A
Investigação Criminal Supervisionada: o STJ decide contra entendimento do STF
Segundo
decidiu semana passada o Superior Tribunal de Justiça, a instauração de
procedimentos investigatórios criminais pelo Ministério Público, relativos a
agentes público com foro por prerrogativa de função, não depende de prévia
autorização do respectivo Tribunal. O entendimento foi adotado pela Quinta
Turma, que acolheu recurso do Ministério Público do Rio Grande do Norte contra
decisão de segunda instância que havia considerado necessária a autorização
judicial para instauração de investigação. O número do Recurso Especial não foi
divulgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão do segredo de Justiça.
O recurso teve origem em procedimento de
investigação criminal instaurado pelo Ministério Público do Rio Grande do
Norte, com o objetivo de apurar supostos crimes contra a administração pública
estadual. Em virtude de possível envolvimento de agente público com "foro
privilegiado", os autos foram encaminhados pelo Ministério Público ao
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, que, com base em entendimento do
Supremo Tribunal Federal, considerou que haveria necessidade de prévia
autorização judicial para instauração do procedimento investigatório.
O relator, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca,
apontou que a legislação atual não indica a forma de processamento da
investigação, devendo ser aplicada, nesses casos, a regra geral trazida pelo
art. 5º. Do Código
de Processo Penal, que não exige prévia autorização do Poder
Judiciário. Segundo o Ministro, “não há razão jurídica para condicionar a
investigação de autoridade com foro por prerrogativa de função a prévia
autorização judicial. Note-se que a remessa dos autos ao órgão competente para
o julgamento do processo não tem relação com a necessidade de prévia
autorização para investigar, mas antes diz respeito ao controle judicial
exercido nos termos do art. 10, parágrafo 3º, do Código
de Processo Penal.”
Esta decisão contraria entendimento já consolidado
na Suprema Corte, cujo Regimento Interno, inclusive, possui dispositivo que
atribui àquela Corte competência para determinar a instauração de inquérito de
investigados com foro no Supremo Tribunal Federal, a pedido do Procurador-Geral
da República, da autoridade policial ou do ofendido.
Porém, segundo o relator, a norma regimental –
recepcionada no ordenamento jurídico atual por ser anterior à Constituição de 1988 – não possui força de lei: “Nada
obstante, ainda que se entenda pela necessidade de prévia autorização do
Supremo Tribunal Federal para investigar pessoas com foro naquela corte, não se
pode estender a aplicação do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que
disciplina situação específica e particular, para as demais instâncias do
Judiciário, que se encontram albergadas pela disciplina do Código
de Processo Penal e em consonância com os princípios constitucionais
pertinentes.”
Efetivamente, esta decisão da Quinta Turma colide,
não somente com o disposto no Regimento Interno da Suprema Corte (que deveria
ser observado, no particular e por analogia, pelo Superior Tribunal de
Justiça), como com algumas decisões daquele Colegiado, senão vejamos:
Em decisão unânime, a Segunda Turma do Supremo
Tribunal Federal, na sessão do último dia 25 de outubro, acolheu parcialmente o
Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 135683, impetrado pela defesa de um
ex-Senador da República, invalidando as interceptações telefônicas realizadas no
âmbito das investigações criminais, que serviram de base para a denúncia
oferecida perante o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Segundo a Turma, o
réu, à época Senador da República, detinha foro por prerrogativa de função e as
interceptações telefônicas exigiriam autorização do Supremo Tribunal Federal.
Com a decisão, todos os atos investigatórios (e eventuais provas) derivados das
interceptações telefônicas foram desentranhados do processo, cabendo ao
Tribunal de Justiça de Goiás “verificar se remanesce motivo para o
prosseguimento da ação com base em provas autônomas que possam sustentar a
acusação.” O que ocorreu neste caso foi o fato de que, durante
investigações realizadas pela Polícia Federal, em 2008 e 2009, foram
autorizadas por um Juiz Federal interceptações telefônicas que, fortuitamente,
acabaram por revelar relações entre o investigado e diversos políticos, entre
eles o ex-Senador que, em 2012, acabou por ser indiciado no Inquérito n. 3430,
iniciado no Supremo Tribunal Federal. Como o Senador foi cassado naquele mesmo
ano, o processo foi remetido ao Tribunal de Justiça de Goiás, em razão de se
tratar de um Procurador de Justiça (até então licenciado do Ministério Público
de Goiás). Oferecida a denúncia, o Tribunal recebeu a peça acusatória, na qual
se imputava ao ex-Senador do Democratas a prática dos crimes de corrupção
passiva e advocacia administrativa (arts. 317 e 321 do Código Penal).
No julgamento do Recurso Ordinário Constitucional,
o relator, Ministro Dias Toffoli, leu diversos trechos das respectivas
degravações para demonstrar que, “desde o início das investigações, em 2008,
já havia indícios do possível envolvimento de políticos de expressão nacional –
inclusive com a produção de relatórios à parte relativos a essas autoridades,
com foro por prerrogativa de função – e que o Ministério Público tinha ciência
desses fatos.” Afirmou, inclusive, que em alguns trechos, os relatórios
sinalizam que a remessa do caso “atrapalharia as investigações.” Nada
obstante, apenas em junho de 2009 é que a Polícia Federal remeteu os autos à
Suprema Corte. Segundo o relator, “embora o recorrente não tenha sido o alvo
direto das investigações, o surgimento de indícios de seu envolvimento tornava
impositiva a remessa do caso para o Supremo Tribunal Federal e o prosseguimento
das interceptações configurou um modus operandi controlado, cujo intuito
seria o de obter, por via oblíqua, mais indícios de envolvimento do então
Senador, sem autorização do Supremo Tribunal Federal”.
Seguindo o entendimento do relator, o Ministro
Teori Zavascki, afirmou tratar-se de um caso clássico de usurpação de
competência: “É lamentável que esses episódios ocorram, e não é a primeira
vez. Se temos constitucionalmente uma distribuição de competência, é preciso
que isso seja realmente levado a sério. Apesar das evidências robustas, as
provas são ilícitas.” Também o Ministro Ricardo Lewandowski, relator do
inquérito contra o ex-Senador (que tramitou naquela Corte), ressaltou “que
havia mais de mil páginas referentes às interceptações realizadas sem
autorização do Supremo Tribunal Federal, configurando uma situação intolerável,
sob pena de desmoronarem as instituições. O Supremo não tolerará qualquer tipo
de usurpação de sua competência”, afirmou o Ministro. Na mesma linha de posicionamento,
o Ministro Celso de Mello, afirmou que “o caso revela um quadro censurável
de gravíssimas anomalias de índole jurídica, estando patente o desrespeito à
ordem constitucional, e a decisão deve servir de referência aos agentes
estatais. Diante do possível cometimento, por um Senador da República, de uma
suposta prática delituosa, caberia à autoridade judiciária de primeira
instância, sob cuja supervisão tramitava o procedimento de investigação,
imediatamente, reconhecer sua falta de competência e determinar o
encaminhamento dos autos ao Supremo Tribunal Federal.” O Presidente da
Segunda Turma, Ministro Gilmar Mendes, ressaltou que se trata de “um bom
caso de abuso de autoridade, no qual, conscientemente e por tempo
indeterminado, se deixou que a investigação prosseguisse em relação a pessoas
dotadas, à época, de prerrogativa de foro, sem a necessária autorização. O caso
transcende seu próprio objeto, sendo fundamental que estejamos estabelecendo um
precedente crítico em relação a abusos que se perpetram na seara da proteção
dos direitos e garantias individuais, sendo o mais caro deles o direito à
liberdade.”
Em outra oportunidade, a mesma Segunda Turma já
havia concedido um Habeas Corpus de ofício para extinguir, por ausência de
justa causa, a Ação Penal nº. 933, ajuizada contra um Deputado Federal, acusado
de praticar um crime eleitoral. Em questão de ordem, os Ministros entenderem
que houve nulidade na investigação com relação ao réu, uma vez que o
procedimento foi supervisionado por Juízo incompetente. De acordo com os
autos, o Deputado Federal foi indiciado em inquérito supervisionado por Juiz de
primeiro grau quando cumpria mandato de Prefeito. Recebida a denúncia em
primeira instância, os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal Federal após a
diplomação do réu como Deputado Federal. Pela decisão, a competência para
supervisionar investigação de crime eleitoral imputado a prefeito é do Tribunal
Regional Eleitoral, segundo destacou o relator da ação, Ministro Dias
Toffolli, citando o Enunciado 702 da súmula do Supremo Tribunal Federal. No
caso, segundo o Ministro, houve indícios de que o então Prefeito teria
praticado crime eleitoral por ter supostamente oferecido emprego a eleitores em
troca de votos, valendo-se do cargo que ocupava. “Nesse contexto, não
poderia o inquérito ter sido supervisionado por juízo eleitoral de primeiro
grau e muito menos poderia a autoridade policial direcionar as diligências
apuratórias para investigar o prefeito e tê-lo indiciado”, disse. Dessa
forma, segundo o relator, “a usurpação da competência do Tribunal Regional
Eleitoral para supervisionar as investigações constitui vício que contamina de
nulidade aquela investigação realizada em relação a este detentor de
prerrogativa de foro”.
O mesmo entendimento foi adotado no julgamento do
Inquérito nº. 2116, em que o Ministério Público Federal pedia a apuração de
possível envolvimento de um Senador em suposto esquema de desvio de verbas
federais em obras municipais. O Plenário decidiu que o Inquérito deveria
prosseguir sob a fiscalização da Suprema Corte. Também no julgamento do
Inquérito nº. 3305, no qual um Deputado Federal era acusado de fazer parte de
quadrilha destinada ao desvio de recursos públicos. A denúncia foi rejeitada em
razão de o inquérito ter sido conduzido em primeira instância, mesmo depois da
inclusão de parlamentar federal entre os investigados. O relator do inquérito,
Ministro Marco Aurélio, ressaltou que o entendimento do Supremo Tribunal
Federal é de que a competência do Tribunal para processar autoridades com
prerrogativa de foro inclui a fase de inquérito. Uma vez identificada a
participação dessas autoridades, os autos devem ser imediatamente remetidos à
Corte. “É inadmissível que uma vez surgindo o envolvimento de detentor de
prerrogativa de foro, se prossiga nas investigações”, afirmou o Ministro.
Seu voto foi acompanhado por unanimidade.
Também no mesmo sentido, a Primeira Turma
determinou o arquivamento do Inquérito nº. 3552, no qual um Deputado Federal
era acusado de contratação de uma funcionária fantasma em seu gabinete na
Câmara dos Deputados. Os Ministros acolheram a questão de ordem apresentada
pela defesa no sentido de que a investigação criminal havia sido conduzida em
primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os
investigados, usurpando a competência do Supremo.
De igual maneira, o Ministro Gilmar Mendes
determinou o arquivamento do Inquérito 2963, contra um Senador da República,
sua esposa e quatro filhos por suposta prática dos crimes de falsidade ideológica,
desvio de contribuições previdenciárias e crimes contra a ordem tributária. O
inquérito foi instaurado pela Polícia Federal em Boa Vista (RR), por requisição
do Ministério Público Federal. A decisão, conforme o Ministro, ocorreu sem
prejuízo de que novo procedimento de investigação venha a ser instaurado para
apurar os fatos citados na notícia-crime. Porém, ele entendeu que o inquérito
deveria ser trancado por não ter sido requerido pelo Procurador-Geral da
República. O relator observou que a requisição para a instauração do inquérito
pela Polícia Federal foi realizada por Procurador da República, sem qualquer
delegação do Procurador-Geral da República. “Como cediço, o inquérito para
investigar fatos em tese praticados por membro do Congresso Nacional, na
qualidade de coautor ou autor, não só é supervisionado pelo STF, como tem
tramitação eminentemente judicial e não obedece ao processamento dos ordinários
inquéritos policiais”, disse o Ministro, salientando que, nesses casos, a
abertura da investigação apenas se dá no Supremo Tribunal Federal, por
requisição do Procurador-Geral da República ou de subprocurador-geral da
República que atue na Corte mediante delegação. Também pode ser citado o
julgamento da Petição nº. 3825.
Portanto, entende o Supremo Tribunal Federal ser
inadmissível qualquer iniciativa (ou mesmo a continuidade) de uma investigação
criminal quando haja suspeita de prática de infração penal por parte de
detentor de foro por prerrogativa de função. Se cabe ao respectivo tribunal o
processo e o julgamento do caso penal, por óbvio (pelo menos do ponto de vista
da nossa normatividade) deve a anterior investigação criminal ser ao menos
“supervisionada” pelo órgão colegiado.
Sobre a investigação criminal supervisionada
judicialmente, assim afirmou o Ministro Gilmar Mendes: “Se a Constituição estabelece que os agentes políticos
respondem, por crime comum, perante o Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102,
I, b), não há razão
constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à
supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas
do controle judicial do Supremo Tribunal Federal. A iniciativa do procedimento
investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do
Ministro-Relator do Supremo Tribunal Federal. A Polícia Federal não está
autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de
parlamentares federais ou do próprio Presidente da República. No exercício de
competência penal originária do Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102,
I, b c/c Lei nº 8.038/1990,
art. 2º
e Regimento Interno, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve
ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das
investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual
oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis. Questão de ordem
resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela
autoridade policial em face do parlamentar investigado. Conforme o Supremo
Tribunal Federal: A outorga de competência originária para processar e julgar
determinadas Autoridades (detentoras de foro por prerrogativa de função) não se
limita ao processo criminal em si mesmo, mas, à base da teoria dos poderes
implícitos, estende-se à fase apuratória pré- processual, de tal modo que cabe
igualmente à Corte – e não ao órgão jurisdicional de 1ª instância - o
correlativo controle jurisdicional dos atos investigatórios (Supremo Tribunal
Federal: Reclamação 2349/TO, – Reclamação nº. 1150/PR). A inobservância da
prerrogativa de foro conferida a Deputado Estadual, ainda que na fase
pré-processual, torna ilícitos os atos investigatórios praticados após sua
diplomação (Supremo Tribunal Federal: Habeas Corpus 94.705/RJ, relator Ministro
Ricardo Lewandowski). A partir da diplomação, o Deputado Estadual passa a ter
foro privativo no Tribunal de Justiça, inclusive para o controle dos
procedimentos investigatórios, desde o seu nascedouro até o eventual
oferecimento da denúncia.” (Inquérito nº. 2411/MT, Informativo
483 do Supremo Tribunal Federal).
Observa-se que dentre as decisões indicadas,
algumas (Habeas Corpus nº. 94.705/RJ e Ação Penal nº. 933) são de natureza
geral e não particularmente para investigados com foro junto ao Supremo, razão
pela qual a decisão ora prolatada pela Quinta Turma do Superior Tribunal de
Justiça vai de encontro a decisões da Corte Constitucional (uma envolvia um
Prefeito e outra um Deputado Estadual, ambos com prerrogativa de foro junto ao
Tribunal de Justiça).
Nada obstante tais decisões, deve-se ressaltar ser
um tanto quanto estranho que um órgão jurisdicional “supervisione” uma
investigação criminal e depois processe e julgue o mesmo caso penal (sendo o
relator também o mesmo, o que é mais grave). Sob o ponto de vista do Sistema
Acusatório, e em respeito às suas regras e aos seus princípios, tal
“investigação supervisionada” soa, no mínimo, inadequada e estranha aos
postulados constitucionais.
Preocupa-nos, também, o fato desta recente decisão
do Superior Tribunal de Justiça trazer uma tremenda insegurança jurídica, pois
haveremos de perguntar: afinal de contas, a "investigação
supervisionada" impõe-se apenas nos casos de investigados que tenham
prerrogativa de foro junto ao Supremo Tribunal Federal ou deve ser observada em
todos os casos?