A aplicação retroativa do artigo 28-A do CPP, introduzido pela Lei nº 13.964/2019, tem sido objeto de intenso debate, opondo, de um lado, aqueles que defendem que o dispositivo retroage, necessariamente, por constituir norma penal mais benéfica, e aqueles que sustentam, de outro lado, que tal retroação deve ficar sujeita a um marco ou limite temporal.
O segundo entendimento pode ser identificado, para fins analíticos, como tese do "marco temporal limitador", que, para alguns, deve ser a denúncia e, para outros, a sentença, entre outras possibilidades.
Note-se que a discussão tem transcendência, pois envolve, como se percebe, introduzir ou não uma restrição ao artigo 5°, XL, da Constituição Federal, que dispõe que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Os ângulos teóricos dessa questão têm sido amplamente explorados, inclusive em artigo no qual procuramos demonstrar que a referida norma tem qualidade de regra, e não de princípio, e que em uma ótica metodológica rigorosa não se vislumbra argumento interpretativo forte suficiente para afastar o conteúdo deôntico de tal previsão constitucional [1].
O presente texto se ocupa, entretanto, de um argumento prático, recorrente nessa discussão, segundo o qual a retroação do artigo 28-A do CPP geraria tumultos processuais e colapso no sistema. Veja-se trecho de voto do ministro Luís Roberto Barroso em decisão adotada pela 1a Turma do STF em 11 de novembro de 2020 (HC 191.464, grifos das autoras):
"21. A despeito da argumentação já desenvolvida, que situa a incidência do ANPP na fase pré-processual, tal como foi concebido no art. 28-A do CPP, e acomoda entendimento já aplicado pelo STF para hipótese semelhante, cabe trazer, em obter dictum, argumento de ordem consequencialista. Uma primazia incauta da retroatividade penal benéfica, que não se justifica por se tratar de lei penal híbrida, ensejaria um colapso no sistema criminal: admitir-se a instauração da discussão sobre a oferta do ANPP inclusive para sentenças transitadas em julgado faria com que praticamente todos os processos – em curso, julgados, em fase recursal, em cumprimento de pena –, fossem encaminhados ao titular da ação penal para que avaliasse a situação do réu/sentenciado. Esse contexto não se justifica se considerado o propósito do ANPP, de impedir o início da ação penal, e da máxima de que não devem ser restauradas etapas da persecução penal já efetivadas em conformidade com as leis processuais vigentes".
Embora o foco deste artigo não seja o fundamento central da decisão comentada, cumpre observar que nela se introduz uma terceira norma de direito intertemporal, destinada às leis híbridas, combinando, de um modo não totalmente evidenciado, as duas normas de direito intertemporal existentes (aplicáveis, como se sabe, às leis materiais e processuais), e fazendo prevalecer, em verdade, a lógica do tempus regit actum. A primazia, em outras palavras, é dada ao direito intertemporal das normas processuais, e não ao das normas materiais. Confira-se (grifos das autoras):
"9. Em se tratando de leis penais híbridas, possível haver conformação entre os postulados, de forma que, de um lado, a aplicação da lei não necessariamente retroagirá em seu grau máximo (inclusive após o trânsito em julgado); e, de outro lado, não necessariamente será o caso de considerar válidos todos os atos já realizados sob a vigência da lei anterior. Se a conformação não for realizada expressamente pelo legislador, cabe ao intérprete fazê-lo.
10. A hipótese cuida da possibilidade de se instaurar a discussão sobre o ANPP no curso do processo. Argumenta-se, com base na retroatividade penal benéfica, que o acordo deve ser viabilizado mesmo depois de recebida a denúncia, proferida sentença, em fase recursal e até mesmo depois do trânsito em julgado.
11. Entretanto, penso que o procedimento em torno do ANPP o situa em uma fase específica da persecução penal e, diante da sua natureza também processual, deve ser prestigiada a marcha progressiva do processo.
(…)
13. Dessa forma, o ANPP não se conforma com a instauração da ação penal, devendo ser estabelecido o ato de recebimento da denúncia como marco limitador da sua viabilidade. Com efeito, a finalidade do acordo é evitar que se inicie processo, razão pela qual, por consequência lógica, não se justifica discutir a composição depois de recebida a denúncia".
Os integrantes da Câmara Criminal do MPF têm entendido, em sentido diverso, que não cabe restrição interpretativa ao artigo 5°, XL, da Constituição Federal por expressar um comando claro, não condicionado pelo legislador constituinte e evidentemente derivado de pilares fundamentais do sistema, entre eles, em destaque, o princípio da isonomia. Assim, tal órgão de coordenação e revisão vem se dedicando à tarefa de definir, entre outros aspectos, as situações em que, mesmo admitindo a incidência retroativa do artigo 28-A do CPP, não se verificam os requisitos para a realização do acordo, notadamente a necessidade e a suficiência à reprovação e à prevenção do crime. Em seu Enunciado 98, tratando sobre a retroatividade do ANPP, afirma a Câmara Criminal que é "cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, (…) podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP (…)" [2].
Seguindo essa linha, outro aspecto considerado pela Câmara Criminal, contrariamente ao argumento do "colapso do sistema", é a utilidade que a aplicação retroativa do artigo 28-A do CPP pode ter nos processos em curso, oferecendo alternativa ao custoso conflito judicial e, o que é mais importante, uma resposta estatal eficaz. Não se desconsideram as dificuldades que essa retroação pode envolver, mas entende-se que o espaço deixado aos aplicadores do Direito, no caso, é o de gerir, da melhor forma possível, a situação posta.
É importante relatar que, em 1a instância, os membros do MPF já celebraram cerca de 2,7 mil ANPPs mediante retroação do artigo 28-A do CPP [3], ou seja, após a denúncia, e isso significa número análogo ou superior de recursos que deixarão de ser interpostos, questão não menos importante, pois tais recursos, como facilmente se imagina, contribuiriam para abarrotar escaninhos e impedir tratamento célere de outros tantos casos, especialmente aqueles envolvendo crimes de maior gravidade.
Em 2a instância, destaca-se o entendimento construído, com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e a Procuradoria Regional da República da 1ª Região (PRR-1). Ante a percepção de que o artigo 28-A do CPP traz norma penal mais benéfica, representantes dos três órgãos se reuniram para encontrar um caminho viável e adequado, isto é, um modo de possibilitar a retroação com benefícios e sem maiores prejuízos. Foi então estabelecido, enquanto projeto piloto, que o gabinete da desembargadora Mônica Sifuentes triaria processos com a finalidade de identificar casos apropriados à análise sobre cabimento do ANPP pelo MPF, prosseguiria com a intimação da defesa para que informasse sobre eventual interesse no acordo e, havendo manifestação de interesse, remeteria o processo à consideração do procurador regional natural. A PRR-1, por sua vez, implantou uma central de acordos [4] para viabilizar, sem transtornos, a celebração das avenças, o que se faz inteiramente extra autos, vale dizer, sem idas e vindas no processo.
Tal entendimento, com divisão de trabalho entre o Poder Judiciário e o Ministério Público, foi considerado conveniente do ponto de vista administrativo, como forma de operacionalizar a realização dos acordos, com ganhos para ambos os órgãos e a sociedade. Nesse projeto piloto, foram realizados ANPPs com pleno êxito e celeridade, já enviados à homologação pelo TRF-1.
Cumpre ainda lembrar que, em 22 de setembro, anteriormente à decisão acima comentada (HC 191.464, Rel. min Luís Roberto Barroso), o ministro Gilmar Mendes havia decidido afetar o tema ao Plenário da corte por verificar "potencial ocorrência de tal debate em número expressivo de processos e a potencial divergência jurisprudencial" (HC 181.193). Na última sexta-feira (13/11), o ministro Gilmar Mendes deu a conhecer uma minuta de voto, no qual, recopilando a doutrina aplicável, reafirma que "em casos de leis processuais de conteúdo material, aplica-se a regra intertemporal de direito penal material". Na parte dispositiva, propõe a seguinte tese:
"É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, devendo o órgão acusatório se manifestar motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP".
Como quer que evolua tal julgamento, não se deixa de observar que a tese formulada pelo ministro Gilmar Mendes devolve a palavra ao Ministério Público, detentor da disponibilidade introduzida pelo artigo 28-A do CPP, que, nessa perspectiva, assume a atribuição de examinar a necessidade e a suficiência do ANPP no curso do processo, por retroação, sendo que o não oferecimento do acordo poderá eventualmente ser a medida adequada ao caso. Observe-se, por exemplo, como decidiu a Câmara Criminal do MPF no Processo nº 5009699-91.2018.4.04.7002:
"Na presente hipótese, conforme ressaltou o Procurador oficiante, as sanções já fixadas pelo acórdão condenatório proferido por unanimidade pela 7ª Turma do TRF-4 (pena de 2 anos de reclusão em regime inicial aberto, substituída a privativa de liberdade por prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de 2 salários mínimos) se mostram mais adequadas e proporcionais ao trato da questão, sendo que o referido acórdão prescreveu as penas suficientes e necessárias à reprovação e prevenção do crime, no caso concreto, em que o réu importou e atuou no transporte de grande quantidade de tabacos de origem estrangeira, introduzidos irregularmente em território nacional, que seriam distribuídos para vários clientes".
Entende-se, em conclusão, que o argumento do "colapso do sistema", além de não ter força normativa para justificar inovação (restritiva de direitos fundamentais) na Constituição, merece ser afastado considerando notadamente os dados concretos sobre a aplicação retroativa do artigo 28-A do CPP no MPF, entre outros dados disponíveis. O ANPP, veiculado em norma processual de conteúdo penal mais benéfico, retroage alcançando fatos anteriores à sua introdução, sem limites ou condições não previstas pelo artigo 5°, XL, da Constituição Federal. Por outro lado, não sendo o oferecimento do ANPP um direito subjetivo do agente, mas um poder-dever do MP, fica tal ato a depender, no curso do processo, de uma análise quanto aos requisitos legais, em particular a necessidade e a suficiência à reprovação e à prevenção do crime.