STF dirá
que “usuário” de drogas não é criminoso?
Publicado por Luiz Flávio Gomes
O “usuário” de drogas (quem porta drogas para uso
pessoal privado) pratica uma conduta normalmente maligna para ele mesmo, mas
não comete nenhum crime. Basta entender que crime constitui uma ofensa (lesão
ou perigo real ou concreto de lesão) a bens (jurídicos) de terceiras pessoas.
Isso se chama “princípio da alteridade” (que significa ofensa ao outro ou aos
outros, isto é, a terceiros). O “usuário” de drogas (enquanto se limita a isso)
danifica sua própria saúde (em maior ou menor grau, conforme a droga e sua
quantidade), não a saúde física de terceiras pessoas. Ao STF não compete dizer
quem é traficante ou usuário. Isso é problema do legislador. O STF deve decidir
se o usuário é ou não um criminoso. Se o problema é de saúde privada e pública
ou se é uma questão de polícia e Justiça.
A questão central é a seguinte: terá coragem a
Máxima Corte de enfrentar as “massas rebeladas ultraconservadoras” e tomar mais
uma decisão contramajoritária (como fez com a “união homoafetiva”,
células-tronco, aborto anencefálico, marcha da maconha, inconstitucionalidade
do regime fechado nos crimes hediondos, penas alternativas no tráfico etc.)?
Eis a questão. Julgará com a emoção – de acordo com a emotividade reinante na
nossa pungente oclocracia, que é a democracia das massas – ou com a razão?
Seguirá os exemplos dos países mais consequentes no
assunto (praticamente toda Europa, incluindo Portugal, Espanha, Holanda etc.),
que encaram o “usuário” de drogas (tanto quanto o alcoólatra, enquanto não
pratica nenhum crime) como um problema de saúde pública e privada? Ou se
dobrará ao populismo punitivo irracional norte-americano de 1971 (quando
Richard Nixon declarou “guerra às drogas”, desencadeando uma das políticas
públicas mais ineficazes e mais desastradas de toda história da humanidade)?
Nos Estados democráticos de Direito (esse é o
modelo organizacional escolhido pela nossa Constituição,
ao menos no papel), o Estado não tem o direito de usar o direito penal (de
ultima ratio) para corrigir moralmente os humanos “considerados” erráticos
(se é que isso fosse possível). Não existe razoabilidade em usar o poder
punitivo estatal mais pesado contra quem faz uso da sua liberdade para fumar,
beber imoderadamente, ingerir açúcar, sal ou gorduras em excesso, tomar
remédios sem prescrição médica, usar a internet de forma vulgar, não ler um
livro sequer (instrutivo) durante o ano todo, urinar fora do vaso sanitário,
praticar sexo para fins não reprodutivos, não usar (incorretamente) camisinha
etc., seguindo a lógica do Código Penal de
1940, previa pena de prisão para o portador de drogas para uso pessoal. A Lei
dos Juizados Criminais (1995) permitiu aplicar penas alternativas no lugar da
prisão. A Lei 10.409/2002 evoluiu para
tratar o usuário como não criminoso. Com a atual Lei de drogas (11.343/2006) a
situação ficou confusa: aboliu-se a pena de prisão para o usuário, mas é muito
frágil (e demasiadamente subjetiva) a distinção entre o traficante e o usuário.
Daí os abusos constantes (e a superlotação carcerária, muito acima do
crescimento populacional do País).
Essa vem sendo a brecha encontrada (na lei) pelo
poder punitivo para mandar para a cadeia milhares de usuários pobres ou marginalizados,
como se fossem traficantes (houve aumento de 339% nessas prisões desde 2006).
O Instituto Sou da Paz diz que o chamado
“pequeno traficante”, quando é levado para a cadeia, não deixa de ser
“traficante”, mas perde sua qualidade de “pequeno”, porque entra em contato com
o grande tráfico que domina os presídios (veja o livro de Camila Dias). De
outro lado, portadores de drogas de classe média ou alta praticamente não são
importunados pela polícia (territórios inacessíveis). Pelo menos como juiz de direito
que fui (durante 15 anos) eu só recebia processos sobre drogas contra pobres.
Quando excepcionalmente alguém com “status” é surpreendido, raramente é
enfocado como traficante. É um truísmo afirmar que o direito penal não é
aplicado de forma igual para todos. Dos quase 200 mil presos por “tráfico” no
Brasil, nota-se a ausência dos grandes traficantes (com raras exceções, como
Fernandinho Beira-Mar).
Uma última observação: descriminalizar o “usuário”
é retirá-lo do campo penal. É dizer que o usuário não é um criminoso. Mas a
droga, nesse caso, continua ilícita. Hoje existem três posicionamentos sobre o
tema: (a) do próprio STF que diz que o usuário é criminoso; (b) posição
intermediária minha no sentido de que a posse de drogas para uso próprio seria um
ilícito penal sui generis (hoje já não penso dessa maneira) e (c) o
pensamento de Alice Bianchini no sentido de que já houve a descriminalização
(veja nosso livro Lei de Drogas). Sigo hoje esta última tese (pelos
motivos acima alinhados). Não é porque somos um país periférico que não podemos
copiar as boas políticas públicas difundidas pelo mundo afora mais evoluído (e
menos reacionário).
O pensamento aparentemente anárquico (vindo, dentre
outros, de Stuart Mill e da prestigiada revista The Economist) sustenta
que todas as drogas deveriam ser legalizadas, salvo quando envolve menores.
Isso é o que fez o Uruguai e cinco Estados dos EUA em relação à maconha. Quanto
aos maiores de idade, que cada um cuide da sua liberdade com a devida
responsabilidade (tal como cada um faz com o álcool, com o cigarro, com o
açúcar, com o sal, com as gorduras, com os remédios, com o sexo, com o uso
vulgar da internet, com o uso dos carros etc.).
Em pleno século XXI não podemos nos comportar como
os trogloditas de Montesquieu (Cartas Persas) que, sentindo o peso da
ética e da moral, preferiram não se autogovernarem e se submeterem aos juízes e
às leis. Sempre que queremos fugir das nossas responsabilidades éticas, civis e
cidadãs (frente ao uso das drogas, do álcool, do fumo, do açúcar, do carro, das
vias públicas etc.) abominamos o autocontrole em favor das normas e do controle
estatal (confiando, claro, na impunidade, mesmo quando somos pilhados nos
nossos deslizes éticos, morais e cidadãos).
Professor
Jurista e professor. Fundador da
Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor
de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a
2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de
palestras e entrevistas]