático de Direito ainda não estava devidamente consolidado. O artigo 207 do Código Penal de 1890 previa:

“Cometerá crime de prevaricação o empregado público que, por afeição, ódio, contemplação ou para promover interesse seu: I- julgar, ou proceder contra literal disposição de lei. Penas: de prisão celular por seis meses a um ano, perda de emprego com inabilitação para exercer outro e multa de 200$ a 600.”

No julgamento da Representação no. 357, o Ministro Luiz Fux, que, na época, ainda estava no Superior Tribunal de Justiça, evocou a prédica do mestre Rui Barbosa ao defender um juiz do Rio Grande do Sul (Alcides de Mendonça Lima) acusado de crime de hermenêutica entre 1896/1899:

“Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã.
Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema de recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo.”

Esse contra-ataque legislativo costuma ressurgir sempre que os interesses dos poderosos são afetados pelas decisões judiciais. Dessa vez, a reação do establishment contra a atividade jurisdicional foi mais sutil – mas nem por isso menos nociva para a sociedade. Por exemplo, a Lei 13.869/2019 instituiu, dentre outros tipos penais vagos e imprecisos, os seguintes crimes:

Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo

Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:

Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:

Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:

Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la:

A leitura desses tipos penais, citados por amostragem, revela que o legislador recorreu a conceitos abertos e genéricos, que abrem brecha para todo tipo de perseguição às autoridades que incomodarem o poder político ou econômico.

Basta ver que a lei não define o que é uma condução coercitiva “manifestamente descabida” (art.10) ou a instauração de procedimento investigatório sem “qualquer indício” (art.27). Da mesma forma, a norma não esclarece o que significa a expressão “sem justa causa fundamentada” (art.30) nem, tampouco, explica o que vem a ser a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia “que extrapole exacerbadamente o valor estimado” (art.36). “Exacerbado” é um conceito que ficará ao critério do devedor?

Portanto, a lei de abuso de autoridade viola o princípio constitucional da tipicidade estrita da norma penal – art. 5º, inciso XXXIX (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”).

Outrossim, a lei 13.869/2019 colide com o princípio da independência judicial (art.93, IX, e art.95, I, II e III, todos da CF e artigo 41 da LOMAN).

Esse diploma legal também introduziu incoerências sistêmicas no nosso ordenamento jurídico, criando contradições insuperáveis.

Por exemplo, ao mesmo tempo em que o artigo 27 da lei 13.869/2019 criminaliza, de forma genérica, a requisição ou a instauração de procedimento investigatório sem “qualquer indício” (art.27), o artigo 40 do CPP, o art. 66 da LCP e o art.907/CLT obrigam os juízes a comunicarem ao Ministério Público qualquer fato que, em tese, possa vir a configurar crime de ação pública.

No caso específico da Justiça do Trabalho, que, segundo o CNJ, é o ramo mais célere de todo o Poder Judiciário, a inserção do artigo 36 na Lei.13.869/2019 dificultará, sobremaneira, a penhora de ativos financeiros, diante das características peculiares do sistema “Bacenjud”. O que comprometerá a efetividade das decisões judiciais, prejudicando milhões de trabalhadores que dependem desta Justiça Especializada para receberem créditos de natureza alimentar.

Muitas vezes, são desempregados que não receberam, sequer, os salários devidos antes da demissão ou mesmo as verbas rescisórias. Será que o objetivo foi justamente retardar o cumprimento das sentenças, premiando os infratores? Parece claro que o art.36 da Lei 13.869/2019 revela-se incompatível com o art.854/CPC e com o art. 883 da CLT.

Não se trata, aqui, de defender um determinado juiz ou uma decisão judicial específica, mas sim de preservar uma Instituição Republicana, cuja relevância social está acima das conjunturas políticas do momento.

É evidente que, como em qualquer outra atividade humana, existem profissionais que cometem erros e esses excessos devem ser coibidos e punidos. No entanto, nosso ordenamento jurídico já contempla diversas normas para punir quem se desviar do bom caminho e abusar da sua autoridade, inclusive com sanções administrativas, cíveis e penais, podendo, ao final, resultar até mesmo na perda do cargo.

Não há necessidade alguma de se instituir uma nova legislação draconiana que, sob o pretexto de inibir abusos pontuais, acaba por constranger e cercear toda a atividade jurisdicional, punindo, no fundo, os próprios cidadãos, que serão, na verdade, os maiores prejudicados pelo estímulo à impunidade.

Resta-nos a esperança de que, enquanto vivermos em um Estado Democrático de Direito, o Supremo Tribunal Federal saberá corrigir os excessos legislativos ao cumprir sua função de guardião da Constituição da República, de modo que nenhum juiz, procurador ou qualquer outro agente público tenha o receio de ser punido ou acusado de um “crime de hermenêutica” ou, quiçá, de um “crime de pensamento”.
RENATO DA FONSECA JANON – Juiz Titular da 1a. VT de Lençois Paulista


quinta-feira, 19 de março de 2020

STF derruba liminar de Marco Aurélio que conclamava por medidas a presos




Plenário entendeu que pedido foge ao escopo da ADPF 347, na qual foi declarado o estado inconstitucional do sistema carcerário

BRASÍLIA

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), não referendou a liminar do ministro Marco Aurélio que conclamava juízes do país a analisarem alternativas a prisão, como regime semiaberto e liberdade condicional a presos com mais de 60 anos, grávidas, e com doenças crônicas.

Na última terça-feira (17/3), o ministro negou pedido do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – Márcio Thomaz Bastos (IDDD) para liberar presos em grupos de risco por causa da pandemia do coronavírus. Entretanto, conclamou que juízes de execução avaliassem a possibilidade de adotar medidas alternativas a determinados grupos de presos.

O pedido do IDDD foi feito na última segunda-feira (16/3), no âmbito da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 347. Foi ao julgar esta ADPF que, em 2015, o plenário do STF declarou o estado inconstitucional de coisas no sistema prisional brasileiro. O IDDD é amicus curiae nesta ação.

O ministro Marco Aurélio, relator da ação, negou o pedido por entender que a entidade não tem legitimidade para requerer tutela incidental. Entretanto, “considerada a integridade física e moral dos custodiados”, assentou a conveniência “e, até mesmo, a necessidade de o Plenário pronunciar-se” sobre o assunto, e conclamou que os juízes de execução analisem sugestões sobre alternativas à prisão para grupos de risco. Entre as sugestões, estão a concessão de liberdade condicional a quem tem 60 anos ou mais e o regime domiciliar às gestantes e lactantes.

No plenário, entretanto, a decisão não foi referendada. O ministro Marco Aurélio começou o julgamento explicando que não determinou a soltura de nenhum preso, apenas conclamou que juízes de execução avaliem possibilidades. “Apenas conclamei. Não determinou a soltura de quem quer que seja, simplesmente assentei o óbvio porque decorre do arcabouço normativo que o juiz de execução deve examinar constantemente a situação dos custodiados, caso a caso”, falou.

O ministro Alexandre de Moraes abriu a divergência, entendendo que não há legitimidade do IDDD para pleitear a liminar, e que o pedido extrapola o âmbito da ADPF. No mérito, discorda da decisão do ministro Marco Aurélio por entender que houve, sim, uma determinação para os juízes.

“O que há na medida cautelar é uma determinação para que se realize uma megaoperação dos juízes de execução para analisar detalhadamente todas essas possibilidades, não se aguardar caso a caso. Há, ao meu ver, formalmente o problema da ampliação do pedido. E há uma determinação expressa, não para que se solte todo mundo, mas para que se faça uma espécie de mutirão de todos os indivíduos. E fora do âmbito da ADPF”, argumentou.

Moraes foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Dias Toffoli, todos entendendo pela falta de legitimidade do requerente.

Para Barroso, ainda que desconsiderasse a questão formal, não referendaria a decisão do relator. “A verdade é que para bem e para mal, a contaminação no Brasil ainda está no topo da cadeia alimentar.

Estamos falando ainda de gente que se socorre na rede privada, estamos falando de gente que se socorre na rede D’Or, que vai pro Einstein. A liberação em massa de pessoas não testadas, ainda mais se já tiver ocorrido no sistema penitenciário, oferecerá um imenso risco sanitário”, disse.

O ministro lembrou que o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça já publicaram portaria conjunta com medidas a respeito da população carcerária durante a pandemia do novo coronavírus (Covid-19). “Numa situação de pandemia, a cadeia de comando deve ser bem definida”, falou.

O ministro Gilmar Mendes foi o único a acompanhar o relator. Em sua visão, os pedidos da ADPF já são amplos, e o pedido do IDDD se encaixa no escopo da ação. “Havia pedidos de redução do número de presos, más condições sanitárias, e por isso elencava-se uma série de pedidos, tanto no mérito quanto na cautelar, de modo que me parece que há este enquadramento”, disse. “O que eu depreendi da decisão do minsitro Marco Aurélio é que ela se enquadra no pedido que foi feito na própria ADPF, que era um pedido de declaração do estado de coisas inconstitucional. E todas essas questões foram discutidas, as más condições sanitárias nos presídios e tudo o mais”. 

Assim, por sete votos a dois, não foi referendada a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio. 

Os ministros Ricardo Lewandowski e Celso de Mello estavam ausentes – o decano está de licença até o dia 30 de março, enquanto Lewandowski está trabalhando de forma remota devido ao coronavírus.
Na decisão de Marco Aurélio, o ministro, ante a pandemia do novo coronavírus, sugere que juízos de execução analisem a possibilidade de conceder:

a) liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a sessenta anos, nos termos do artigo 1º da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003;

b) regime domiciliar aos soropositivos para HIV, diabéticos, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras ou outras suscetíveis de agravamento a partir do contágio pelo COVID-19;

c) regime domiciliar às gestantes e lactantes, na forma da Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016 – Estatuto da Primeira Infância;

d) regime domiciliar a presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça;

e) substituição da prisão provisória por medida alternativa em razão de delitos praticados sem violência ou grave ameaça;

f) medidas alternativas a presos em flagrante ante o cometimento de crimes sem violência ou grave ameaça;

g) progressão de pena a quem, atendido o critério temporal, aguarda exame criminológico; e

h) progressão antecipada de pena a submetidos ao regime semiaberto”


terça-feira, 17 de março de 2020

O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal



A definição pela retroatividade configura importante marco, mas a questão requer outros passos

24/02/2020

Crédito: Conselho Nacional do Ministério Público.

O acordo de não persecução penal, após duplo regramento pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Resoluções nº 181/2017 e nº 183/2018) e das críticas recebidas por um setor da doutrina[1], ganhou previsão legal com a promulgação da Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro.

Tratando-se de mecanismo de diversificação da pena criminal, visa não somente auxiliar no desafogo do abarrotado sistema de justiça criminal, senão, especialmente, impedir a estigmatização e a dessocialização que decorrem de processos com sentença condenatória.

Sua respectiva legalização, não restam dúvidas, acarretará várias discussões[2], uma delas atinente ao direito transitório, ou seja, à possibilidade ou não de sua aplicação retroativa a infrações ocorridas anteriormente à existência da Lei n. 13.964/2019.
O início desta análise requer, necessariamente, uma definição sobre a natureza jurídica da norma que regula o acordo. Afinal, estar-se-ia diante de norma penal, processual penal ou híbrida?

Embora formalmente esteja inserido no Código de Processo Penal, art. 28-A, também se reveste de conteúdo de direito material no que diz respeito às suas consequências, apresentando-se como verdadeira norma de garantia e, com efeito, retroativa.

Em outros termos, é norma que interfere diretamente na pretensão punitiva do Estado, e não uma simples norma reguladora de procedimento. Se tomarmos a lembrança histórica da promulgação da Lei dos Juizados Especiais (que também criou outras medidas de diversificação penal), a carga retroativa é coincidente (STF, Pleno, INQ 1055QO/AM)[3].

A definição pela retroatividade configura importante marco, mas a questão requer outros passos. O seguinte diz respeito a saber até que momento as disposições do art. 28-A do CPP podem produzir efeitos nos processos iniciados em momento pretérito a sua existência?

Para o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, desde que não recebida a denúncia[4]. Para a Corte Constitucional, em precedente remoto relacionado a instituto diversificador da Lei n. 9.099/1995, um pouco mais além, de sorte que a incidência do benefício estaria condicionada à inexistência de condenação penal, ainda que recorrível (1ª Turma, HC 74.463-0, rel. Min. Celso de Mello, DJ 07/03/1997).

Essas alternativas condicionam o efeito retroativo do instituto à inocorrência, respectivamente, de um despacho de natureza interlocutória simples ou de uma sentença condenatória.

Bem vistas as coisas, cada qual cria uma barreira insuperável não prevista pelo constituinte no inciso XL do art. 5º (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) e tampouco pelo legislador infraconstitucional, afinal, nem mesmo o trânsito em julgado da sentença condenatória impede a aplicação retroativa de lei posterior favorável (art. 2º, parágrafo único, do Código Penal).

O argumento de que a condenação compromete a finalidade precípua para a qual o instituto do acordo de não persecução penal foi concebido, vale dizer, o de afastar a imposição da pena criminal, não pode representar um impedimento à retroatividade, visto que a mesma restrição não consta dos textos constitucional e legal.

Nestes termos, em atenção ao art. 28-A do CPP, a defesa deverá requerer – em preliminar da apelação – a conversão do julgamento em diligência. Por sua vez, para os processos com decisão definitiva, os contornos da solução são mais específicos, mas, como bem pontua Paulo Busato, “a garantia da coisa julgada não serve para amparar pretensão punitiva do Estado”[5].

No último contexto se faz necessário separar os condenados ainda em fase de execução penal daqueles que já cumpriram a reprimenda. Aos primeiros, entende-se possível a aplicação por analogia da regra do caput do art. 2º do Código Penal e, como tal, em análise hipotética, satisfeitos os requisitos legais, a execução ficaria suspensa e a respectiva pena seria substituída pelas condições ajustadas no acordo que, efetivamente cumpridas, ensejariam a extinção da punibilidade do agente, deixando de acarretar maus antecedentes e de gerar reincidência (ou seja, também cessariam os efeitos penais secundários da condenação).

Na eventualidade de o agente descumprir injustificadamente as condições ajustadas, retornaria ao cumprimento do restante da pena que estava suspensa.

Para aqueles que cumpriram totalmente a respectiva pena, a princípio, parece não ter sentido a incidência do acordo, no entanto, tal conclusão seria incorreta, pois é notório que a condenação gera outros efeitos além da primária imposição da pena criminal.

Dentre os efeitos secundários se destaca a reincidência e, a partir dela, inúmeras outras restrições de benefícios, como a definição de um regime de cumprimento de pena menos rigoroso ou a incidência de penas alternativas.

Assim, entende-se que a defesa deve peticionar ao juízo da execução penal requerendo que o órgão de acusação se pronuncie se, à época do fato, o agente preenchia os requisitos previstos em lei (art. 28-A, caput e § 2° do CPP) que viabilizariam, neste contexto, a proposição de hipotético acordo.

Em caso positivo, a retroatividade incidirá justamente para extinguir os efeitos acessórios da condenação (v.g. reincidência). Ao agente, por evidente, não será legítimo impor quaisquer condições, visto que já executou a totalidade da pena, de modo que tal exigência representaria violação gritante ao princípio ne bis in idem.

Há quem possa argumentar que não seria razoável, e muito menos exequível, que a totalidade das condenações pretéritas tivesse de ser reformada diante da nova legislação que passou a prever a atenuação das consequências jurídico-penais por meio do acordo de não persecução. Tal argumento, ainda que consistente, pode ser relativizado, definindo-se uma limitação temporal da retroatividade.

A propósito, para obstar um efeito regressivo infinito, o último passo é definir até que momento estaria o Ministério Público obrigado a analisar o eventual preenchimento pelo agente dos requisitos legais do acordo no que se refere às infrações pretéritas.

Neste aspecto, entende-se que a análise se realizará unicamente nos processos em que a data do cumprimento total da pena ou de sua extinção tenha ocorrido nos cinco anos anteriores à existência da Lei n. 13.964/2019, de sorte que o quinquídio corresponderia ao prazo expurgador da reincidência.

Como nesse período persistem os efeitos secundários da condenação, é cogente a atuação ministerial por meio do acordo para arrefecer eventuais danos decorrentes de nova prática delitiva. Em síntese, eventual concretização do acordo recobriria o agente de primariedade.

[1] Por exemplo, o Defensor Público Eduardo Newton: www.justificando.com/2017/09/15/e-grave-resolucao-de-cupula-do-mp-sobre-acordo-de-nao-persecucao-penal Acesso em 10/02/2020.

[2] A propósito, veja-se: MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito penal: lições fundamentais, parte geral. 5ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 1253-1264.

[3] A relatoria foi do Ministro Celso de Mello, com publicação no Diário Oficial em 24 de maio de 1996. O mesmo se confirmou no julgamento da ADIn n. n. 1.719-9, rel. Min. Joaquim Barbosa, DOU 28/08/2007.

[4] CNPG. Comissão especial: enunciados interpretativos da Lei Anticrime, 2020, p. 6 (Enunciado 20).

[5] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013, p. 128.

LEONARDO SCHMITT DE BEM – Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano (Itália). Doutor em Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha). Professor Adjunto de Direito Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
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JOÃO PAULO MARTINELLI – Pós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Advogado criminalista. Professor do IBMEC-SP.