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O título deste texto, que também poderia
denominar-se Traição a serviço da ‘Justiça’, reflete, alegoricamente, o real
significado da delação premiada, um instituto ligado, na verdade, ao
aprisionamento sem culpa e a uma distorcida ideia de Justiça, e não ao escopo
declarado em lei, qual seja o de constituir um instrumento para o
esclarecimento da verdade real sobre o crime e seus autores. A primeira
objeção a ser posta diante do instituto da delação premiada se refere à
insegurança jurídica que é por ele gerada.
O acusado preso sofre um rebaixamento no seu
senso ético e moral, sendo atingidas as noções do certo e do errado, do justo
e do injusto, do bem e do mal. Fragilizado, o colaborador fica sujeito a
qualquer tipo de estímulo para ver minimizado o sofrimento imposto pela sua
estada no cárcere. E atualmente a delação premiada, incentivada pelas
autoridades, se apresenta como o mais viável meio de alcance da liberdade.
O encarcerado, com apoio na verdade ou
falseando-a, passa a acusar companheiros de empreitada criminosa e a narrar
situações ilícitas até então desconhecidas. É obvio que a sua conduta não é
inspirada por motivos ligados ao civismo, à cidadania, ao interesse público
ou a quaisquer outros nobres sentimentos. Seu interesse imediato é alcançar a
liberdade, bem como benefícios outros que vão desde o perdão judicial até a
diminuição da pena e o menor rigor em seu cumprimento.
Lembre-se de que, em face desses motivos
meramente utilitários, egoísticos, a delação poderá atingir pessoas inocentes
ou mesmo aquelas que, embora participantes do crime, tenham uma
responsabilidade menor do que a apontada. Lamentavelmente, este
injustificável efeito da colaboração premiada vem ocorrendo nos nossos dias e
provoca evidente insegurança jurídica no que diz respeito à justiça penal.
De acordo com a Lei 12.850/13, sobre organização
criminosa, que editou normas específicas e mais abrangentes a respeito de
colaboração, existem duas condicionantes para que a colaboração tenha
validade jurídica: a efetividade das denúncias e a voluntariedade na opção do
delator. Quanto à efetividade, o legislador pretende que o conteúdo da
delação produza efeitos concretos para que o crime, os seus outros autores e
as suas demais circunstâncias possam ser esclarecidos. Cabe, acerca deste
aspecto, uma advertência: a efetividade da colaboração não pode ser avaliada
apenas sob o prisma do seu conteúdo, mas é necessária a comprovação da sua
veracidade, sem o que não haverá efetividade e legitimidade da própria função
jurisdicional, pois não há Justiça Penal sem verdade.
A voluntariedade, segundo requisito da
legitimidade da colaboração, tem sido escandalosamente desrespeitada, com a
complacência da mídia, da sociedade e – o que é mais grave – de autoridades
ligadas à distribuição da Justiça Penal.
A partir da denominada Operação Lava Jato, as
prisões preventivas passaram a ser decretadas para obrigar o acusado a
delatar para obter a liberdade. Assim, prende-se para delatar e se solta
porque se delatou.
Note-se que o escopo exclusivo da prisão é
rigorosamente a delação. A custódia é decretada sem o exame de sua
necessidade.
Deve ser realçado, ainda, que a necessidade
constitui requisito fundamental para que a prisão antecipada se legitime
perante a Constituição federal, em face do princípio da presunção de
inocência, que proíbe a aplicação de pena até o trânsito em julgado da
decisão respectiva, salvo em casos excepcionais de comprovada necessidade.
Prisão para forçar a delação é uma medida cruel, verdadeira tortura, de nefastas consequências. Portanto, quem delata porque está preso não age voluntariamente. Estivesse em liberdade, sem pressão ou coação, a sua opção seria voluntária e merecedora de credibilidade. Encarcerado, porém, a sua palavra estará sempre sob suspeita. O ético e juridicamente correto seria que a lei só desse valor à palavra do delator que estivesse fora da prisão e proibisse a delação daquele que se encontra encarcerado. Como afirmou, com a propriedade de sempre, o advogado Arnaldo Malheiros Filho, ao comentar uma delação feita nos Estados Unidos que atingiu uma pessoa inocente e isentou o delator homicida de maiores consequências penais, “quem pode comprar a liberdade com a palavra dirá a palavra que quiserem ouvir”.
É preciso salientar que a delação premiada, tal
como vem sendo implementada no processo brasileiro, representa a derrogação
de princípios basilares da nossa jurisdição penal, a começar pelo próprio
afastamento da jurisdição na aplicação da sanção penal.
Uma vez fixados os
termos do acordo entre acusador e acusado, incluindo a pena e seu
cumprimento, o juiz terá papel meramente homologatório. O advogado, por sua
vez, será simples fiscal do acordo, porque diante da delação o direito de
defesa se torna dispensável.
Em resumo, estamos diante de aplicação de sanção
penal sem processo, este entendido como instrumento de aplicação do Direito
Penal, regido pelos princípios do contraditório, da obrigatoriedade da ação
penal, da presunção de inocência, do devido processo legal e da ampla defesa,
que passam a constituir letra morta, um nada jurídico.
Esse novo método de “descoberta da verdade”, longe de revelá-la, tem provocado injustiças e, como se apontou, uma inconcebível violação de princípios e de postulados constitucionais, cuja inserção em nosso ordenamento jurídico significou uma evolução civilizatória digna de orgulho e envaidecimento, pelo que representou de avanço em prol da democracia e da defesa das liberdades individuais.
Lembre-se que não se faz justiça com o sacrifício
da dignidade e da liberdade.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira - Conselheiro
honorário do MDA, ex-presidente da OAB-SP e da AASP, foi secretário de
Justiça e de Segurança do Estado de São Paulo.
*Artigo publicado originalmente na edição de sábado (20/6) do jornal O Estado de S. Paulo. |
Carlos Gianfardoni Advogado regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, sob o nº 96.337, com atuação na defesa de Crimes Empresariais e Crimes Contra a Vida; Professor de Direito Penal e Processo Penal na Escola de Direito - Pós-graduado em Direito Tributário; Mestre em Educação na USCS
quarta-feira, 24 de junho de 2015
Traição a serviço da ‘Justiça’
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