Dando conta da promessa lançada no início deste ano
judiciário por seu presidente, segue em evidência a atuação do STF (Supremo
Tribunal Federal) no julgamento de recursos extraordinários com repercussão
geral reconhecida. Na mais recente decisão de caso dessa natureza, os Ministros
empreenderam longos e intensos debates sobre os limites do trancamento de ação
penal por órgãos judiciais em matéria de competência do Tribunal do Júri (RE
593.443, Rel. Min. Marco Aurélio).
A repercussão geral como pressuposto de admissibilidade
do RE (recurso extraordinário) foi introduzida no ordenamento pela emenda
constitucional da reforma do Judiciário, de nº 45/2004 (art. 102, § 3º), e regulamentada
por lei de 2006, que acrescentou dispositivos ao Código de Processo Civil
(arts. 543-A e 543-B). Cabe ao recorrente demonstrar que a matéria
constitucional que é objeto do RE possui repercussão geral, assim entendida a
que seja relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico,
ultrapassando os interesses subjetivos do caso concreto. É questão que, uma vez
resolvida, tem o condão de se espraiar para muitos outros casos, cujos
julgamentos ficam suspensos até que seja julgado o mérito do RE em que houver
sido reconhecida a repercussão geral.
Em março de 2009, seis meses após chegar ao STF, o RE
593.443 teve repercussão geral reconhecida, tanto pela sensibilidade social da
situação de fato subjacente, como pela relevância jurídica do questionamento de
índole constitucional que lhe era objeto.
Trata-se de caso em que, em meio a atividades de recepção
de novos estudantes de renomada Faculdade de Medicina do país – o “trote” dado a “calouros” por “veteranos”
– ocorreu a morte por afogamento de um estudante, a qual foi imputada, pelo MP
(Ministério Público) estadual, a um grupo de alunos da instituição, que
figuravam, assim, como réus na ação penal. O caso, que gerou forte comoção
quando do acontecimento, há cerca de quatorze anos, teve seu trancamento
determinado em sede de HC (Habeas Corpus) julgado pelo STJ (Superior Tribunal
de Justiça), em abril de 2008, por ausência de justa causa para a ação penal e
inépcia da denúncia, diante da falta de individualização das condutas de cada
um dos réus na acusação.
Em face da decisão do STJ, o MP interpôs o RE que veio a
ser julgado pelo STF, alegando que o trancamento da ação por esse órgão
judicial implicava cerceamento à função institucional do MP na propositura de
ação penal pública (CRFB, art. 129, I), bem como usurpação da competência do
Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (CRFB, art.
5º, XXXVIII, d). Foi esta a questão constitucional posta à prova no STF e que
suscitou divergências entre os Ministros da Corte.
De um lado, formou-se o entendimento, inaugurado pelo
voto do Relator, no sentido de que teria havido ofensa a um dos postulados
constitucionais invocados pelo MP no RE 593.443, o que determinaria o
provimento do recurso e a retomada da ação penal. Invocando precedentes tanto
do Pleno quanto das Turmas do próprio STF, o Min. Marco Aurélio asseverou que o
princípio pro societate é o que deve
pautar a atuação do julgador no momento do recebimento da denúncia, em que se
verificam tão somente a probabilidade da ocorrência da infração e indícios
suficientes da autoria, e não certeza moral quanto à ocorrência do fato, da
autoria e da culpabilidade, questões essas que devem ser apuradas ao longo do
processo de conhecimento e, se presentes, levar à condenação, ao final. Essa “prova mínima” de fato típico,
antijurídico e culpável já se traduz em justa causa para a persecução penal.
Impedir que a ação penal se desenvolva, promovendo seu trancamento, notadamente
pela via do HC, é medida excepcional, que somente se justifica quando os fatos
não consubstanciem crime, haja prescrição ou defeito de forma na peça inicial
apresentada pelo MP. Embora permita uma cognição ampla, podendo ser
concedido até mesmo de ofício, para que o HC leve ao trancamento da ação,
ponderou o Min. Relator, é necessário que haja “clara demonstração da ilegalidade da coação ou da ameaça” que
representaria o prosseguimento da ação penal. “A prova dúbia, incompleta ou contrariada por outros elementos não
autoriza pronunciamento favorável” à pretensão de trancamento da ação
penal. E concluiu que, no caso, o STJ, ao proceder à valoração e ao cotejo
analítico de provas, testemunhos e perícias médicas, teria “adentrado seara imprópria à ação de HC”, substituindo-se tanto ao
juízo ao qual competiria receber ou não a denúncia, quanto ao Tribunal do Júri,
cuja competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida é fixada pela
Constituição.
Esse último aspecto foi ressaltado pelo Min. Teori
Zavascki, ao afirmar que, “justamente em
função de o STJ ter feito exame aprofundado e exaustivo das provas”,
haveria motivos para provimento do RE. O STJ, no entender do Ministro, teria
feito “juízo típico de Tribunal do Júri”,
que foi assim antecipado por via do HC, usurpando a competência, pois, daquele
que seria o julgador natural da causa. Ressaltou, contudo, ser essa sua única
convicção em relação ao caso e, assim como o Min. Marco Aurélio, não se
pronunciou quanto ao mérito da ação penal propriamente dito.
Essa linha de entendimento, contudo, não foi a que prevaleceu.
Inaugurando a divergência ao final acompanhada pela maioria de seus pares, o
Min. Ricardo Lewandowski ressaltou que o STJ procedeu como devido, ao cotejar a
denúncia com os requisitos estabelecidos pelo art. 41 do CPP (Código de
Processo Penal), concluindo que o MP não teria conseguido demonstrar que as
condutas teriam sido praticadas com a intenção de alcançar o resultado danoso,
nem mesmo que teriam sido os acusados os responsáveis pelo ocorrido; tampouco
teria havido a narrativa individualizada das condutas dos réus. Diante desse
quadro, estariam configuradas a falta de justa causa para a ação penal e a
inépcia da denúncia, o que determinaria o trancamento da ação penal. O exame
das provas documentais constantes dos autos para confronto da denúncia com o
art. 41 do CPP, afirmou o Ministro, é perfeitamente cabível em sede de HC – o
que, aliás, o próprio STF, seja em órgão pleno, seja nas Turmas, faz
rotineiramente.
A esse respeito, salientou o Min. Celso de Mello que,
havendo elementos documentais que evidenciem uma determinada pretensão, é
legítimo ao Poder Judiciário analisar os fatos subjacentes para decidir,
podendo o HC, por sua própria finalidade constitucional, resultar em provimento
de natureza declaratória, cautelar ou até mesmo, como no caso de trancamento da
ação penal, constitutiva negativa. O Ministro foi categórico ao afirmar que “o
controle jurisdicional da admissibilidade da ação penal, mais do que um poder,
é um dever, e não importa ofensa aos arts. 129, I e 5º, XXXVIII, d, da Constituição”.
Devem ser evitadas acusações temerárias, de forma que a denúncia, sendo
destituída de base empírica idônea, não pode prosperar. É assim que o
reconhecimento de ausência de justa causa para a ação penal, embora
excepcional, pode ser feito em sede de HC, podendo levar até mesmo à
absolvição.
Como destacou o Min. Gilmar Mendes, a se levarem às
últimas consequências os argumentos invocados no RE, todo e qualquer ato que
afetasse o desenvolvimento do processo na ação por crime de homicídio doloso
caracterizaria lesão à competência constitucional do Júri – até mesmo a
absolvição sumária por parte do juiz seria inconstitucional. O fato de se ter
reconhecido repercussão geral ao caso traz à discussão um argumento ainda mais
sensível, na medida em que a conclusão alcançada pelo STF quanto à questão constitucional
suscitada se projetaria para inúmeros outros casos.
As Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia integraram a
maioria, negando provimento ao recurso, por não ter havido ofensa aos arts.
129, I, e 5º, XXXVIII, d, da Constituição, embora a princípio houvessem votado
pelo não conhecimento do RE – aspecto em que ficaram vencidas, tendo
prevalecido o entendimento de que o juízo de admissibilidade do recurso teria
se esgotado, por ocasião da decisão que reconheceu a repercussão geral da
matéria constitucional suscitada.
Último a se pronunciar, o Presidente do STF ficou dentre
os Ministros vencidos. De maneira contundente, fez consignar que o que deveria
ser discutido era o fato de que “um jovem
de minoria étnica foi vítima de grande violência”; se teriam os acusados
participado dos atos, se seriam culpados, não caberia a “um órgão burocrático do Judiciário” decidir, e sim ao Júri, cuja
competência teria sido, pois, usurpada pelo STJ, cuja conduta deveria ser
censurada. E concluiu que, ao decidir pelo desprovimento do RE, o STF estaria “chancelando a impossibilidade de punição de
quem cometeu um crime bárbaro”, “que essa triste história seja esclarecida”.
O tom da manifestação do Min. Joaquim Barbosa talvez seja
representativa da eventual dificuldade que muitos, dentro e fora do meio
jurídico, tenham para compreender certos posicionamentos do Judiciário, em
geral, e do STF, em especial. Afinal, um caso de contornos tristes e nebulosos,
como reconhecido por todos os Ministros, e que tanta comoção suscitou, parece
ter ficado sem solução à altura de seu significado. Nem sempre é fácil
compreender ou aceitar a missão institucional de índole garantista do STF. Mas
ela é indubitavelmente inerente e essencial à função do órgão de guarda da
Constituição em um Estado democrático de Direito. Como salientou o Min. Celso
de Mello, o processo penal não pode ser mecanismo de imposição de arbítrio do
poder público, estabelecendo, em verdade, restrições a MP, polícias e até ao
próprio Judiciário. Se as engrenagens do sistema não funcionam a contento, não
pode o STF vendar seus olhos, devendo enfrentar o problema detectado, de forma
a corrigi-lo, dentro das balizas constitucionais – ainda que o resultado seja
tão somente a constatação, de gosto amargo, de que os órgãos incumbidos da
investigação e persecução penal deixaram de agir em conformidade com os ditames
da lei.
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