Em
recente decisão, já transitada em julgado, a magistrada rejeitou denúncia que
imputava a conduta de possuir droga para consumo próprio, sob o argumento de
atipicidade da conduta
Apesar do processo
ser público e de ter transcrito a decisão na íntegra,
apenas substituí o nome da parte por um fictício, com o objetivo de não expor a
sua imagem.
D E C I S Ã O
Vistos etc.
O Órgão
Ministerial ofereceu Denúncia em face de TÍCIO, já qualificado nos autos,
imputando-lhe a prática do crime tipificado no artigo 28
caput, da Lei nº 11.343/2006.
Colhe-se da peça
acusatória, às fls. 02, que o acusado, em 21/11/2013, foi abordado por
policiais, os quais encontraram com o réu 03 (três) pequenas “buchas” da
substância ilícita vulgarmente conhecida como “maconha”, todas destinadas para
seu próprio consumo.
Relatados, decido:
Preambularmente
cumpre registrar o posicionamento a ser firmado por este Juízo diante da
situação fática ora vivenciada pelo acusado.
Em que pese o
estágio inicial que se encontra a presente ação penal, o que aqui se discute é
a reprovabilidade da conduta perpetrada pelo réu e a (des) necessidade de
punição pelas vias do Direito Penal.
Neste sentido,
importante trazer à baila o entendimento exposto pela então Juíza de Direito
Maria Lúcia Karan que, ainda na vigência da Lei nº 6368/76,
absolveu a ora ré pela prática do crime previsto no artigo 16
da referida lei, flagrada com pequena quantidade de maconha e cocaína para uso
próprio, sob argumento da "falta de tipicidade penal”.
"É comum
ouvir afirmações de que a impunidade da posse de drogas para uso pessoal
incentivaria a disseminação de tais substâncias. Entretanto, uma análise mais
racional revela que tal afirmativa não parte de dados concretos, sendo mera
suposição, suposição que também seria possível fazer num sentido oposto, pois
não é razoável pensar que a ameaça de punição pode, não só ser inócua no
sentido de evitar o consumo, como até funcionar como uma atração a mais,
notadamente entre os jovens e adolescentes, setor onde o problema é
especialmente preocupante. Também não há dados concretos que demonstrem que a
punição do consumidor tenha alguma consequência relevante no combate ao
tráfico. A simples observação dos processos que tramitam na Justiça Criminal
permite afirmar que é raríssimo encontrar casos em que a prisão do consumidor
leva à identificação do fornecedor. Se o consumidor pode vir a ser um [...]
traficante, deverá ser punido no momento que assim se tornar, pois aí sim
estará deixando a esfera individual para atingir a bens jurídicos alheios,
devendo a punição alcançar qualquer conduta que encerre a destinação da droga a
terceiros, pouco importando se o fornecimento se dá a título oneroso ou
gratuito, em grande ou pequena quantidade."
Já sob a vigência
da atual Lei nº 11.343/06,
a 6ª Câmara Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP, Sexta
Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 993.07.126537-3, Rel. José Henrique
Torres, j. 31.03.2008), por sua vez, retomou o debate para fins de declarar a
inconstitucionalidade do artigo 28
da referida Lei, sob o argumento de que:
“não
há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da
alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade
e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da
dignidade, albergados pela Constituição
Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos
ratificados pelo Brasil”.
Tal posicionamento
tomou projeção nacional, de tal modo que já é possível verificar a sua presença
nas sentenças dos magistrados de primeiro grau, a exemplo do Juiz Rubens
Casara, da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, que absolveu sumariamente o réu
pela prática do crime previsto no artigo 28
da lei nº 11.343/06,
sob o fundamento de que o fato narrado evidentemente não constitui crime:
"Por força do
princípio da ofensividade (nullum crimen sine iniuria), não existe crime sem
ofensa ao bem jurídico em nome do qual a norma penal foi criada. No caso em
exame, a conduta de P. Não colocou em risco real e concreto o bem jurídico -
saúde pública - que se afirma protegido pela norma penal incriminadora. De
igual sorte, não se pode reconhecer a existência de crime sem que o resultado
da conduta do agente se mostre capaz de afetar terceiras pessoas ou interesses
de terceiros. Note-se que a conduta do réu toca apenas bens jurídicos
individuais." Por fim, como consequência deste debate, a arguição da
inconstitucionalidade aportou no STF, que lhe deu status de"Repercussão
Geral". Sendo assim, portanto, a discussão atual acerca da
inconstitucionalidade do artigo 28,
da Lei nº 11.343/06
afeta o Supremo Tribunal Federal, que não deve demorar na apreciação do caso”.¹
Como visto no teor
do julgado acima transcrito, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu e
existência de “Repercussão Geral”
no caso da inconstitucionalidade do artigo 28
da Lei 11.343
/06:
"No caso, a
controvérsia constitucional cinge-se a determinar se o preceito constitucional invocado
autoriza o legislador infraconstitucional a tipificar penalmente o uso de
drogas para consumo pessoal. Trata-se de discussão que alcança, certamente,
grande número de interessados, sendo necessária a manifestação desta Corte para
a pacificação da matéria. Portanto, revela-se tema com manifesta relevância
social e jurídica, que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. Nesse
sentido, entendo configurada a repercussão geral da matéria
Constitucional."
Ademais, a
Primeira Turma do Pretório Excelso, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli,
aplicou, de forma pioneira, o princípio da insignificância a caso específico de
porte de drogas, esclarecendo que a privação da liberdade e a restrição de
direitos do indivíduo somente se justificam quando “estritamente necessários à
própria proteção das pessoas”, levando-se em consideração, para tanto, que no
caso houve porte de ínfima quantidade de droga, o que resultou na determinação
do trancamento do procedimento penal por ausência de tipicidade material da conduta²:
“a aplicação do
princípio da insignificância, de modo a tornar a conduta atípica, exige que
sejam preenchidos requisitos tais como a mínima ofensividade da conduta do
agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade
do comportamento e relativa inexpressividade da lesão jurídica”.
Por fim, tal
posicionamento vem a se consolidar com a proposta da comissão de
juristas responsáveis pelo Anteprojeto do Novo Código Penal
de descriminalizar o uso de drogas, cabendo ao Poder Executivo regulamentar a
quantidade de substância que uma pessoa poderá portar e manter sem que se
considere crime.
Outrossim, não se
ignora a possibilidade de diferente posicionamento nos Tribunais pátrios,
mormente por não estar pacificada a questão nos Tribunais Superiores.
Todavia,
entendo ser desnecessário aprofundar-me nas razões do meu convencimento acerca
da atipicidade da conduta, eis que os entendimentos supra transcritos refletem
o meu decisum.
Tendo em vista a
atipicidade da conduta perpetrada pelo réu, concluo pela falta de justa causa
para o exercício da ação penal, razão pela qual REJEITO A DENÚNCIA, com fulcro
no artigo 395,
inciso III,
do Código de Processo Penal
Intimem-se.
Preclusos prazos recursais, dê-se baixa e ARQUIVE-SE.
1 - Juízo da 43ª
Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Processo nº
0074975-39.2010.8.19.0001– Juiz Rubens Roberto Rebello Casara. Sentença Proferida
em 31 de janeiro de 2012.
2 - STF, 1ª Turma., HC 110.475/SC, Rel. Min.
Dias Toffoli, julgado em 14.02.2012
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