segunda-feira, 18 de junho de 2012

Reformas em lei caminham em sentidos opostos


Duas importantes reformas na legislação penal brasileira caminham em sentidos opostos. De um lado está o projeto de alteração do Código de Processo Penal, aprovado pelo Senado em dezembro de 2009. De outro está a proposta de mudança do Código Penal, em fase de elaboração por uma comissão de juristas. Enquanto o primeiro segue uma linha garantista - aumentando os direitos dos réus e ampliando seus poderes -, a segunda propõe uma série de aumentos de penas e de novos tipos penais. 

As reformas da legislação penal começaram a ser desenhadas no Senado para atualizar os dois códigos vigentes - ambos datados de 1941, com diversas alterações pontuais ao longo dos anos. O anteprojeto do novo Código de Processo Penal (CPP) foi elaborado por uma comissão de juristas convocada pelo presidente do Senado, José Sarney, e entregue aos senadores após nove meses de debates. Convertida no Projeto de Lei nº 156, a proposta foi aprovada pela Casa em dezembro de 2009, com algumas alterações, e seguiu para a Câmara dos Deputados, onde ainda aguarda votação. Já as modificações no Código Penal (CP) estão sendo elaboradas também por uma comissão de juristas formada pelo Senado, que deve entregar aos senadores o texto final da proposta no fim deste mês. Mesmo sem terem passado pelo crivo das duas Casas Legislativas, onde certamente sofrerão alterações, as duas reformas em curso parecem seguir linhas antagônicas. Essa é a conclusão a que se chega a partir da análise do texto do CPP aprovado pelo Senado e das mudanças propostas no CP já divulgadas pela comissão de juristas. 

No caso do processo penal, a comissão de juristas, formada por advogados, procuradores, ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e membros da Polícia Federal, chegou à conclusão de que deveria alterar o modelo processual hoje em vigor no Brasil. Do atual modelo inquisitivo, que prevê maior participação do juiz na condução do processo, o código proposto segue o modelo acusatório, que dá maior poder ao réu ao transferir a produção de provas também a ele e colocando o juiz na condição de mero julgador. 

Na linha do modelo acusatório, entre as medidas propostas estão a criação do juiz de garantias, praticamente uma nova instância pela qual passarão as ações criminais. Caberá a ele preservar a legalidade de todas as medidas tomadas durante as investigações criminais - como quebras do sigilo telefônico, bancário e fiscal, buscas e apreensões e prisões preventivas e temporárias. Já o processo penal, em si, será julgado por outro magistrado - o juiz da causa. Além dessa novidade, a proposta dos juristas também garante uma paridade de armas entre o acusador - o Estado, por meio do Ministério Público - e o acusado. A chamada investigação defensiva permitirá que o acusado identifique fontes de prova em sua defesa e até mesmo ouça testemunhas, transformando a gestão de provas em uma função das partes, e não apenas do acusador. 

A proposta da comissão, em boa parte mantida pelos senadores, gerou críticas de membros do Ministério Público, da Polícia Federal e de alguns juízes, para os quais a reforma foi feita "de afogadilho". Por outro lado, foi aplaudida pelos advogados, para quem ela deu mais equilíbrio entre acusador e acusado. A situação se inverte em relação à reforma do Código Penal em curso, que começa a receber críticas de advogados. 

"Em alguns pontos isolados a comissão apresentou propostas mais liberais do que hoje se tem, mas o resultado final tem sido de maior rigor", diz a advogada Fernanda Tortima, presidente da comissão de prerrogativas da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ). "Em geral, há um endurecimento de penas", conclui. Fernanda, que integra a comissão de reforma do Código Penal formada na Câmara dos Deputados e que trabalha simultaneamente à comissão do Senado, cita alguns exemplos. "No Senado, assim como na Câmara, chegou-se à conclusão de que os crimes contra a honra são crimes graves que deveriam ter penas maiores", afirma. "Mas em relação aos crimes contra a administração pública, acho que as penas já eram altas o suficiente, principalmente se compararmos com as de outros países." Segundo ela, a proposta de alteração do processo penal, por outro lado, mostra que houve um cuidado com a presunção de inocência, para que o réu possa exercer amplamente sua defesa. "Já a reforma do Código Penal é o discurso da impunidade", diz. 

Na opinião de alguns advogados, a comissão que elabora o novo Código Penal está muito dependente dos valores de segurança, mas se descuidando dos valores do direito penal libertário. Em outras palavras, está "dando uma de boazinha" por um lado e, por outro, endurecendo a lei. A partir dos textos já divulgados pela comissão de juristas, o Valor fez um comparativo das penas atuais e das penas propostas para vários tipos de crime. Embora ainda não seja possível fazer um balanço de todas as mudanças na lei penal propostas pela comissão de juristas, o resultado da análise mostra que há mais aumentos de pena do que reduções. "Pelo que percebemos, a comissão está imbuída de um certo endurecimento de penas, mas ainda há um longo caminho pela frente", afirma o procurador Eugênio Pacelli de Oliveira, que foi o relator da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto do novo Código de Processo Penal. 

Logo no início dos trabalhos, em novembro do ano passado, a comissão de juristas que elabora o novo Código Penal passou a receber uma série de sugestões populares ao futuro novo texto - a grande maioria pedindo a seus membros o aumento de penas e a criminalização de novas condutas. Ainda assim, o procurador regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, relator da comissão de reforma do CP, discorda da visão de que há um endurecimento da lei. "Estamos descriminalizando várias condutas, muito mais do que criminalizando", diz. "O CP não tem um viés predeterminado, nem agravador nem amenizador de penas." E cita alguns exemplos de reduções de penas, como nos casos dos crimes contra o sistema financeiro nacional, e do uso de instrumentos já adotados na jurisprudência, como a possibilidade de suspensão da ação penal por furto quando o réu repara o dano, desde que com a concordância da vítima, e o encerramento do processo por crime tributário quando o réu paga o tributo. "Nossa grande preocupação é apresentar um acervo de penas proporcionais e unificar a legislação penal, hoje esparsa", afirma.

Para o criminalista Renato Stanziola Vieira, sócio do escritório Andre Kehdi & Renato Vieira Advogados, os dois códigos têm que andar juntos. "O direito penal só se cumpre pelo processo penal, não faz sentido o CPP estabelecer garantias de um Estado de direito e o CP prever penas cujas condutas não entrem nessas garantias", diz. Para Eugênio Pacelli, os rumos das reformas, a princípio, poderiam demonstrar uma certa contradição. "Mas esse aparente paradoxo na verdade não é um antagonismo", afirma, para quem um Código Penal que contemplasse até mesmo a pena de morte poderia conviver com um Código de Processo Penal que, ao instrumentalizar essa pena, garantisse a ampla defesa em seu grau máximo. 

Proposta do Código Penal dá fim a velhos costumes 

De um lado, a comissão de juristas que estuda a reforma do Código Penal (CP) decidiu dar fim a praticamente todo o texto da Lei de Contravenções Penais, mantendo apenas algumas condutas nela previstas. De outro, criou vários tipos penais - ou seja, condutas que passarão a ser crimes quando a legislação for aprovada e sancionada. Trata-se da modernização de uma lei vigente desde 1941 e que, embora tenha recebido alterações ao longo dos anos, ainda conserva velhos hábitos, mas deixa de fora de seus 11 capítulos e 361 artigos alguns costumes atuais.

Segundo o procurador Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, relator da reforma do CP elaborada pela comissão de juristas, o grupo está "jogando fora um monte de velharias" - e um exemplo disso é a revogação, quase que completa, da Lei de Contravenções Penais. Datada também de 1941, a lei define como contravenção penal o ato de portar-se de modo inconveniente em solenidade oficial e de apresentar-se publicamente embriagado, entre outras condutas. Com a revogação, elas deixarão de ser contravenções, com exceção das condutas de abandono de animais, perturbação de sossego, omissão de comunicação de crime à autoridade competente, fingir-se de funcionário público e explorar jogos de azar sem autorização legal, que serão incluídas no Código Penal. 

Os juristas também decidiram descriminalizar o porte de drogas, desde que a quantidade encontrada com o usuário seja equivalente a cinco dias de uso, e aumentar as hipóteses de exclusão do crime de aborto. "Foi uma decisão corajosa", diz a advogada Maíra Fernandes, que acompanha o trabalho da comissão.

De outro lado, novos crimes estão sendo inseridos na legislação. É o caso do bullying e do sparking (perseguição obsessiva). Também passarão a ser crime, caso a proposta se torne lei, o enriquecimento ilícito de funcionários públicos e a corrupção de funcionários públicos praticada por empresas, entre vários outros. Para Nelson Calandra, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a reforma deve tirar da sombra algumas condutas que hoje não têm definição legal e, por isso, ficam sem punição.

Fonte: Valor Econômico – Legislação e Tributos

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