domingo, 16 de agosto de 2015

STF dirá que “usuário” de drogas não é criminoso?

Publicado por Luiz Flávio Gomes

O “usuário” de drogas (quem porta drogas para uso pessoal privado) pratica uma conduta normalmente maligna para ele mesmo, mas não comete nenhum crime. Basta entender que crime constitui uma ofensa (lesão ou perigo real ou concreto de lesão) a bens (jurídicos) de terceiras pessoas. Isso se chama “princípio da alteridade” (que significa ofensa ao outro ou aos outros, isto é, a terceiros). O “usuário” de drogas (enquanto se limita a isso) danifica sua própria saúde (em maior ou menor grau, conforme a droga e sua quantidade), não a saúde física de terceiras pessoas. Ao STF não compete dizer quem é traficante ou usuário. Isso é problema do legislador. O STF deve decidir se o usuário é ou não um criminoso. Se o problema é de saúde privada e pública ou se é uma questão de polícia e Justiça.
A questão central é a seguinte: terá coragem a Máxima Corte de enfrentar as “massas rebeladas ultraconservadoras” e tomar mais uma decisão contramajoritária (como fez com a “união homoafetiva”, células-tronco, aborto anencefálico, marcha da maconha, inconstitucionalidade do regime fechado nos crimes hediondos, penas alternativas no tráfico etc.)? Eis a questão. Julgará com a emoção – de acordo com a emotividade reinante na nossa pungente oclocracia, que é a democracia das massas – ou com a razão?

Seguirá os exemplos dos países mais consequentes no assunto (praticamente toda Europa, incluindo Portugal, Espanha, Holanda etc.), que encaram o “usuário” de drogas (tanto quanto o alcoólatra, enquanto não pratica nenhum crime) como um problema de saúde pública e privada? Ou se dobrará ao populismo punitivo irracional norte-americano de 1971 (quando Richard Nixon declarou “guerra às drogas”, desencadeando uma das políticas públicas mais ineficazes e mais desastradas de toda história da humanidade)?

Nos Estados democráticos de Direito (esse é o modelo organizacional escolhido pela nossa Constituição, ao menos no papel), o Estado não tem o direito de usar o direito penal (de ultima ratio) para corrigir moralmente os humanos “considerados” erráticos (se é que isso fosse possível). Não existe razoabilidade em usar o poder punitivo estatal mais pesado contra quem faz uso da sua liberdade para fumar, beber imoderadamente, ingerir açúcar, sal ou gorduras em excesso, tomar remédios sem prescrição médica, usar a internet de forma vulgar, não ler um livro sequer (instrutivo) durante o ano todo, urinar fora do vaso sanitário, praticar sexo para fins não reprodutivos, não usar (incorretamente) camisinha etc., seguindo a lógica do Código Penal de 1940, previa pena de prisão para o portador de drogas para uso pessoal. A Lei dos Juizados Criminais (1995) permitiu aplicar penas alternativas no lugar da prisão. A Lei 10.409/2002 evoluiu para tratar o usuário como não criminoso. Com a atual Lei de drogas (11.343/2006) a situação ficou confusa: aboliu-se a pena de prisão para o usuário, mas é muito frágil (e demasiadamente subjetiva) a distinção entre o traficante e o usuário. Daí os abusos constantes (e a superlotação carcerária, muito acima do crescimento populacional do País).

Essa vem sendo a brecha encontrada (na lei) pelo poder punitivo para mandar para a cadeia milhares de usuários pobres ou marginalizados, como se fossem traficantes (houve aumento de 339% nessas prisões desde 2006).

O Instituto Sou da Paz diz que o chamado “pequeno traficante”, quando é levado para a cadeia, não deixa de ser “traficante”, mas perde sua qualidade de “pequeno”, porque entra em contato com o grande tráfico que domina os presídios (veja o livro de Camila Dias). De outro lado, portadores de drogas de classe média ou alta praticamente não são importunados pela polícia (territórios inacessíveis). Pelo menos como juiz de direito que fui (durante 15 anos) eu só recebia processos sobre drogas contra pobres. Quando excepcionalmente alguém com “status” é surpreendido, raramente é enfocado como traficante. É um truísmo afirmar que o direito penal não é aplicado de forma igual para todos. Dos quase 200 mil presos por “tráfico” no Brasil, nota-se a ausência dos grandes traficantes (com raras exceções, como Fernandinho Beira-Mar).

Uma última observação: descriminalizar o “usuário” é retirá-lo do campo penal. É dizer que o usuário não é um criminoso. Mas a droga, nesse caso, continua ilícita. Hoje existem três posicionamentos sobre o tema: (a) do próprio STF que diz que o usuário é criminoso; (b) posição intermediária minha no sentido de que a posse de drogas para uso próprio seria um ilícito penal sui generis (hoje já não penso dessa maneira) e (c) o pensamento de Alice Bianchini no sentido de que já houve a descriminalização (veja nosso livro Lei de Drogas). Sigo hoje esta última tese (pelos motivos acima alinhados). Não é porque somos um país periférico que não podemos copiar as boas políticas públicas difundidas pelo mundo afora mais evoluído (e menos reacionário).

O pensamento aparentemente anárquico (vindo, dentre outros, de Stuart Mill e da prestigiada revista The Economist) sustenta que todas as drogas deveriam ser legalizadas, salvo quando envolve menores. Isso é o que fez o Uruguai e cinco Estados dos EUA em relação à maconha. Quanto aos maiores de idade, que cada um cuide da sua liberdade com a devida responsabilidade (tal como cada um faz com o álcool, com o cigarro, com o açúcar, com o sal, com as gorduras, com os remédios, com o sexo, com o uso vulgar da internet, com o uso dos carros etc.).

Em pleno século XXI não podemos nos comportar como os trogloditas de Montesquieu (Cartas Persas) que, sentindo o peso da ética e da moral, preferiram não se autogovernarem e se submeterem aos juízes e às leis. Sempre que queremos fugir das nossas responsabilidades éticas, civis e cidadãs (frente ao uso das drogas, do álcool, do fumo, do açúcar, do carro, das vias públicas etc.) abominamos o autocontrole em favor das normas e do controle estatal (confiando, claro, na impunidade, mesmo quando somos pilhados nos nossos deslizes éticos, morais e cidadãos).

Professor
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de palestras e entrevistas]


STF dirá que “usuário” de drogas não é criminoso?

Publicado por Luiz Flávio Gomes

O “usuário” de drogas (quem porta drogas para uso pessoal privado) pratica uma conduta normalmente maligna para ele mesmo, mas não comete nenhum crime. Basta entender que crime constitui uma ofensa (lesão ou perigo real ou concreto de lesão) a bens (jurídicos) de terceiras pessoas. Isso se chama “princípio da alteridade” (que significa ofensa ao outro ou aos outros, isto é, a terceiros). O “usuário” de drogas (enquanto se limita a isso) danifica sua própria saúde (em maior ou menor grau, conforme a droga e sua quantidade), não a saúde física de terceiras pessoas. Ao STF não compete dizer quem é traficante ou usuário. Isso é problema do legislador. O STF deve decidir se o usuário é ou não um criminoso. Se o problema é de saúde privada e pública ou se é uma questão de polícia e Justiça.

A questão central é a seguinte: terá coragem a Máxima Corte de enfrentar as “massas rebeladas ultraconservadoras” e tomar mais uma decisão contramajoritária (como fez com a “união homoafetiva”, células-tronco, aborto anencefálico, marcha da maconha, inconstitucionalidade do regime fechado nos crimes hediondos, penas alternativas no tráfico etc.)? Eis a questão. Julgará com a emoção – de acordo com a emotividade reinante na nossa pungente oclocracia, que é a democracia das massas – ou com a razão?

Seguirá os exemplos dos países mais consequentes no assunto (praticamente toda Europa, incluindo Portugal, Espanha, Holanda etc.), que encaram o “usuário” de drogas (tanto quanto o alcoólatra, enquanto não pratica nenhum crime) como um problema de saúde pública e privada? Ou se dobrará ao populismo punitivo irracional norte-americano de 1971 (quando Richard Nixon declarou “guerra às drogas”, desencadeando uma das políticas públicas mais ineficazes e mais desastradas de toda história da humanidade)?

Nos Estados democráticos de Direito (esse é o modelo organizacional escolhido pela nossa Constituição, ao menos no papel), o Estado não tem o direito de usar o direito penal (de ultima ratio) para corrigir moralmente os humanos “considerados” erráticos (se é que isso fosse possível). Não existe razoabilidade em usar o poder punitivo estatal mais pesado contra quem faz uso da sua liberdade para fumar, beber imoderadamente, ingerir açúcar, sal ou gorduras em excesso, tomar remédios sem prescrição médica, usar a internet de forma vulgar, não ler um livro sequer (instrutivo) durante o ano todo, urinar fora do vaso sanitário, praticar sexo para fins não reprodutivos, não usar (incorretamente) camisinha etc., seguindo a lógica do Código Penal de 1940, previa pena de prisão para o portador de drogas para uso pessoal. A Lei dos Juizados Criminais (1995) permitiu aplicar penas alternativas no lugar da prisão. A Lei 10.409/2002 evoluiu para tratar o usuário como não criminoso. Com a atual Lei de drogas (11.343/2006) a situação ficou confusa: aboliu-se a pena de prisão para o usuário, mas é muito frágil (e demasiadamente subjetiva) a distinção entre o traficante e o usuário. Daí os abusos constantes (e a superlotação carcerária, muito acima do crescimento populacional do País).

Essa vem sendo a brecha encontrada (na lei) pelo poder punitivo para mandar para a cadeia milhares de usuários pobres ou marginalizados, como se fossem traficantes (houve aumento de 339% nessas prisões desde 2006).

O Instituto Sou da Paz diz que o chamado “pequeno traficante”, quando é levado para a cadeia, não deixa de ser “traficante”, mas perde sua qualidade de “pequeno”, porque entra em contato com o grande tráfico que domina os presídios (veja o livro de Camila Dias). De outro lado, portadores de drogas de classe média ou alta praticamente não são importunados pela polícia (territórios inacessíveis). Pelo menos como juiz de direito que fui (durante 15 anos) eu só recebia processos sobre drogas contra pobres.

Quando excepcionalmente alguém com “status” é surpreendido, raramente é enfocado como traficante. É um truísmo afirmar que o direito penal não é aplicado de forma igual para todos. Dos quase 200 mil presos por “tráfico” no Brasil, nota-se a ausência dos grandes traficantes (com raras exceções, como Fernandinho Beira-Mar).

Uma última observação: descriminalizar o “usuário” é retirá-lo do campo penal. É dizer que o usuário não é um criminoso. Mas a droga, nesse caso, continua ilícita. Hoje existem três posicionamentos sobre o tema: (a) do próprio STF que diz que o usuário é criminoso; (b) posição intermediária minha no sentido de que a posse de drogas para uso próprio seria um ilícito penal sui generis (hoje já não penso dessa maneira) e (c) o pensamento de Alice Bianchini no sentido de que já houve a descriminalização (veja nosso livro Lei de Drogas). Sigo hoje esta última tese (pelos motivos acima alinhados). Não é porque somos um país periférico que não podemos copiar as boas políticas públicas difundidas pelo mundo afora mais evoluído (e menos reacionário).

O pensamento aparentemente anárquico (vindo, dentre outros, de Stuart Mill e da prestigiada revista The Economist) sustenta que todas as drogas deveriam ser legalizadas, salvo quando envolve menores. Isso é o que fez o Uruguai e cinco Estados dos EUA em relação à maconha. Quanto aos maiores de idade, que cada um cuide da sua liberdade com a devida responsabilidade (tal como cada um faz com o álcool, com o cigarro, com o açúcar, com o sal, com as gorduras, com os remédios, com o sexo, com o uso vulgar da internet, com o uso dos carros etc.).

Em pleno século XXI não podemos nos comportar como os trogloditas de Montesquieu (Cartas Persas) que, sentindo o peso da ética e da moral, preferiram não se autogovernarem e se submeterem aos juízes e às leis. Sempre que queremos fugir das nossas responsabilidades éticas, civis e cidadãs (frente ao uso das drogas, do álcool, do fumo, do açúcar, do carro, das vias públicas etc.) abominamos o autocontrole em favor das normas e do controle estatal (confiando, claro, na impunidade, mesmo quando somos pilhados nos nossos deslizes éticos, morais e cidadãos).

Professor
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de palestras e entrevistas]