segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

 

Por falta de dolo, caminhoneiro que carregou drogas sem saber é absolvido

Por 

Quando o magistrado constata que um fato não foi devidamente comprovado, deve ele suscitar a dúvida em favor do acusado. Além disso, a presunção de inocência é uma regra e precisa ser sempre seguida com rigor por quem julga. 
Homem foi preso com drogas, mas não ficou comprovado se ele sabia sobre a carga
Reprodução

O entendimento é da juíza Isadora Botti Bernaldo Montezano, da 1ª Vara de Osvaldo Cruz (SP). A magistrada absolveu um caminhoneiro acusado de tráfico de drogas. O homem foi pego transportando 514 tijolos de maconha. Entretanto, uma série de depoimentos e evidências colocaram dúvida sobre se ele sabia ou não da existência da droga. 

O réu afirma ter sido contratado para transferir uma carga de batatas, algo que foi corroborado por nota fiscal. O caminhão é registrado em nome de terceiro — uma pessoa jurídica, ao que indica a investigação —  e a droga estava em um fundo falso, encontrado por policiais durante averiguação. 

"O Ministério Público não demonstrou cabalmente que o réu tinha ciência de que transportava drogas. Assim, não sendo possível, no processo penal, a condenação com base apenas em indícios e suposições, impõe-se a absolvição", afirma a decisão. 

A magistrada também destacou que a prova de culpa repousa sobre a acusação. Assim, a inversão do ônus é incompatível com a presunção de inocência.

"No caso dos autos, exigir do réu a comprovação do modo em que saiu de casa, a realização de acompanhamento do carregamento do caminhão, a análise de toda a carroceria que aparentemente estava normal, entre outros, acaba impondo ao acusado a comprovação de sua inocência e revertendo a ordem jurídica", pontuou. 

"Deste modo", conclui, "a presunção de inocência deve ser vista como regra de julgamento, consubstanciada no in dubio pro reo e na atribuição do ônus da prova ao órgão acusador". 

Atuou no caso defendendo o caminhoneiro o advogado Juan Carlo de Siqueira

Processo 1500659-66.2020.8.26.0637

 

STF

Ministro determina realização de audiências de custódia para todos os casos de prisão no Estado do RJ

Por determinação do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), a Justiça do Estado do Rio de Janeiro deve realizar audiências de custódia para todas as modalidades prisionais, inclusive prisões temporárias, preventivas e definitivas, e não apenas para os casos de prisão em flagrante, no prazo de 24 horas da sua ocorrência. O ministro acolheu agravo regimental interposto pela Defensoria Pública do RJ e deferiu medida liminar na Reclamação (RCL) 29303, da qual é relator.

"Diante da plausibilidade jurídica do pedido nesta reclamação e da possibilidade de lesão irreparável a direito fundamental das pessoas levadas ao cárcere", o ministro Fachin reconsiderou decisão anterior que negava seguimento à ação e deferiu a medida liminar.

Estado de coisas inconstitucional

Na ação, a Defensoria Pública aponta que o Tribunal de Justiça do Rio, ao permitir a realização de audiências de custódia apenas para os casos de prisão em flagrante, estaria descumprindo decisão do STF tomada no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Nesse julgamento, a Corte caracterizou o sistema penitenciário nacional como "estado de coisas inconstitucional". Com isso, o STF determinou a liberação de verbas então contingenciadas para o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e a obrigação de juízes e tribunais realizarem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.

Para o relator, a medida não configura mera formalidade burocrática, mas "relevante ato processual instrumental à tutela de direitos fundamentais", necessário para a pronta aferição de circunstâncias pessoais do preso, como gravidez, doenças graves, idade avançada, imprescindibilidade aos cuidados de terceiros. Assim, por considerar inadequado o ato do TJ-RJ que limitou a realização das audiências de custódia apenas para os casos de prisão em flagrante e também considerando a recente regulamentação do tema na legislação processual penal, o ministro Edson Fachin deferiu, cautelarmente, a extensão da obrigatoriedade de audiência de custódia em relação às demais modalidades de prisão.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 

TRIBUNA DA DEFENSORIA

Reclamação nº 29.303 e audiências de custódia: todos os presos importam!

Por  e 


O processo penal humanitário segue as diretrizes constitucionais e convencionais, buscando sempre a máxima eficácia dos direitos humanos. A audiência de custódia, importante instrumento de combate às prisões ilegais, está prevista no artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e no artigo 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ambos ratificados pelo Brasil em 1992. Em que pese a incorporação destes tratados internacionais ao Direito interno, suas normas não eram aplicadas na atividade jurisdicional [1], o que se insere em uma longeva tradição de descumprimento de compromissos internacionalmente assumidos. Não por outra razão que se tem a origem do ditado popular "para inglês ver" [2]. Somente em 2015, por intermédio da Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça, esse importante direito foi implementando no sistema de Justiça brasileiro, e atualmente encontra-se regulamentado também no CPP, por força da Lei 13.964/19.

Todavia, afirmamos que alguns Estados brasileiros ainda não estão cumprindo integralmente o compromisso internacionalmente assumido pelo Estado, vez que as audiências de custódia apenas são realizadas em caso de prisão em flagrante. Essa limitação não tem razão de ser, afinal da mera leitura dos artigo 7.5 da CADH e artigo 9.3 do PIDCP conclui-se que tais normas tutelam todos os presos e não apenas aqueles detidos em flagrante.

O anseio pela efetivação das audiências de custódia a todos os presos ensejou a impetração da Reclamação Constitucional nº 29.303, cuja continuação do julgamento está prevista para esta quarta-feira (9/12). Esperamos que o STF determine a realização das custódias também para as prisões preventivas, temporárias e definitivas, afinal essa previsão encontra guarida nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, de forma que é obrigação do Estado efetivar os direitos ali consagradas.

Em que pese o fato de a Reclamação Constitucional nº 29.303 ter sido ajuizada para questionar a Resolução do TJ-RJ (artigo 2º, Resolução TJ-RJ nº 29/2015), impede pontuar que a restrição das audiências de custódia às prisões em flagrante não é um fenômeno tipicamente fluminense, podendo ser observado no cotidiano dos Poderes Judiciários de Pernambuco e do Ceará, o que somente engradece a importância do julgamento dessa ação constitucional.

A audiência de custódia consiste no direito que todo preso tem, sem demora, de ser entrevistado por um juiz, objetivando que: a) se verifique a eventual ocorrência de maus tratos e (ou) tortura; b) se analise a (i)legalidade; e c) (des)necessidade de sua prisão.

Sobre o objetivo de combater tortura e maus tratos, impende ressaltar que não pode mais vigorar um verdadeiro estado de negação com relação à violência policial, e, nesse ponto, salutar a atuação do STF ao conceder liminar (julgamento virtual concluído em 17/8/2020) nos autos da ADPF nº 635 (conhecida como "ADPF das Favelas pela Vida"), e decidir, entre outros pontos, pela proibição de operações policiais nas favelas do Estado do Rio de Janeiro, mais especificadamente em locais de escolas, creches, hospitais e postos de saúde, exceto em situações singulares, nas quais exige-se a fundamentação por escrito das circunstâncias autorizadoras da excepcionalidade e ainda comunicação no prazo de até vinte e quatro horas ao representante do Ministério Público. A ADPF nº 635 tem um objetivo em comum com a Reclamação Constitucional nº 29.303, qual seja, contribuir para o controle e diminuição da violência policial, que é uma consequência imediata da formação de um servidor público a partir do ethos do guerreiro [3]. Será que que não há possibilidade de tortura ou maus-tratos por ocasião do cumprimento de um mandando de prisão preventiva, temporária ou definitiva?

No que tange ao outro objetivo da audiência de custódia, consistente na análise da legalidade/necessidade da prisão, também lançamos alguns questionamentos: será que é legal uma prisão cujo mandado é cumprido quando o delito já se encontra prescrito? E nos casos em que o réu encontrava-se em lugar incerto e não sabido, e a prisão preventiva foi decretada juntamente com a suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 366 do CPP, questiona-se: após a localização do acusado, será que a sua liberdade não poderia ser prontamente restabelecida na audiência de custódia, após o fornecimento de seu endereço completo ou seria realmente necessário aguardar encarcerado vários dias enquanto a defesa técnica faz o requerimento, o promotor de Justiça apresenta parecer e o juiz decide? Essas indagações são apenas exemplificativas, mas ilustram bem a necessidade da realização de custódia para todos os presos.

Sem a implementação da audiência de custódia para todas as modalidades de prisão, os presos preventivos ou temporários não terão oportunidade de ficar "frente a frente" com o juiz para exercer o Direito Constitucional ao contraditório antes da ocorrência da primeira ou próxima audiência de instrução e julgamento que, na imensa maioria das vezes, ocorre meses após a prisão. Pensamos que isso configura um insofismável cerceamento de defesa.

Nessas situações, como pondera Caio Paiva:

"A finalidade da realização do ato será predominantemente prospectiva, voltada para o futuro, para verificar ou reavaliar a necessidade da prisão, notadamente os fundamentos que ensejaram a sua decretação" [4].

Em uma perspectiva de um Direito Processual Penal humanitário, a audiência de custódia goza de indiscutível importância, pois, além de servir como instrumento hábil para diminuir a quantidade de maus-tratos/ torturas sofridas pelos presos, evita prisões ilegais, o que não pode ser desconsiderado diante da reconhecida falência do sistema prisional materializada com o estado de coisas inconstitucional. Ademais, a audiência de custódia pode ser compreendida como um mecanismo para frear o processo de banalização das prisões preventivas e reduzir consideravelmente a (enorme) quantidade de presos provisórios no Brasil, o que implica ainda uma redução considerável nos gastos do Estado para manutenção do sistema penitenciário.

Ressaltamos ainda que a audiência de custódia não extermina a possibilidade de manutenção da prisão preventiva, temporária ou definitiva, mas apenas serve como filtro moderador para evitar prisões desnecessárias ou ilegais. Ou será que essa pecha é exclusiva das prisões em flagrantes?!

Outrossim, o STF decidiu pela constitucionalidade das audiências de custódia durante o julgamento da Ação Declaratória de Preceito Fundamental nº 347 e também da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.240, e, nesses julgados, em momento algum se restringiu a audiência de custódia à prisão em flagrante. 

Nesse momento, ratificamos o que já foi dito outrora por um dos autores deste texto:

"Diante desse mosaico normativo, é perfeitamente possível assinalar que a audiência de custódia, que possui a natureza de direito subjetivo da pessoa privada de liberdade, não pode ser limitada em razão do título prisional" [5].

Ora, não se pode pestanejar na assertiva, é preciso bradar com todos os pulmões: todos os presos importam!

A questão fere ainda o prisma constitucional da isonomia porque temos, injustificadamente, tratamento díspar entre, de um lado, os presos em situação de suposta flagrância e, de outra banda, os presos preventivos, temporários e definitivos. Colacionamos as palavras de Lenio Streck:

"Segundo o princípio da consideração igualitária, a comunidade política deve considerar de maneira equivalente a vida e os direitos de todos que estão sob a sua esfera de ação. A democracia, então, é um sistema sujeito a condições, por intermédio das quais se preserva a igualdade de status dos cidadãos" [6].

Por fim, entendemos que a restrição das audiências de custódia à prisão em flagrante viola a regra pro homine, que deve ser a baliza interpretativa das normas convencionais que versam sobre direitos humanos.

Quando o assunto é audiência de custódia, podemos dizer que tudo foi alcançado com muita luta. Primeiramente, as custódias foram efetivamente implementadas em nosso ordenamento jurídico interno em 2015, ou seja, após quase 23 anos das obrigações assumidas pelo Brasil ao se tornar signatário do CADH e do PIDCP. Nossa peleja agora, nos ditames da Reclamação Constitucional nº 29.303, é a extensão das audiências de custódia para os casos de prisão preventiva, temporária e definitiva. Destarte, acreditamos que o STF, pelas razões acima elencadas, julgará procedente essa ação constitucional, de forma a alinhar o processo penal brasileiro em uma perspectiva constitucional e convencional e também como forma de reafirmar o compromisso do Brasil com a efetivação dos direitos humanos. Não se pode esperar algo diferente de quem possui imprescindível papel na construção da democracia brasileira, tal como apontado por Lêda Boechat Rodrigues:

"(...) A democracia brasileira teria funcionado de modo ainda mais defeituoso sem o símbolo do Supremo Tribunal Federal e de sua capacidade de encarnar, em determinados momentos, o que existe de melhor na consciência nacional" [7].

Mais um desafio foi colocado diante para a Suprema Corte, os direitos fundamentais não esperam outra solução que não o fim da indevida restrição das audiências de custódia. Resta esperar agora como a história será escrita.

 


[1] O Brasil foi denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela ausência da implementação da audiência de custódia, tendo sido inclusive condenado, em março de 2004, por não ter assegurado o direito previsto convencionalmente ao preso Jailton Neri da Fonseca. Para a leitura completa da sentença, vide http://www.cidh.org/annualrep/2004sp/Brasil.11634.htm.

[2] "A Lei de 7 de novembro de 1831 foi a primeira lei nacional a proibir o tráfico de escravos. Conhecida vulgarmente como 'lei para inglês ver', por estar associada à pressão inglesa e também ao extenso contrabando das décadas seguintes, ela tem sido largamente pesquisada desde o início dos anos 2000. A legislação não só teve a intenção de enganar os ingleses, como foi pivô de vários embates políticos e jurídicos, e esteve no centro do debate sobre a legalidade da escravidão brasileira no século XIX". (MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti & GRINBERG, Keila. Lei de 1831. In: SCHWARCZ, Lilia M. & GOMES, Flávio (organizadores). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 285..

[3] "O discurso do guerreiro sobe, sorrateiramente, os fóruns judiciais. O ethos guerreiro, conceito desenvolvido por Norbert Elias ao analisar a sociedade alemã pré-nazismo, mas também perfeitamente adequado a outras sociedades ocidentais belicistas da época, como já eram (e são) os Estados Unidos, terminou sendo importado por aqui da matriz estadunidense durante a ditadura civil-militar, sendo introjetado enquanto habitus dos membros de nossas forças policiais". (SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano. A guerra ao crime e os crimes da guerra. Uma crítica descolonial às políticas beligerantes no sistema de Justiça criminal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 111).

[4] PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.85.

[5] NEWTON, Eduardo Januário. A Reclamação Constitucional nº29.303 merece ser decidida. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-09/eduardo-newton-reclamacao-constitucional-29303-merece-decidida.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Audiência de custódia para todos os presos é um direito constitucional. Disponível em:nhttps://www.conjur.com.br/2019-mar-11/streck-audiencia-custodia-todos-presos-direito-constitucional.

[7] RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I: 1891-1898 (defesa das liberdades civis). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 6.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

 

DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL

STJ vai pacificar divergência sobre retroação da lei "anticrime" em estelionato

Por 

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que é composta pelos ministros das duas turmas que julgam Direito Penal, terá a oportunidade de pacificar a questão sobre até que ponto o chamado pacote "anticrime" — que, entre outras coisas, promoveu mudanças no crime de estelionato — pode retroagir.

Ministro Nefi Cordeiro propôs afetação do HC à 3ª Seção para dirimir divergência
Rafael Luz/STJ

Em julgamento nesta segunda-feira (7/12), a 6ª Turma decidiu afetar um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo para que a 3ª Seção pacifique a matéria. Conforme publicou a ConJur, a mudança legislativa abriu divergência entre o colegiado e a 5ª Turma.

A Lei 13.964/2020 entrou em vigor em 24 de janeiro e transformou a ação referente ao crime do artigo 171 do Código Penal de pública incondicionada para pública condicionada à representação — com algumas exceções descritas nos incisos do parágrafo 5º (conduta praticada contra administração pública, direta ou indireta; contra criança ou adolescente; e contra maior de 70 anos ou incapaz).

Para a 5ª Turma, a exigência de representação da vítima só retroage até o momento da denúncia, independentemente do momento da prática da infração penal. A exigência da representação seria condição de procedibilidade da representação e não de prosseguibilidade da ação penal.

Esse entendimento é o mesmo apontado na única decisão colegiada tomada pelo Supremo Tribunal Federal até agora. Em outubro, a 1ª Turma do STF entendeu que é inaplicável a inovação legislativa em todas as ações penais já iniciadas antes da entrada em vigor do pacote “anticrime”.

No STF, com voto do minsitro Alexandre de Moraes, 1ª Turma adotou posição parecida com a da 5ª Turma do STJ
Nelson Jr./SCO/STF

Para a 6ª Turma, a norma retroage até o trânsito em julgado da ação por estelionato, mas não leva à imediata extinção da punibilidade. O colegiado entendeu que, na hipótese, a vítima deveria ser intimada para manifestar o interesse na continuação da persecução penal, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência.

No caso afetado à 3ª Seção, a Defensoria Pública defende uma terceira linha, mais benéfica ao réu do que a posição da 6ª Turma. A mudança legislativa ocorreu após o julgamento da apelação que manteve a condenação por estelionato. O processo não teve representação da vítima.

Para a Defensoria Pública, não há condição de procedibilidade da ação penal, devendo ser reconhecida a decadência, nos termos do artigo 107, inciso IV, do Código Penal.

HC 610.201

 

Sanção disciplinar a preso não depende de trânsito em julgado, diz STF

Consultor Jurídico - Por 

Quando alguém já preso é acusado de crime doloso, não há motivos para condicionar a aplicação de falta grave ao trânsito em julgado da condenação oriunda do juízo criminal. Basta a sentença condenatória, desde que observados o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

Voto do ministro Fachin foi seguido à unanimidade pelo Plenário virtual do STF
Carlos Humberto/SCO/STF

Essa foi a conclusão do Plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, ao analisar o caso de um homem no Rio Grande do Sul que, no curso da execução da pena, foi preso em flagrante por tentativa de roubo. As instâncias ordinárias condicionaram a apuração da falta grave em processo administrativo disciplinar ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

A Lei de Execução Penal define a prática de crime doloso como falta grave em seu artigo 52. Sua ocorrência sujeita o apenado ao regime disciplinar diferenciado, com normas mais estritas tais como recolhimento em cela individual e também restrição para banho de sol e visitação.

A prática do fato definido como crime doloso ou falta grave também leva à regressão do regime de cumprimento de pena, ao semiaberto ou fechado, de acordo com o artigo 118 da mesma lei.

Ao analisar o caso, o ministro Luiz Edson Fachin apontou que essas normas regem esfera distinta e independente do processo de conhecimento, de modo que não há incompatibilidade entre estes e a norma do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Condicionar falta grave ao trânsito em julgado faria norma da execução letra morta, disse o ministro Alexandre de Moraes
Carlos Moura/SCO/STF

Assim, ainda que o próprio Supremo tenha afastado a execução da pena antes do trânsito em julgado, não há razão para levar essa lógica ao reconhecimento de falta grave consistente na prática de crime doloso.

"A independência entre as esferas apuratórias e sancionatórias não é absoluta: há pontos de contato entre elas. Por outro lado, a prolação de sentença criminal pressupõe o término de uma fase instrutória em que foram franqueadas ao sentenciado/acusado todas as garantias decorrentes do contraditório e da ampla defesa, ou seja, a observância de todas as exigências aplicáveis à apuração de falta grave", apontou o relator.

Para o ministro Alexandre de Moraes, isso é possível porque a reprimenda decorrente do reconhecimento da falta grave não tem natureza de pena criminal. Além disso, obrigar o juízo da execução a aguardar o trânsito em julgado da sentença criminal levaria ao esvaziamento dos propósitos da lei.

"A própria lei faz referência à 'prática' de crime doloso e não à 'condenação' por crime doloso”, concordou o ministro Ricardo Lewandowski. A sanção, portanto, tem cunho administrativo, uma vez que são aplicadas em decorrência do exercício do controle estatal sobre pessoa já definitivamente condenada.

A tese aprovada pelo Plenário virtual foi: o reconhecimento de falta grave consistente na prática de fato definido como crime doloso no curso da execução penal dispensa o trânsito em julgado da condenação criminal no juízo do conhecimento, desde que a apuração do ilícito disciplinar ocorra com observância do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, podendo a instrução em sede executiva ser suprida por sentença criminal condenatória que verse sobre a materialidade, a autoria e as circunstâncias do crime correspondente à falta grave.

Clique aqui para ler o voto do ministro Luiz Edson Fachin
Clique aqui para ler o voto do ministro Alexandre de Moraes
Clique aqui para ler o voto do ministro Ricardo Lewandowski
RE 776.823

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

STJ pugna, liminarmente, pela suspensão do andamento da ação penal, para análise do possível ANPP.

 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

HABEAS CORPUS Nº 597632 - SP (2020/0174943-0) 

RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ 

IMPETRANTE : CARLOS GIANFARDONI ADVOGADO : CARLOS GIANFARDONI 

IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO 

PACIENTE : ANA CAROLINA MONTEIRO GALIASSI 

INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO 

DECISÃO ANA CAROLINA MONTEIRO GALIASSI alega sofrer coação ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Apelação Criminal n. 0009770-16.2018.8.26.0348). Nesta Corte, sustenta a defesa, em síntese, que a ré preenche todos os requisitos para a recepção do acordo de não persecução penal pelo órgão ministerial. Alude, ainda, à retroatividade do disposto no art. 28-A, inserido ao Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/2019 (?Pacote anticrime?), por se tratar de norma penal mais benéfica. Pugna, liminarmente, pela suspensão do andamento da ação penal, até o julgamento definitivo do habeas corpus. 

No mérito, requer se oportunize à paciente a confissão e, em seguida, se disponibilize ao membro do Ministério Público estadual a oferta do acordo de não persecução penal à acusada. Manifestou-se o Parquet Federal pela concessão da ordem (fls. 47-54). Decido. De início, saliento que este mandamus, juntamente com outros 345, foi protocolado no Superior Tribunal de Justiça durante as férias coletivas de julho e distribuído à Presidência. No entanto, assim como os demais, foi encaminhado a este relator, no dia 3/8/2020, sem a observância da providência indicada no art. 21, XIII, "c" do Regimento Interno do STJ. Expõem os autos que a paciente foi condenada pela prática do crime previsto no art. 155, § 4º, II, do Código Penal, ao cumprimento de 2 anos de reclusão, inicialmente em regime aberto, e ao pagamento de multa. Pelo Juízo da Comarca de Mauá, SP, a pena privativa de liberdade foi substituída por duas restritivas de direito, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Em sede de apelação, a 1ª Câmara de Direito Criminal da Corte paulista permutou a prestação pecuniária por 10 dias-multa, no valor mínimo. 

Em consulta ao sítio eletrônico do Tribunal a quo, verificou o gabinete que a sentença não transitou em julgado. Nada obstante, constatou-se que, no dia 6/11/2020 (DJe 17/11/2020), o Presidente da Seção Criminal não admitiu o recurso extraordinário defensivo. Dessarte, muito embora o habeas corpus esteja pronto para julgamento, noto a presença do risco ao perecimento do direito da acusada, diante da iminência de execução do julgado. Confiram-se estes excertos do parecer da Subprocuradoria da República, que opinou pela concessão da ordem à ré (fls. 52-54, grifei).

Na presente hipótese, o Tribunal a quo, em sede de apelação defensiva, indeferiu o pleito da defesa de baixa do processo à origem para análise da viabilidade do Acordo de não Persecução Penal, por entender que ele não poderia ser deferido na fase de apelação e que, ainda que fosse possível, faltar-lhe-ia requisito indispensável, relacionado à ausência de confissão formal e circunstanciada por parte da ré (e-STJ fl. 23). 

Contudo, o acórdão incorreu em flagrante ilegalidade, pois sendo norma de natureza mista, o art. 28-A do CPP admite aplicação retroativa, sendo que os requisitos para a sua aplicação, em especial a quantidade de pena aplicada ao crime de furto qualificado, mostram-se, ao menos em tese, presentes no caso concreto. Cumpre esclarecer, ainda, que a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (área Criminal) recentemente editou o enunciado número 98, o qual prevê a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução criminal a qualquer tempo, desde que ocorra antes do trânsito em julgado da ação criminal. 

Vejamos: Enunciado nº 98. É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A da Lei n° 13.964/19, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei 13964/2019, conforme precedentes. (Alterado na 184ª Sessão Virtual de Coordenação, de 09/06/2020).

 Quanto ao óbice relacionado à confissão formal e qualificada, embora não tenha sido constatada durante a instrução criminal, poderá ser sanado no caso de eventual formalização do acordo, a cargo do Ministério Público atuante. Por tais razões, opina a Procuradoria-Geral da República pelo não conhecimento do habeas corpus, concedendo-se a ordem de ofício, a fim de que os autos sejam baixados à origem para que o Membro do Ministério Público oficiante se manifeste acerca da possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A do CPP. À vista da plausibilidade dos arrazoados defensivos, dos termos do parecer ministerial e do risco efetivo ao perecimento do direito da paciente, defiro a liminar, para determinar a suspensão imediata da Ação Penal n. 0009770- 16.2018.8.26.0348, até o julgamento definitivo deste writ. Comunique-se a decisão, com urgência, ao Magistrado de primeiro grau e à autoridade apontada como coatora. Em seguida, voltem-me os autos conclusos. Brasília (DF), 02 de dezembro de 2020. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ Relator

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Senado aprova alteração na definição do crime de denunciação caluniosa

O Plenário do Senado aprovou nesta quarta-feira (2), por votação simbólica, projeto que altera a descrição, contida no Código Penal, do crime cometido por quem faz denúncias falsas contra pessoas sabidamente inocentes, a chamada denunciação caluniosa. O texto prevê punição para acusações falsas de infrações disciplinares e atos ímprobos e torna a definição do crime mais objetiva. Esse projeto de lei (PL 2.810/2020) segue para a sanção do presidente da República.

A denunciação caluniosa é um dos crimes contra a administração da Justiça. A pena prevista é de reclusão, de 2 a 8 anos, e multa. O projeto retira do Código Penal a punição por denúncias que levem à “investigação administrativa”, expressão considerada genérica e subjetiva. O crime será configurado, de acordo com a proposta, quando denúncias falsas levem efetivamente à instauração de processos, ações ou investigações policiais contra quem foi injustamente denunciado.

“Não é mais todo e qualquer expediente administrativo, como uma notícia de fato ou sindicância, que pode ser enquadrado como ‘investigação’ para fins de caracterização da denunciação caluniosa. Agora será necessário que o procedimento, o processo, a ação instaurada em decorrência da denúncia falsa tenha caráter sancionador e acusatório, e não meramente investigativo”, esclareceu em seu parecer o relator da matéria, Angelo Coronel (PSD-BA).

O senador recomendou a aprovação do texto como veio da Câmara. Os deputados federais compatibilizaram o Código Penal com a Lei de Abuso de Autoridade para que denúncias falsas de infrações éticas e disciplinares também possam ser consideradas crime de denunciação caluniosa se resultarem em processos.

Para o relator, o projeto aperfeiçoa o sistema penal contra a crescente onda de denúncias falsas e perseguições por parte da administração pública. Ele avalia que a nova lei é necessária para “restaurar um padrão ético fundado na boa-fé”.

— O crime de denunciação caluniosa reflete o mais alto grau de um fenômeno cada vez mais presente em nossa sociedade: a mentira como instrumento de pressão, de política corrompida e até mesmo de práticas negociais descabidas. Se temos sofrido com as chamadas fake news contaminando o ambiente público, é ainda mais perigosa a conduta de quem sabe da inocência alheia e promove procedimento acusatório baseado em falsidades — ressaltou Angelo Coronel.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

 

TJRS confirma condenação de acusado de injúria racial

Um homem acusado de cometer injúria racial teve a sua apelação negada pelo Tribunal de Justiça, que confirmou integralmente a condenação de 1º grau. Os magistrados da 1ª Câmara Criminal consideraram que o réu, que buscava a redução da pena, não conseguiu apresentar provas suficientes para ter provido o recurso. Ele é acusado de atingir a honra subjetiva de um homem, chamando-o de “negro macaco”, e de dizer que “negro não podia morar na cidade de Harmonia (de etnia alemã), deveria morar na Coréia” (bairro situado em São Sebastião do Caí).

O fato ocorreu em razão de a vítima ter prestado serviços de poda e limpeza de terrenos e, por tal razão, estaria com o material de trabalho pertencente ao acusado, fato que motivou o desentendimento que culminou nas agressões verbais. A vítima relatou ter tentado efetuar a devolução do referido objeto por diversas vezes, mas o acusado nunca estava em casa. Afirmou que, na data do ocorrido, ao encontrar o réu, em via pública, este passou a chamá-lo de “ladrão”, “negro macaco”, aduzindo, ainda, que, “negro não podia morar na cidade de Harmonia, deveria morar na Coréia”.

Em 1º grau, o réu foi condenado como incurso nas sanções do art. 140 (injúria racial), § 3º, do Código Penal, à pena de 1 ano de reclusão, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 30 dias-multa, à razão de 1/30 do salário mínimo vigente ao tempo do fato. Foi concedida ao réu a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, consistente em prestação pecuniária no valor de dois salários mínimos. Inconformado, recorreu ao TJ.

Apelo

O relator da apelação no Tribunal de Justiça, Desembargador Manuel José Martinez Lucas, considerou que, em que pese a negativa do acusado, os elementos probatórios coligidos no caderno processual são suficientes para a manutenção do juízo condenatório, na medida em que apontam, sem qualquer dúvida, o réu como autor da prática criminosa. “Sobre o crime em comento, elucido que tal prática delitiva só é punível quando presente o dolo, tratando-se de crime formal, sendo o bem jurídico tutelado a honra do indivíduo e, nesse sentido, sua dignidade”, afirmou o relator.

“Dessa forma, tendo em vista que o réu ofendeu a honra subjetiva da vítima, utilizando elementos relacionados à sua raça (“negro macaco”, “negro não podia morar na cidade de Harmonia, deveria morar na Coréia”), entre outras ofensas, impossível extrair conclusão diversa, senão a de que foram palavras de cunho pejorativo e com alto teor de preconceito racial, motivo pelo qual, por óbvio, a conduta exigida é extremamente diversa da adotada pelo acusado”, considerou o Desembargador Manuel. A decisão foi unânime, sendo o voto do relator acompanhado pelos Desembargadores Jayme Weingartner Neto e Sylvio Baptista Neto.

Proc. 70082672676

Janine Moreira de Souza

 

Tribunal mantém condenação por injúria racial

A 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça São Paulo manteve sentença da 12ª Vara Criminal da Capital, que condenou um homem por injúria racial proferida contra uma motorista de transporte escolar. A pena fixada em um ano de reclusão, em regime inicial aberto, foi substituída por uma restritiva de direitos, consistente na prestação de serviços à comunidade, na forma a ser estabelecida pelo Juízo das Execuções.

Consta dos autos que, quando a vítima foi buscar os estudantes para a aula, precisou esperar por uma aluna que estava atrasada. Como não podia mais aguardar, a motorista seguiu viagem. Em seguida, recebeu o telefonema do réu, que é tio da menina. Irritado porque a motorista não havia aguardado por mais tempo, passou a ofendê-la e disse que "não deviam deixar macaco dirigir a perua escolar", além de outras frases. Dias depois, durante reunião escolar, o tio teria confirmado as ofensas para uma professora.

O relator do recurso, desembargador Roberto Porto, afirmou em seu voto que o crime de injúria racial restou configurado. "A intenção do réu foi exatamente ofender, depreciar e humilhar a vítima, invocando aspectos relativos à sua raça", escreveu. "Vale lembrar que, para a caracterização do delito de injúria racial, basta que o autor atue com o objetivo de ofender a dignidade e o decoro de alguém e que ele o faça utilizando referências à raça, à cor, à etnia, à religião, à origem, à condição de idoso ou de portador de deficiência", pontuou.

O réu buscava a alteração da prestação de serviços comunitários pelo pagamento de multa, mas a turma julgadora negou o pedido. O relator destacou que a substituição da pena privativa de liberdade pela prestação de serviços à comunidade está de acordo com o artigo 44 do Código Penal, não sendo o caso de reforma. "Sendo a condenação igual a um ano, cabe ao magistrado, nos limites da discricionariedade, eleger a sanção (multa ou pena restritiva de direitos) que melhor servirá para a prevenção e a repressão do crime praticado, não sendo o caso de alteração do que restou decidido."

Participaram do julgamento, que teve votação unânime, os desembargadores Camilo Léllis e Euvaldo Chaib.

Apelação nº 0005986-57.2015.8.26.0050

terça-feira, 17 de novembro de 2020

 

A aplicação retroativa do ANPP: uma experiência positiva no TRF-1

Por  e 

A aplicação retroativa do artigo 28-A do CPP, introduzido pela Lei nº 13.964/2019, tem sido objeto de intenso debate, opondo, de um lado, aqueles que defendem que o dispositivo retroage, necessariamente, por constituir norma penal mais benéfica, e aqueles que sustentam, de outro lado, que tal retroação deve ficar sujeita a um marco ou limite temporal.

O segundo entendimento pode ser identificado, para fins analíticos, como tese do "marco temporal limitador", que, para alguns, deve ser a denúncia e, para outros, a sentença, entre outras possibilidades.  

Note-se que a discussão tem transcendência, pois envolve, como se percebe, introduzir ou não uma restrição ao artigo 5°, XL, da Constituição Federal, que dispõe que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Os ângulos teóricos dessa questão têm sido amplamente explorados, inclusive em artigo no qual procuramos demonstrar que a referida norma tem qualidade de regra, e não de princípio, e que em uma ótica metodológica rigorosa não se vislumbra argumento interpretativo forte suficiente para afastar o conteúdo deôntico de tal previsão constitucional [1].

O presente texto se ocupa, entretanto, de um argumento prático, recorrente nessa discussão, segundo o qual a retroação do artigo 28-A do CPP geraria tumultos processuais e colapso no sistema. Veja-se trecho de voto do ministro Luís Roberto Barroso em decisão adotada pela 1a Turma do STF em 11 de novembro de 2020 (HC 191.464, grifos das autoras):

"21. A despeito da argumentação já desenvolvida, que situa a incidência do ANPP na fase pré-processual, tal como foi concebido no art. 28-A do CPP, e acomoda entendimento já aplicado pelo STF para hipótese semelhante, cabe trazer, em obter dictum, argumento de ordem consequencialista. Uma primazia incauta da retroatividade penal benéfica, que não se justifica por se tratar de lei penal híbrida, ensejaria um colapso no sistema criminal: admitir-se a instauração da discussão sobre a oferta do ANPP inclusive para sentenças transitadas em julgado faria com que praticamente todos os processos – em curso, julgados, em fase recursal, em cumprimento de pena –, fossem encaminhados ao titular da ação penal para que avaliasse a situação do réu/sentenciado. Esse contexto não se justifica se considerado o propósito do ANPP, de impedir o início da ação penal, e da máxima de que não devem ser restauradas etapas da persecução penal já efetivadas em conformidade com as leis processuais vigentes".

Embora o foco deste artigo não seja o fundamento central da decisão comentada, cumpre observar que nela se introduz uma terceira norma de direito intertemporal, destinada às leis híbridas, combinando, de um modo não totalmente evidenciado, as duas normas de direito intertemporal existentes (aplicáveis, como se sabe, às leis materiais e processuais), e fazendo prevalecer, em verdade, a lógica do tempus regit actum. A primazia, em outras palavras, é dada ao direito intertemporal das normas processuais, e não ao das normas materiais. Confira-se (grifos das autoras):

"9. Em se tratando de leis penais híbridas, possível haver conformação entre os postulados, de forma que, de um lado, a aplicação da lei não necessariamente retroagirá em seu grau máximo (inclusive após o trânsito em julgado); e, de outro lado, não necessariamente será o caso de considerar válidos todos os atos já realizados sob a vigência da lei anterior. Se a conformação não for realizada expressamente pelo legislador, cabe ao intérprete fazê-lo.
10. A hipótese cuida da possibilidade de se instaurar a discussão sobre o ANPP no curso do processo. Argumenta-se, com base na retroatividade penal benéfica, que o acordo deve ser viabilizado mesmo depois de recebida a denúncia, proferida sentença, em fase recursal e até mesmo depois do trânsito em julgado.
11. Entretanto, penso que o procedimento em torno do ANPP o situa em uma fase específica da persecução penal e, diante da sua natureza também processual, deve ser prestigiada a marcha progressiva do processo.
(…)
13. Dessa forma, o ANPP não se conforma com a instauração da ação penal, devendo ser estabelecido o ato de recebimento da denúncia como marco limitador da sua viabilidade. Com efeito, a finalidade do acordo é evitar que se inicie processo, razão pela qual, por consequência lógica, não se justifica discutir a composição depois de recebida a denúncia".

Os integrantes da Câmara Criminal do MPF têm entendido, em sentido diverso, que não cabe restrição interpretativa ao artigo 5°, XL, da Constituição Federal por expressar um comando claro, não condicionado pelo legislador constituinte e evidentemente derivado de pilares fundamentais do sistema, entre eles, em destaque, o princípio da isonomia. Assim, tal órgão de coordenação e revisão vem se dedicando à tarefa de definir, entre outros aspectos, as situações em que, mesmo admitindo a incidência retroativa do artigo 28-A do CPP, não se verificam os requisitos para a realização do acordo, notadamente a necessidade e a suficiência à reprovação e à prevenção do crime. Em seu Enunciado 98, tratando sobre a retroatividade do ANPP, afirma a Câmara Criminal que é "cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, (…) podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP (…)" [2].

Seguindo essa linha, outro aspecto considerado pela Câmara Criminal, contrariamente ao argumento do "colapso do sistema", é a utilidade que a aplicação retroativa do artigo 28-A do CPP pode ter nos processos em curso, oferecendo alternativa ao custoso conflito judicial e, o que é mais importante, uma resposta estatal eficaz. Não se desconsideram as dificuldades que essa retroação pode envolver, mas entende-se que o espaço deixado aos aplicadores do Direito, no caso, é o de gerir, da melhor forma possível, a situação posta.

É importante relatar que, em 1a instância, os membros do MPF já celebraram cerca de 2,7 mil ANPPs mediante retroação do artigo 28-A do CPP [3], ou seja, após a denúncia, e isso significa número análogo ou superior de recursos que deixarão de ser interpostos, questão não menos importante, pois tais recursos, como facilmente se imagina, contribuiriam para abarrotar escaninhos e impedir tratamento célere de outros tantos casos, especialmente aqueles envolvendo crimes de maior gravidade.

Em 2a instância, destaca-se o entendimento construído, com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e a Procuradoria Regional da República da 1ª Região (PRR-1). Ante a percepção de que o artigo 28-A do CPP traz norma penal mais benéfica, representantes dos três órgãos se reuniram para encontrar um caminho viável e adequado, isto é, um modo de possibilitar a retroação com benefícios e sem maiores prejuízos. Foi então estabelecido, enquanto projeto piloto, que o gabinete da desembargadora Mônica Sifuentes triaria processos com a finalidade de identificar casos apropriados à análise sobre cabimento do ANPP pelo MPF, prosseguiria com a intimação da defesa para que informasse sobre eventual interesse no acordo e, havendo manifestação de interesse, remeteria o processo à consideração do procurador regional natural. A PRR-1, por sua vez, implantou uma central de acordos [4] para viabilizar, sem transtornos, a celebração das avenças, o que se faz inteiramente extra autos, vale dizer, sem idas e vindas no processo.

Tal entendimento, com divisão de trabalho entre o Poder Judiciário e o Ministério Público, foi considerado conveniente do ponto de vista administrativo, como forma de operacionalizar a realização dos acordos, com ganhos para ambos os órgãos e a sociedade. Nesse projeto piloto, foram realizados ANPPs com pleno êxito e celeridade, já enviados à homologação pelo TRF-1.

Cumpre ainda lembrar que, em 22 de setembro, anteriormente à decisão acima comentada (HC 191.464, Rel. min Luís Roberto Barroso), o ministro Gilmar Mendes havia decidido afetar o tema ao Plenário da corte por verificar "potencial ocorrência de tal debate em número expressivo de processos e a potencial divergência jurisprudencial" (HC 181.193). Na última sexta-feira (13/11), o ministro Gilmar Mendes deu a conhecer uma minuta de voto, no qual, recopilando a doutrina aplicável, reafirma que "em casos de leis processuais de conteúdo material, aplica-se a regra intertemporal de direito penal material". Na parte dispositiva, propõe a seguinte tese:

"É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, devendo o órgão acusatório se manifestar motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP".

Como quer que evolua tal julgamento, não se deixa de observar que a tese formulada pelo ministro Gilmar Mendes devolve a palavra ao Ministério Público, detentor da disponibilidade introduzida pelo artigo 28-A do CPP, que, nessa perspectiva, assume a atribuição de examinar a necessidade e a suficiência do ANPP no curso do processo, por retroação, sendo que o não oferecimento do acordo poderá eventualmente ser a medida adequada ao caso. Observe-se, por exemplo, como decidiu a Câmara Criminal do MPF no Processo nº 5009699-91.2018.4.04.7002:

"Na presente hipótese, conforme ressaltou o Procurador oficiante, as sanções já fixadas pelo acórdão condenatório proferido por unanimidade pela 7ª Turma do TRF-4 (pena de 2 anos de reclusão em regime inicial aberto, substituída a privativa de liberdade por prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de 2 salários mínimos) se mostram mais adequadas e proporcionais ao trato da questão, sendo que o referido acórdão prescreveu as penas suficientes e necessárias à reprovação e prevenção do crime, no caso concreto, em que o réu importou e atuou no transporte de grande quantidade de tabacos de origem estrangeira, introduzidos irregularmente em território nacional, que seriam distribuídos para vários clientes".

Entende-se, em conclusão, que o argumento do "colapso do sistema", além de não ter força normativa para justificar inovação (restritiva de direitos fundamentais) na Constituição, merece ser afastado considerando notadamente os dados concretos sobre a aplicação retroativa do artigo 28-A do CPP no MPF, entre outros dados disponíveis. O ANPP, veiculado em norma processual de conteúdo penal mais benéfico, retroage alcançando fatos anteriores à sua introdução, sem limites ou condições não previstas pelo artigo 5°, XL, da Constituição Federal. Por outro lado, não sendo o oferecimento do ANPP um direito subjetivo do agente, mas um poder-dever do MP, fica tal ato a depender, no curso do processo, de uma análise quanto aos requisitos legais, em particular a necessidade e a suficiência à reprovação e à prevenção do crime.

[1] Márcia Noll Barboza, "Sobre a retroatividade do ANPP", disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-06/marcia-noll-retroatividade-anpp.

[2] Enunciados da 2a Câmara de Coordenação e Revisão, disponíveis em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/enunciados.

[3] Cfe. registros atualizados em 09/11/2020 no Sistema Único/MPF. No total, incluindo os ANPPs feitos na fase de investigação, são cerca de 5.800 (cinco mil e oitocentos) acordos já realizados pelo MPF. Veja-se, ainda, os relatos de membros sobre essa atividade em http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/mpf-investe-na-justica-consensual-e-ultrapassa-5-mil-acordos-de-nao-persecucao-penal.

[4] Cfe. portaria de criação de grupo de trabalho denominado Central de Acordos, disponível em: http://www.mpf.mp.br/regiao1/atos-e-publicacoes.


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

 

TRF-3 condena Abril por ter vendido MTV sem anuência da União

A transferência da concessão de serviço de radiodifusão exige, para a validade do ato, a prévia anuência do órgão competente do Poder Executivo, conforme determina a legislação pertinente — artigo 38 da Lei 4.117/1962.

Empresa vendeu canal de TV por R$ 290 milhões, sem anuência do Poder Público
Reprodução

Com esse entendimento, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, acolheu pedido do Ministério Público Federal e reconheceu a invalidade, caducidade e nulidade da concessão do serviço de radiodifusão outorgado à Abril Radiodifusão. Isso porque a empresa transferiu ilegalmente sua concessão à Spring Televisão. O negócio foi feito em dezembro de 2013, sem a participação da União.

O colegiado condenou as empresas e a União, por omissão, ao pagamento de danos morais coletivos em 10% do valor da transmissão, que foi feita por R$ 290 milhões. A União também deverá licitar novamente o serviço por intermédio do Ministério das Comunicações. 

Na decisão, o desembargador federal Marcelo Saraiva, que redigiu o voto revisor, explicou que a concessão consiste na "transferência pela qual a Administração delega a outrem a execução de um serviço público, para que o faça em seu nome, por sua conta e risco". Desse modo, o Poder Público transfere ao particular apenas a execução dos serviços, continuando a ser seu titular, devendo a concessão ser feita sempre por meio de licitação.  

O magistrado ressaltou que os particulares não podem comercializar sua posição de delegatários e que a transferência direta de outorga de concessão de radiodifusão é possível, sim, mas de acordo com a lei — que exige, para a validade do ato, a prévia anuência do órgão competente do Poder Executivo. 

Segundo os autos, a concessão à Abril foi outorgada em 1985 e renovada em 2002 pelo prazo de 15 anos. Nesse período, entre outras programações, a empresa transmitiu a MTV Brasil. No entanto, o canal encerrou suas transmissões em 31 de setembro de 2013 e, no dia seguinte, a Spring já passou a veicular sua programação. 

"A efetiva transferência do serviço foi realizada sem a anuência prévia do Ministério das Comunicações, sendo, inclusive, anterior às autorizações do Conselho Administrativo de Defesa Econômica — Cade, que ocorreram em 20/01/2014", observou o relator do voto revisor.

Além disso, segundo o magistrado, o decreto presidencial concedendo a transmissão foi publicado em 16 de outubro de 2016, sendo "inadmissível" que a Spring passasse a veicular sua programação em 01º de outubro de 2013. 

Nulidade do negócio jurídico
Para o desembargador, com o encerramento das atividades da MTV, a Abril deveria ter solicitado a cessação de sua outorga; no entanto, providenciou, "ao arrepio da legislação", a alienação à Spring, que passou imediatamente a utilizar o espectro de radiofrequência para transmissão de programação.

Ressaltou, ainda, que caberia ao Poder Concedente decretar a caducidade da concessão e, consequentemente, a extinção do contrato, por ato unilateral, por descumprimento de obrigações contratuais pelo concessionário. No entanto, a União se omitiu, e, em 2016, publicou decreto transferindo a concessão.

"E não é demasiado falar na existência de vício em relação à finalidade, consistente no fato de que o Decreto Presidencial prestou-se, na verdade, a chancelar negócio jurídico reconhecidamente nulo, no interesse exclusivo das partes envolvidas no negócio, desprotegendo o interesse público de que o serviço concedido fosse executado conforme os preceitos legais que regem o contrato de concessão, configurando-se, dessa forma, vício insanável, segundo o artigo 2°, parágrafo único, alínea e da Lei nº 4.717/65, igualmente a ensejar a nulidade do Decreto", declarou.

Enriquecimento Ilícito 
O desembargador federal Marcelo Saraiva concluiu que a operação levou ao enriquecimento ilícito, correspondente à renda de R$ 290 milhões recebida pela Abril, bem como ao dano moral coletivo pela comercialização privada de outorga de radiodifusão e da sua indevida convalidação pela União.

O valor da condenação deve ser revertido ao fundo de recomposição dos interesses supraindividuais lesados, conforme previsão do artigo 13, da Lei 7.347/85. Com informações da assessoria do TRF-3.

Clique aqui para ler a decisão
0026301-70.2015.4.03.6100

 

Ex-funcionárias do INSS são condenadas no TRF-3 por fraude contra a previdência

A 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região confirmou a condenação de duas ex-funcionárias do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) acusadas de fraude contra a Previdência Social. A decisão foi unânime e considera que houve prejuízo de R$ 749 mil aos cofres públicos.

Divulgação
Funcionárias causaram prejuízo de R$ 749 mil aos cofres públicos

O colegiado determinou o ressarcimento do dinheiro; pagamento de multa civil de dez vezes o montante da última remuneração recebida antes da demissão e, ainda, R$ 25 mil de indenização por dano moral, cada uma.   

De acordo com o processo, ficou comprovado que as funcionárias concederam benefícios previdenciários indevidos entre 2006 e 2009, com uso de diversos expedientes fraudulentos. Elas foram demitidas do serviço público em junho de 2012 e já haviam sido condenadas por atos de improbidade administrativa no primeiro grau. 

Após a decisão, recorreram ao TRF-3 pedindo a absolvição. Ao analisar o recurso, no entanto, o relator, desembargador Johonsom Di Salvo, declarou que não há dúvida sobre o dolo nas condutas das corrés.  

“Não há qualquer indício de que as concessões indevidas decorreram de erros procedimentais desculpáveis e nem de que as rés foram compelidas a praticar os ilícitos constatados. Muito pelo contrário – o vasto conjunto probatório que inclui documentação, testemunhos, depoimentos e interrogatórios, é no sentido de que as corrés agiram de forma consciente e voluntária”, afirmou.  Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-3.

Apelação: 0002400-47.2015.4.03.6141 

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

 

Proibida desde março, saída temporária de presos é restabelecida em SP

Por 

O Departamento Estadual de Execução Criminal (Deecrim) editou nesta quarta-feira (11/11) portaria conjunta que autoriza a saída temporária de presos do regime semiaberto. O documento é assinado por juízes das dez regiões administrativas judiciárias do estado de São Paulo. 

Saída será de 22 de dezembro a 5 de janeiro
123RF

A saída terá início às 6h do dia 22 de dezembro. O retorno às unidades prisionais deve ocorrer até as 18h do dia 5 de janeiro.

Conforme o artigo 123 da Lei de Execução Penal, poderão se retirar primários que tenham cumprido 1/6 da pena e reincidentes que tenham cumprido 1/4. É necessário, nos dois casos, que o preso tenha bom comportamento.

As saídas temporárias foram barradas em 16 de março deste ano, por ordem do corregedor-geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ricardo Anafe.

A medida gerou uma série de motins em prisões paulistas, em especial por ter ocorrido um dia antes da data em que os presos poderiam deixar as unidades prisionais.  A decisão levou em conta a epidemia do novo coronavírus. 

Tradicionalmente, as saídas temporárias acontecem nos meses de março, junho, setembro e dezembro. Com isso, a última vez que os detentos deixaram as unidades prisionais foi em dezembro de 2019. Anualmente, eles têm direito a 35 dias fora dos presídios. 

Clique aqui para ler a portaria
Portaria Conjunta 3/20

 

Direito a esquecimento afasta maus antecedentes referentes a condenações antigas

Por 


O fato de o Supremo Tribunal Federal ter fixado entendimento de que as penas extintas há mais de cinco anos podem ser usadas para caracterizar maus antecedentes não afasta a possibilidade de avaliação dessas condenações em razão das peculiaridades do caso concreto, especialmente o extenso lapso temporal transcorrido.

Constituição inviabiliza a valoração negativa dos antecedentes criminais sem limitação temporal, disse ministra Laurita Vaz
Rafael Luz/STJ

Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento a recurso do Ministério Público, que pleiteou o reconhecimento de maus antecedentes com base em penas que foram extintas havia mais de uma década antes do crime mais recente — com vistas a aumentar a pena do réu, condenado por tráfico de drogas.

Enquanto a acusação datava de 2017, o MP queria aproveitar duas condenações transitadas em julgado em 2001 e cuja extinção da pena ocorreu em 2007. A base para o pedido foi a tese aprovada pelo Plenário do STF segundo a qual "não se aplica ao reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência".

"Embora, em regra, o período depurador da reincidência não afaste a valoração negativa a título de maus antecedentes, incide na hipótese o direito ao esquecimento", apontou a ministra Laurita Vaz, relatora do recurso.

Segundo explicou, a Constituição Federal estabelece a vedação de penas de caráter perpétuo, o que inviabilizaria a valoração negativa dos antecedentes criminais sem qualquer limitação temporal.

"O citado entendimento do Pretório Excelso não afasta a possibilidade de avaliação dos antecedentes, em razão das peculiaridades do caso concreto, especialmente o extenso lapso temporal transcorrido, tal como ocorre na hipótese dos autos", definiu.

REsp 1.875.382

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

 


 Proteção de dados em investigações criminais pode ter lei específica

Já está na Câmara dos Deputados o anteprojeto de lei para proteção de dados em investigações criminais e na área de segurança pública. A proposta, que pretende modernizar a investigação penal brasileira para facilitar a cooperação internacional, foi elaborada a partir de relatório de um grupo de trabalho formado por 15 juristas e coordenado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Nefi Cordeiro. Para começar a tramitar, o projeto ainda precisa ser subscrito por algum parlamentar, o que deve ocorrer nos próximos dias.

A relatora do grupo de trabalho, Laura Schertel Mendes, explicou que o anteprojeto tem como objetivo dar segurança jurídica para as autoridades investigarem dados pessoais com novas tecnologias. O texto também dá maior proteção e transparência aos cidadãos. “Hoje, não estão claras quais são as bases legais para tratamento de dados sigilosos e sensíveis em uma investigação”, explicou.

Sempre que houver tratamento de maior risco, como nas tecnologias automatizadas de reconhecimento facial, o anteprojeto prevê a definição de critérios específicos. “Essas tecnologias não podem ser discriminatórias e precisam ser periodicamente auditadas e corrigidas para evitar qualquer viés”, disse a relatora acrescentando que em vários casos, no Brasil e em outros países, há erro na identificação de suspeitos por reconhecimento facial.

CNJ
A proposta prevê que o Poder Judiciário, o Ministério Público e as polícias devem adotar medidas de segurança para proteger os dados de envolvidos em processos criminais. Essas regras administrativas de segurança deverão ser elaboradas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que também seria a autoridade responsável pelo controle de dados de investigações criminais.

Para o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-AP), esse é um ponto importante uma vez que “não é o melhor caminho que o governo seja dono dos dados da sociedade. Os dados são poder e este poder não pode ser de um governo que esteja administrando o Brasil em um determinado momento”. Acrescentou, ainda, que vinculado ao governo dá problemas na troca de informações com outros países. “Não é bom que ninguém tenha um poder tão grande como o dos dados, principal instrumento de poder em uma democracia moderna”, disse.

Procedimentos para evitar a utilização de informações pessoais consideradas irrelevantes para o andamento das investigações também precisarão ser elaboradas. Caso surjam no decorrer dos processos, eles deverão ser imediatamente descartados.

Compartilhamento
Sobre o uso compartilhado de dados pessoais sigilosos entre autoridades competentes, o texto estabelece que isso só ocorra quando houver autorização judicial. A mesma regra vale para o compartilhamento no âmbito de uma mesma autoridade.

Fronteiras
Segundo o ministro Nefi Cordeiro, a definição de uma autoridade de controle de dados é especialmente importante para compartilhamento de dados para fiscalização de fronteiras e o acesso, pelas forças de segurança pública, a informações da Interpol e de polícias de outros países. “O Brasil não consegue obter dados da Europa porque ainda não temos instalada uma autoridade autônoma e independente”, lamentou.

O anteprojeto também regulamenta como investigações criminais poderão ter acesso a dados de novas tecnologias, entre elas geolocalização, uso de "cavalos de tróia" em celulares de suspeitos e reconhecimento facial.

Transparência
O anteprojeto também propõe regras para transparência e controle da sociedade sobre o uso de dados pessoais na segurança pública. “As autoridades devem periodicamente publicar relatórios sobre tratamento de informações em investigações criminais”, disse a relatora do grupo de trabalho, Laura Schertel Mendes.

Outra preocupação dos juristas é a segurança da informação. Várias regras propostas são semelhantes às previstas na Lei Geral de Proteção de Dados. A diferença são adaptações específicas para área de segurança pública. Para Laura Shcertel, as autoridades precisam garantir mecanismos para que não haja vazamento de dados e, no caso de vazamento, a autoridade deve comunicar à sociedade e ao órgão supervisor.

Karine Melo - Repórter da Agência Brasil - Brasília
Edição: Nélio de Andrade