O projeto de reforma do Código Penal,
elaborado por uma comissão de especialistas, começa a tramitar hoje no Senado
já com a promessa de ser alterado por congressistas.
Formado por 15 pessoas, o grupo trabalhou nos
últimos sete meses a revisão do código, de 1940. A proposta eliminou tipos
penais, criou crimes e decidiu tratar tabus com um viés claramente liberal.
O resultado são as mais de 500 páginas do
relatório do procurador-regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves,
que foram entregues na segunda ao Senado.
O texto autoriza, por exemplo, a interrupção da
gestação até a 12ª semana quando a mãe "não tiver condições psicológicas
ou físicas para a maternidade", atestado por médico e psicólogo.
Libera ainda o porte, a compra e o plantio de
drogas para uso próprio, mas proíbe o consumo perto de escola ou de criança e
adolescente. Também criminaliza a homofobia, nos moldes do racismo.
Os temas são polêmicos. Há promessa de resistência
explícita da bancada evangélica, mas o fato é que a abordagem liberalizante
deve enfrentar objeções de outros segmentos, apesar de a comissão ter adotado
versões mais brandas do que propostas que já tramitaram no Congresso.
"Essa proposta deve ser jogada no lixo",
diz Magno Malta (PR-ES), da bancada evangélica. "Não é um grupo de
intelectuais que vai dizer do que o Brasil precisa."
Autor do pedido de criação da comissão, Pedro
Taques (PDT-MT) saiu em defesa do debate de temas delicados. Para ele, a
comissão fez um trabalho "impressionante" e deixou um bom material
para ser discutido. "Estou esperançoso com o debate."
O presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), admite
que o texto será alterado. Para ele, mudanças em projetos fazem parte do
processo legislativo. "Vamos apresentar o projeto sem que haja
responsabilidade de adotá-lo. Quem decide é o Congresso."
Gilson Dipp, presidente da comissão e ministro do
STJ, considera "natural" a resistência às mudanças. "A comissão
teve como um dos rumos não deixar de fora temas pertinentes para um código
moderno, que sirva para o amanhã", diz. "Estamos enfrentando o que
outros países já enfrentaram."
O projeto agora vai tramitar por comissões da Casa
antes de ser submetido ao plenário.
CÂMARA
Longe da polêmica do Senado, a Câmara pode ter
maior chance de aprovar seu projeto. O deputado Alessandro Molon (PT-RJ)
apresentou ontem relatório na Comissão de Justiça. Se aprovado, está pronto
para análise no plenário.
O texto sugere mudanças no código, mas não o
reforma. Só atinge a parte especial, que trata de crimes e penas.
"Estamos evitando as maiores polêmicas, que
acabam inviabilizando a discussão de outros pontos. Existem projetos em
tramitação sobre esses assuntos."
As propostas para o código penal
Veja as principais mudanças previstas no
anteprojeto elaborado pela comissão de juristas
ABORTO
HOJE: PROIBIDO, A NÃO SER EM CASO DE ESTUPRO E
RISCO DE MORTE PARA A MÃE
Como ficaria: autorizado até a 12ª semana de
gestação, se médico ou psicólogo atestar que a mãe não tem condições de arcar
com a maternidade; assim como nos casos de feto anencéfalo
ACORDO
HOJE: POSSIBILIDADE DE VÍTIMA E O CRIMINOSO
FAZEREM ACORDO SOBRE PENA NÃO É PREVISTA
Como ficaria: em todos os crimes seria possível o
acordo sobre o tempo de prisão, desde que vítima, Ministério Público e
criminoso concordem. Nos furtos simples, pode levar à extinção da pena
ANIMAIS
HOJE: ABANDONO NÃO É CRIME; MAUS-TRATOS SÃO
PUNIDOS COM 3 MESES A 1 ANO DE PRISÃO
Como ficaria: o abandono passaria a ser crime (com
pena de 1 a 4 anos de prisão) e a pena para maus-tratos quadruplicaria
BULLYING
HOJE: NÃO É CRIME
Como ficaria: viraria crime, com pena de 1 a
4 anos de prisão
CORRUPÇÃO
HOJE: O CRIME ENVOLVE UM AGENTE PÚBLICO; SE UMA
EMPRESA PAGAR PROPINA, QUEM RESPONDE PELO CRIME É A PESSOA QUE A ADMINISTRA
Como ficaria: a corrupção entre dois
particulares também seria crime; pessoas jurídicas passariam a responder pela
corrupção, podendo ser condenadas a construir casas populares, por exemplo
CRIMES CIBERNÉTICOS
HOJE: NÃO HÁ CRIMINALIZAÇÃO ESPECÍFICA E NEM
SEMPRE É POSSÍVEL USAR AS DEFINIÇÕES DOS CRIMES "COMUNS"
Como ficaria: surgiriam vários crimes novos, como
a "intrusão informática": quem invadir um site, mesmo que não
divulgue os dados ali presentes, receberia pena de 6 meses a 1 ano de prisão
CRIMES ELEITORAIS
HOJE: EXISTEM MAIS DE 80 CRIMES, MUITOS DELES
ULTRAPASSADOS; A PENA POR USO ELEITORAL DA MÁQUINA ESTATAL É DE NO MÁXIMO 6
MESES DE PRISÃO
Como ficaria: passariam a existir 14 crimes; os
demais seriam extintos ou punidos administrativamente, com multas -como é o
caso da boca de urna
CRIMES HEDIONDOS
HOJE: SÃO CONSIDERADOS HEDIONDOS, ENTRE OUTROS,
O HOMICÍDIO QUALIFICADO, O LATROCÍNIO E O ESTUPRO
Como ficaria: seriam incluídos a redução à
condição análoga de escravo, o financiamento ao tráfico de drogas, o racismo, o
tráfico de pessoas e os crimes contra a humanidade
DIREITOS AUTORAIS
HOJE: COPIAR INTEGRALMENTE LIVRO, CD OU DVD É
CRIME DE VIOLAÇÃO DOS DIREITOS AUTORAIS; A PENA MÁXIMA É DE 4 ANOS
Como ficaria: a cópia integral, desde que
única, feita a partir de um original e apenas para uso próprio, não seria
crime; mas as penas para quem violar direitos autorais aumentariam
DROGAS
HOJE: O CONSUMO NÃO É CRIME, MAS É MUITO DIFÍCIL
QUE ALGUÉM CONSUMA SEM CULTIVAR, COMPRAR, PORTAR OU MANTER A DROGA EM DEPÓSITO
-CRIMES PUNIDOS COM PENAS ALTERNATIVAS
Como ficaria: plantar, comprar, guardar ou
portar consigo qualquer tipo de droga para uso próprio seriam legalizados. Já o
consumo de drogas perto de crianças se tornaria crime
ENRIQUECIMENTO ILÍCITO
HOJE: AGENTES PÚBLICOS QUE NÃO COMPROVAREM A
ORIGEM DE BENS SÃO PUNIDOS APENAS COM SANÇÕES ADMINISTRATIVAS E CÍVEIS
Como ficaria: viraria crime, com pena de 1 a
5 anos de prisão
EUTANÁSIA
HOJE: É HOMICÍDIO COMUM, COM PENA DE 6 A 20 ANOS
DE PRISÃO
COMO FICARIA: MATAR, POR PIEDADE OU
COMPAIXÃO, PACIENTE EM ESTADO TERMINAL a pedido dele viraria um crime
específico, com pena entre 2 a 4 anos de prisão; pode deixar de ser crime em
casos de "laços de afeição" com a vítima, por exemplo
HOMOFOBIA
HOJE: O PRECONCEITO NÃO É CRIME; XINGAMENTOS PODEM
SE ENCAIXAR NA DEFINIÇÃO DE INJÚRIA E O HOMICÍDIO BASEADO EM HOMOFOBIA PODE SER
QUALIFICADO POR "MOTIVO TORPE"
Como ficaria: passaria a valer para a
homofobia a mesma pena do racismo: 2 a 5 anos de prisão, além de se tornar
crime imprescritível e inafiançável. A pena por homicídio, lesão corporal,
tortura e injúria seria aumentada caso a motivação fosse o preconceito
JOGOS ILEGAIS
HOJE: A EXPLORAÇÃO ILEGAL DO JOGO É
CONSIDERADA UMA CONTRAVENÇÃO PENAL, PUNIDA COM DETENÇÃO DE 3 MESES A 1 ANO
Como ficaria: viraria crime, com pena de até
2 anos de prisão
LEI SECA
HOJE: É NECESSÁRIO PROVAR, POR MEIO DE
BAFÔMETRO OU EXAME DE SANGUE, A CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL DE 6 DECIGRAMAS POR
LITRO NO SANGUE DO MOTORISTA
Como ficaria: a embriaguez poderia ser
demonstrada por todos os meios possíveis, incluindo testemunho do policial ou
exame clínico. Qualquer quantidade de álcool estaria proibida ao condutor
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
HOJE: CRÍTICOS LITERÁRIOS, DE ARTE E CIÊNCIAS
PODEM EMITIR "OPINIÃO DESFAVORÁVEL" SEM QUE SEJAM ACUSADOS DOS CRIMES
DE INJÚRIA E DIFAMAÇÃO
Como ficaria: os jornalistas também seriam
incluídos
MENORES
HOJE: QUEM USA MENORES DE IDADE EM CRIMES RESPONDE
SÓ PELOS PRÓPRIOS DELITOS
Como ficaria: quem usasse menores de idade
para cometer crimes assumiria as penas dos delitos cometidos por eles
PENA MÁXIMA
HOJE: A PENA MÁXIMA É DE 30 ANOS - MESMO QUE ALGUÉM SEJA CONDENADO A CENTENAS
DE ANOS, NÃO PODE FICAR PRESO POR TEMPO MAIOR
Como ficaria: nos casos em que condenados
beneficiados pelo teto de 30 anos voltassem a cometer crimes, a pena seria
somada à punição anterior, até o prazo máximo de 40 anos
STALKING OU "PERSEGUIÇÃO OBSESSIVA"
HOJE: NÃO É CRIME ESPECÍFICO
Como ficaria: quem perseguir alguém reiteradamente,
ameaçando sua integridade física ou psicológica ou invadindo ou perturbando sua
privacidade, pode ficar preso entre 2 e 6 anos
TERRORISMO
HOJE: NÃO HÁ CRIME ESPECÍFICO
Como ficaria: o terrorismo, descrito como
comportamentos motivados por "ódio e preconceito" e que causem terror
à população, além de forçar a autoridade a contrariar a lei, viraria crime
TORTURA
HOJE: É PUNIDA COM PRISÃO DE 2 A 8 ANOS E PODE
PRESCREVER (OU SEJA, APÓS UM TEMPO NÃO É MAIS POSSÍVEL PROCESSAR OU PRENDER O
ACUSADO)
Como ficaria: a pena aumentaria para de 4 a
10 anos; crime se tornaria imprescritível (o acusado pode ser punido em
qualquer tempo)
Os integrantes da comissão
Presidente: Gilson Dipp
Ministro do STJ
Relator: Luiz Carlos Gonçalves
Procurador regional da República e professor
Membros:
ANTONIO NABOR BULHÕES: advogado criminalista,
responsável pela absolvição de PC Farias
EMANUEL CACHO:
advogado criminalista em Sergipe
GAMIL FÖPPEL EL
HIRECHE: professor na Bahia e no Pará
JOSÉ MUIÑOS PIÑEIRO
FILHO: desembargador no TJ-RJ
JULIANA GARCIA
BELLOQUE: defensora pública
LUIZA NAGIB
ELUF: procuradora de Justiça em São Paulo
LUIZ FLÁVIO
GOMES: doutor em direito penal
MARCELO ANDRÉ DE
AZEVEDO: promotor de Justiça em Goiás
MARCELO LEAL: advogado,
defende Fernando Sarney
MARCELO
LEONARDO: advogado, defende Marcos Valério no processo do mensalão
MARCO ANTÔNIO
MARQUES DA SILVA: desembargador do TJ-SP
TÉCIO LINS E
SILVA: advogado, defende Fernando Cavendish
TIAGO IVO ODON:
advogado
Fonte: Folha de S. Paulo – Cotidiano
Nádia Guerlenda e Márcio Falcão